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A concepção de democracia de Moro e da força-tarefa da Lava Jato

Não é de hoje. Há cinco anos venho mostrando que Moro e a força-tarefa da Lava Jato – sobretudo  Deltan Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos Lima – têm uma visão de democracia que está longe de ser liberal (na acepção política do termo, quer dizer, dos que tomam a liberdade – e não a ordem, nem mesmo uma ordem mais justa – como sentido da política).

Neste artigo vou resumir, consolidar e comentar uma série de quatro artigos, publicados em junho e julho de 2017, sobre a visão de democracia da força-tarefa da Lava Jato, acrescentando críticas a uma tese escrita e publicada por Sérgio Moro em 2004 sobre a Mani Pulite, já analisada por mim em outubro de 2020. O conjunto deixa claro que os membros da tal “República de Curitiba”, além de não terem muita intimidade com a democracia, têm uma concepção i-liberal da política.

Deltan Dallagnol

Eis o primeiro artigo da série (publicado em 07/06/2017)

No artigo que publicou na Folha de S. Paulo, em 04/06/2017, intitulado As ilusões da corrupção – já reproduzido na íntegra e comentado no post A ficha que ainda não caiu, Deltan Dallagnol vazou um conceito estranho, que merece ser analisado. Ele escreveu:

“Outra ilusão é a de que há, no Brasil, uma democracia substancial. O povo escolhe seus representantes, mas, no mar de candidatos, desponta quem aparece mais. Aparece mais quem gasta mais. Gasta mais, frequentemente, quem desvia mais.”

Ora… o que seria uma “democracia substancial”? As democracias realmente existentes – e até Bobbio viu isso – são formais, representativas e políticas, não substanciais, diretas e sociais. Constrangida a ser um modo político de administração do Estado-nação, a democracia dos modernos não pode ser ‘substancial’ (ou substantiva, seria a palavra mais correta). Pois a formen ‘Estado-nação’, como sabemos, é uma estrutura hierárquica regida, em grande parte, por modos autocráticos de regulação. O Estado-nação é um fruto da guerra – da paz de Westfalia – não uma koinonia (comunidade) política, como a polis dos atenienses do século 5 AEC. Estruturas e dinâmicas pensadas para a guerra não podem ser democráticas, no máximo o Leviatã pode ser domesticado pela fórmula (dos modernos) Estado democrático de direito (para que o cidadão não seja invadido em seus diretos, não por algum Estado inimigo, mas pelo seu próprio Estado).

Se não fosse assim, juízes e membros do Ministério Público não seriam aprovados em concursos (o que é meritocracia, não democracia – a distinção é sutil e exige que se entenda que o governo dos sábios de Platão é essencialmente autocrático) ou nomeados por outro poder, como ocorre no processo de preenchimento de vagas para tribunais superiores e para a Procuradoria Geral da República. A nomeação é um elemento de democracia delegativa, não substantiva. É uma remanescência autocrática, não um procedimento democrático. Outra evidência é que os tribunais superiores (como o STF) ainda são chamados de ‘cortes’ (a despeito da democracia que conhecemos ter sido reinventada pelos modernos no século 17 e das monarquias, onde as cortes cumpriam um papel de governança, terem sido, em grande parte, abolidas).

Deixando, porém, de lado, essas retificações teórico-históricas, voltemos à frase de Dallagnol. É claro que o Estado democrático de direito não pode permitir que vença as eleições “quem desvia mais”, como ele diz. O roubo, a corrupção em geral, devem ser coibidos e punidos pelas leis. Mas isso não significa que não haja no Brasil uma democracia (a palavra substancial não se aplica, pois a democracia dos modernos, como vimos acima, não é substancial – ou substantiva – em nenhum dos países que a adotam: em todos os lugares, entendendo por lugares os Estados-nações, ela é formal); e nem que seja uma ilusão acreditar que exista uma democracia no Brasil porque há muita corrupção no sistema representativo. Para não falar que democracia não se reduz à eleições.

Não! O regime politico vigente no Brasil, felizmente, é uma democracia, ainda que um tanto flawed, não uma autocracia. Basta consultar os principais índices e rankings de democracia, como o Democracy Index da The Economist Intelligence Unit, o Freedom in the World da Freedom House ou quaisquer outros. Em todos eles, o Brasil figura entre os países democráticos, não entre os países não-democráticos, nem mesmo entre os hybrid regimes (EIU) ou partly free (FH). Por mais que tenha decaído em corrupção a chamada “classe política”, isso não significa que não estamos sob a vigência de um Estado democrático de direito. Não significa, portanto, que a nossa democracia seja uma ilusão, como escreve Dallagnol. Se toda democracia que não é substantiva é uma ilusão, então não existe democracia em nenhum país.

Mesmo uma democracia coalhada de corruptos continua sendo uma democracia, desde que não haja mudança de estado do sistema. Pois, a rigor, não há um modelo de democracia. Chamamos de democracia, propriamente, ao processo de democratização, não a uma forma particular qualquer de administração política do Estado. Um país continua sendo democrático enquanto o funcionamento das suas instituições não impede a continuidade do processo de democratização.

O que preocupa na formulação do coordenador da força-tarefa da Lava Jato é a sua concepção de democracia. O que ele parece estar dizendo é que o aumento da corrupção pode levar uma democracia a se converter em uma autocracia ou, pior, que já teria levado – o que é falso. Não há um só caso na história de um regime politico que tenha virado uma ditadura, ou mesmo uma protoditadura, em razão do aumento do número de corruptos por metro quadrado. As democracias são resilientes à corrupção, desde o início: a primeira democracia, participativa, inventada pelos atenienses, na passagem do século 6 para o século 5 AEC, já teve que conviver com o discurso inverídico (a demagogia) e com a corrupção (Péricles, seu principal expoente, foi acusado pelo menos três vezes de corrupção, quebra de decoro ou nepotismo durante seu longo protagonismo na condução da Ecclesia, em Atenas). As democracias só continuam existindo porque aprenderam a metabolizar a corrupção, o desvio, o erro. Ao contrário do que pensam as pessoas de mentalidade autoritária, as democracias não são regimes puros, limpos, retos. Tendo surgido após milênios de autocracia (pelo menos 4 milênios, desde que se erigiram, na civilização patriarcal, complexos hierárquico-autocráticos capazes de se reproduzir como modo-de-vida), ela – a democracia – não é o cálculo perfeito e sim o erro no cálculo (ou no script da Matrix), a falha na armadura e não a armadura impenetrável dos sistemas de dominação, como aquela construída por Dario (o monstro Darayavahush, um rei-borg que, após perpetrar um golpe de Estado, dominou os persas entre 521 e 486 AEC exigindo-lhes prosternação física à sua passagem).

Ao dizer que é uma ilusão acreditar que somos uma democracia (substancial, seja lá o que isso for para ele), Deltan faz coro com legiões de autocratas (ou de moralistas que querem limpar a política, separando os bons dos maus) que – à direita ou à esquerda – não veem problema maior em atropelá-la, adotando procedimentos excepcionais, desde que em nome do bem. Ora, se não somos uma democracia (substancial) – entenda-se, se nossa democracia não vale mais, posto que dominada pelos ladrões que roubam para se eleger – então a tarefa principal agora é combater os corruptos que falsificam a representação popular, não importando tanto que bypassemos algumas regras democráticas formais (posto que já não somos mais uma democracia substancial, ou seja, que da democracia que temos já se esvaiu a substância).

Esse pensamento, que namora com o analfabetismo democrático, não vê que o perigo para a democracia não vem da corrupção de Péricles e sim da honestidade de Leônidas ou de Lisandro (de Esparta); como se sabe, os espartanos conspiraram e financiaram vários golpes contra a democracia, sendo o mais trágico deles o que instaurou a Ditadura dos 30 (que ceifou – em menos de um ano – a vida de milhares de democratas, quase o mesmo número dos que foram mortos durante a primeira fase da guerra do Peloponeso). Ou seja, ainda que a corrupção comum da chamada “classe política” deprima a qualidade da democracia, tornando-a cada vez mais defeituosa, ela não consegue fazer o sistema mudar de estado, passando de democracia para autocracia. Varões de Plutarco, porém, podem fazer isso. Os hierarcas e autocratas espartanos são o melhor exemplo: sua honestidade pessoal não impediu que eles mantivessem um regime ditatorial na sua própria cidade e ainda quisessem exportá-lo para outros lugares. Os honestíssimos reis, sacerdotes e generais espartanos eram muito mais perigosos para a democracia do que o “corrupto” Péricles porque, depois da passagem de qualquer um desses honestos autocratas espartanos, não haveria mais regime democrático, enquanto que depois da passagem de Péricles a democracia continuou existindo, ensejando que seus esporos chegassem até nós. As maiores ditaduras que foram implantadas no globo, em toda a história, tiveram como líderes ou chefes pessoas que não eram notáveis por serem ladrões, batedores de carteiras ou corruptos comuns (Hitler, Mussolini, Stalin, Mao e até Fidel são os melhores e mais recentes exemplos disso – e eles não se parecem nem um pouco com Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Renan Calheiros, Aécio Neves ou, mesmo, Michel Temer).

Deltan é combativo, honesto, porém muito novo, talvez, para ter tido a oportunidade de captar o genos da democracia, que não é um modelo de regime ideal e sim um processo de desconstituição de autocracia e, como qualquer processo humano-social, imperfeito, sujo e curvo. Pelo visto, na Harvard Law School não lhe ensinaram isso.

O fato é que essa concepção de democracia de um dos principais expoentes da Lava Jato é, no mínimo, problemática.

Carlos Fernando

Eis o segundo artigo da série, (publicado em 16/06/2017)

Ontem (15/06/2017), outro membro da força-tarefa da Lava Jato, Carlos Fernando dos Santos Lima, publicou no seu Facebook – a propósito de matéria da revista IstoÉ, que levanta suspeitas sobre o comportamento do Procurador Geral da República – o seguinte depoimento em defesa de Rodrigo Janot.

Amigos

A operação lava jato começou ostensivamente em março de 2014. Fui convidado a participar das investigações pelo Dr. Deltan Dallagnol, com o respaldo do Procurador Geral da República Dr. Rodrigo Janot.

Nesses mais de três anos desvendamos com o apoio da Polícia Federal e da Receita Federal diversas organizações criminosas, tanto empresariais, quanto político-partidárias, que vêm sugando a vitalidade dos cidadãos brasileiros.

Esses esquemas criminosos nos vampirizam, por um lado, pela corrupção, que corrói nossa economia e irriga os cofres de partidos políticos, políticos e funcionários públicos, e por outro lado, pelo benefício ilegal a empresas, seus proprietários e executivos em contratos públicos.

Apesar do sucesso das investigações até o momento, sempre soubemos o tamanho das forças contrárias que enfrentaríamos. Nunca fomos ingênuos a esse respeito. Por sorte pudemos contar com o apoio de pessoas de bem.

Infelizmente, entretanto, algumas das pessoas que nos apoiavam o fizeram por motivos mesquinhos ou ingênuos. Os primeiros queriam apenas substituir um partido pelo seu próprio partido, sem qualquer pretensão de buscar o bem comum. Já os segundos acreditavam que todo mal estava no governo do PT. Ledo engano.

A verdade é que estamos mergulhados em uma crise de um sistema político – partidário corrupto, que usa, independentemente do partido, de todos os meios ilícitos para sobreviver.

Esse sistema corrupto continua no atual governo. Não sejamos ingênuos ou, pior, cegos por não desejarmos ver a verdade. A atual luta não é esquerda contra direita, nem ricos contra pobres. É aqueles que desejam um país honesto com seu povo, limpo de toda essa abominável sujeira, contra aqueles que se beneficiaram da corrupção para alcançarem poder e dinheiro à custa do trabalho duro de todos os brasileiros.

Dessa forma, quero reiterar a todos a confiança que tenho nos trabalhos da equipe do Procurador Geral da República Dr. Rodrigo Janot, pois sei da seriedade de todos os seus esforços para que seja alcançado o mesmo objetivo de termos um país melhor.

Esse é o meu testemunho. E o faço livremente na esperança que as pessoas que o leiam possam acreditar nas minhas palavras. Não tenho compromisso algum com quem quer que seja, salvo com meu compromisso , que também foi o de meu pai e é de meus irmãos, de sermos servidores públicos e promotores de justiça.

Carlos Fernando dos Santos Lima, cidadão.

Tudo bem que Carlos Fernando queira defender seu chefe. Entende-se. Mas no post acima fica claro que a ficha ainda não caiu na cabeça dos membros da força-tarefa da Lava Jato.

Deixando de lado a defesa de Janot, que se explica, na melhor das hipóteses, pela solidariedade corporativa dos procuradores, há dois pontos na nota de Carlos Fernando, que chamam a atenção. O primeiro deles é o seguinte:

Infelizmente, entretanto, algumas das pessoas que nos apoiavam o fizeram por motivos mesquinhos ou ingênuos. Os primeiros queriam apenas substituir um partido pelo seu próprio partido, sem qualquer pretensão de buscar o bem comum. Já os segundos acreditavam que todo mal estava no governo do PT. Ledo engano.

A verdade é que estamos mergulhados em uma crise de um sistema político – partidário corrupto, que usa, independentemente do partido, de todos os meios ilícitos para sobreviver.

No primeiro parágrafo do trecho reproduzido acima, Carlos Fernando chama de ingênuos os que acham que todo mal estava no governo do PT. Revela, com isso, não ter entendido nada das diferenças entre a corrupção tradicional, endêmica em nossos meios políticos, e a corrupção com motivos estratégicos de poder, praticada pelo PT para alterar o DNA da nossa democracia, quer dizer, bolivarianizar (ou lulopetizar) o regime político vigente no Brasil. Para ele é tudo a mesma coisa. Lula é como Sergio Cabral, Dirceu é como Cunha. Como se disséssemos que Mussolini é como Berlusconi, Salazar é como José Sócrates. Ora, se não for ingenuidade, neste caso do procurador – não de nós que vemos as diferenças e avaliamos diferentemente os perigos que os dois tipos de corrupção representam para nossa democracia (basta ver o que está acontecendo na Venezuela: é como dizer que Chávez é a mesma coisa que Rafael Caldera, seu antecessor) – nem de má-fé ou cegueira voluntária (o que não acredito), trata-se mesmo de uma (falta de) visão de democracia.

Outro parágrafo do post de Carlos Fernando, confirma o que estamos dizendo:

Esse sistema corrupto continua no atual governo. Não sejamos ingênuos ou, pior, cegos por não desejarmos ver a verdade. A atual luta não é esquerda contra direita, nem ricos contra pobres. É aqueles que desejam um país honesto com seu povo, limpo de toda essa abominável sujeira, contra aqueles que se beneficiaram da corrupção para alcançarem poder e dinheiro à custa do trabalho duro de todos os brasileiros.

Sim, o sistema corrupto (o velho sistema político como um todo, que apodreceu) continua existindo, até porque está no governo a mesma base congressual que apoiou o PT durante mais de uma década. Mas a corrupção que continua no governo Temer é a endêmica, não a corrupção com motivos estratégicos de poder que foi urdida, operada e chefiada pela verdadeira organização política criminosa chefiada por Lula, Dirceu e seus sequazes. Carlos Fernando menciona diversas organizações criminosas, tanto empresariais, quanto político-partidárias”, mas parece não ter se dado conta de que há uma organização criminosa estruturada para cometer crimes políticos (contra a democracia) e não apenas crimes comuns. Não viu que, a despeito do festival de acusações, investigações, delações, condenações e prisões da Lava Jato, apenas um membro do núcleo duro da organização política criminosa continua preso (em regime fechado): João Vaccari.

O mais grave, porém, é o espírito de cruzada para limpar a política que fica claro no último parágrafo destacado e reproduzido acima: “a atual luta… é aqueles que desejam um país honesto com seu povo, limpo de toda essa abominável sujeira, contra aqueles que se beneficiaram da corrupção”.

Ora, os democratas queremos que todos os crimes – sejam comuns ou políticos – sejam punidos. Mas não podemos colocar as coisas nesses termos. Em primeiro lugar porque não é possível ter um país “limpo de toda… sujeira”. Os seres humanos realmente existentes não podem ser limpos. Quem gosta de limpeza é a autocracia, não a democracia. Em segundo lugar, esta limpeza não pode ser promovida pelo Estado (e a Lava Jato é uma operação do Estado). A função do Estado não pode ser limpar a sociedade, purificar o país, reformar as pessoas. O velho sistema político que apodreceu é Estado, não sociedade. Só a sociedade pode reformar o Estado, não o contrário (do contrário, teremos menos democracia, não mais democracia).

post de Carlos Fernando, assim como o artigo de Deltan Dallagnol (mencionado, linkado – e comentado – acima), revelam uma concepção pedestre de democracia, muito próxima, infelizmente, do analfabetismo democrático.

[…]

A Lava Jato não pode ser uma réplica da operação Mani Pulite (e não deve, se não quiser ter o mesmo destino da sua congênere: quem quer limpar o mundo acaba fora do mundo), mas sobretudo porque na Itália dos anos 90 não havia uma organização política criminosa – com enraizamento social suficiente – querendo alterar a natureza do regime político.

Eis o terceiro artigo da série, (publicado em 25/06/2017)

Quanto mais os procuradores da força-tarefa da Lava Jato de Curitiba – em especial Deltan Dallagnol e Carlos Fernando – escrevem, mais fica clara sua concepção salvacionista e sua visão pedestre de democracia. Sim, como já mostramos em dois artigos anteriores, eles estão no limite do analfabetismo democrático. Em outro artigo, Quem quer matar a Lava Jato, também comentamos uma nota tipo chantagem de Deltan, escrita para constranger o STF, na qual ele ameaçava o tribunal dizendo que ou se aprova toda a escandalosa armação Janot-Fachin, ou seria o fim da delação premiada e da operação como um todo.

Agora Carlos Fernando comete novamente, no seu mural do Facebook, uma resposta ao excelente artigo de Demétrio Magnoli, publicado ontem (24/06/2017), na Folha de São Paulo, que também foi comentado no artigo Pouco a pouco, os analistas políticos vão acordando.

Vale a pena ler os artigos linkados acima antes de analisar a nota de Carlos Fernando, reproduzida abaixo:

A voz da verdade que ressoa nos corações corrompidos se parece com os sons que retumbam nos sepulcros sem despertar os mortos. (Georges Jacques Danton – advogado e um dos líderes da Revolução Francesa)

A única motivação que encontro nesse artigo de Demétrio Magnólia (sic) é amedrontar as pessoas com ameaças sobre o caos que virá se não nos contentarmos com o pouco, com as migalhas de mudança que foram conseguidas até agora. Os argumentos de Magnoli têm os mesmos pais daqueles que tentam amedrontar a população com o caos econômico, e são primos daqueles que atemorizam os trabalhadores com supostos prejuízos de uma reforma na legislação trabalhista. Direita e Esquerda nos querem reféns igualmente. Querem que tenhamos medo da liberdade. Querem que acreditemos que somente eles podem nos salvar. Para isso só querem que cedamos nosso suor e sangue para mantermos a indecorosa festa desses vampiros.

Liberdade sempre assusta, mas o destino está nas nossas mãos. Para honrar o espírito da Revolução Francesa, lembramos que apesar do Termidor, os seus ideais prevaleceram e são hoje o coração de todo o mundo político ocidental.

Carlos Fernando dos Santos Lima – cidadão

As alegações do procurador são injustas e falsas. A motivação do autor (que ele, Carlos Fernando, reputa como única) não é “amedrontar as pessoas” e sim chamar a atenção para os métodos que estão sendo utilizados. Os argumentos de Magnoli não “têm os mesmos pais daqueles que tentam amedrontar a população com o caos econômico” (não há uma linha sobre isso, nem no artigo em tela, nem em qualquer publicação anterior do autor) e nem “são primos daqueles que atemorizam os trabalhadores com supostos prejuízos de uma reforma na legislação trabalhista” (onde ele leu isso?). A defesa (na verdade, ataque) de Carlos Fernando não se justifica. Na nota reproduzida acima ele não está discutindo com Demétrio Magnoli e sim tentando enquadrar o autor em uma das frentes que atacam a Lava Jato, à direita ou à esquerda (o que não se aplica ao artigo). O ataque, portanto, é gratuito.

Em seguida Carlos Fernando vem com duas alegações genéricas. Na primeira ele diz: “Querem que tenhamos medo da liberdade”. Ora, quem quer? E o que a liberdade tem a ver com isso? Por acaso caracterizar a ação de alguns procuradores (sobretudo o PGR, Rodrigo Janot) de estarem adotando procedimentos jacobinos, restringe a liberdade de quem? Não há mais liberdade de crítica? Todo reparo que se possa fazer à atuação dos procuradores é um ataque à liberdade?

Na segunda, ele – Carlos Fernando – diz: “Querem que acreditemos que somente eles podem nos salvar”. De novo cabe a pergunta: quem quer? Demétrio Magnoli por acaso se apresentou como salvador de qualquer coisa? Ou criticou, justamente, os que se apresentam como salvadores (os que se deixaram embalar “pela fantasia de que corporificam um Comitê de Salvação Pública”)?

A frase “querem que acreditemos que somente eles podem nos salvar” confirma pelo avesso o juízo de Magnoli: é como se o procurador estivesse dizendo, de maneira oblíqua, que somos nós – os cruzados do bem engajados na verdadeira campanha contra toda a corrupção – que podemos salvar alguma coisa. Salvar! Eis a palavra-chave.

Carlos Fernando termina sua nota com um parágrafo estranho:

“Liberdade sempre assusta, mas o destino está nas nossas mãos. Para honrar o espírito da Revolução Francesa, lembramos que apesar do Termidor, os seus ideais prevaleceram e são hoje o coração de todo o mundo político ocidental”.

Eis aí uma cabeça que não foi violada pela ideia de democracia. Ora, isso só confirma que Magnoli escolheu bem a comparação histórica. Eles – os procuradores salvacionistas – se acham mesmo missionários jacobinos (“o destino está em nossas mãos”). Os jacobinos, como se sabe, eram estatistas, assim como seus sucessores em linha direta: os bolcheviques. Ambos queriam usar o Estado para promover a mudança social que limparia o velho mundo por meio de grandes vassouradas.

É preciso informar a Carlos Fernando e aos seus pares que a democracia não foi reinventada na chamada revolução francesa e sim, mais de um século antes, na resistência à tirania de Carlos I na Inglaterra. E que não foram as ações de cortar cabeças que “são hoje o coração de todo o mundo político ocidental” e sim a vontade de viver sem um senhor, que está enraizada nos Bill of Rights do parlamento inglês na resistência ao poder despótico de Carlos I (o primeiro deles ainda em 1625). Sim, a democracia é, geneticamente, um processo de desconstituição de autocracia: foi assim com os democratas atenienses que resistiram à tirania dos psistrátidas, na passagem do século 6 para o século 5 AEC e foi assim quando os modernos reinventaram a democracia no século 17 na Inglaterra.

Os democratas atenienses e os membros do parlamento inglês não eram livres de toda corrupção. A democracia não é o regime sem corrupção e sim o regime sem um senhor (por certo os procuradores da Lava Jato não tiveram tempo nem de ler Os Persas, de Esquilo (472 AEC), onde aparece, pela primeira vez de forma escrita, o genos da democracia: referindo-se aos atenienses, em resposta à Atossa (viúva de Dario), ele escreve: “não são escravos nem súditos de ninguém”).

Se Carlos Fernando vivesse no século 5 antes de Cristo, em Atenas, Péricles, o principal expoente da democracia nascente, não escaparia da sua sanha persecutória, posto que ele foi acusado várias vezes de quebra de decoro e prevaricação (casou com uma mulher estrangeira, tida por prostituta, Aspásia, que não podia interferir como o fez na vida da polis – que não era a cidade-Estado, como se julga e sim a koinonia política), corrupção (desvio de dinheiro de obras públicas, como o Partenon) e nepotismo (nomeou um filho ilegítimo para um cargo público). Um Comitê de Salvação Pública na Atenas daquela época, varreria tudo em nome da limpeza, inclusive a democracia.

Os democratas atenienses não eram estatistas, não eram um corpo meritocrático querendo limpar a sociedade. A democracia tem uma raiz social, nasce das livres conversações na praça do mercado, não nos gabinetes de burocratas constituídos como um enclave estatal, que – a partir desse lugar – quisessem propor ao povo uma cruzada para limpar a cidade.

Os jovens procuradores têm muito que aprender sobre democracia. Mas eles não têm – ao que tudo indica – a necessária humildade para tanto. Infelizmente, eles parecem possuídos por um espírito vingador, como se fossem “agentes kármicos” que estão chegando para punir os maus e recompensar os bons. Os bons, é claro, são os que estão do seu lado, enquanto que os maus são todos aqueles que ousam criticar seu comportamento e suas concepções.

Ora, os democratas não reconhecemos nenhum Comitê de Salvação Pública. Sobretudo um comitê eleito por ninguém, mas aprovado por concurso estatal, como se o saber específico de alguma matéria jurídica, política, sociológica, histórica ou antropológica, conferisse a alguém (a algum ator organizado corporativamente: sim, o MP é uma corporação) poderes regulatórios aumentativos em relação aos demais. Isto é, não há como negar, um enclave autocrático na democracia dos modernos (a democracia realmente existente hoje, nos países que a adotam), pois a matéria prima da democracia é a opinião (doxa), não o saber (seja techné ou episteme). Rigorosamente falando, eles são funcionários do Estado que cumprem uma função no establishment, aceitável no arranjo institucional dos poderes vigente (embora nunca se saiba bem que Poder da República realmente são: se judiciário ou executivo); mas não, stricto sensu, não nos representam.

O debate em curso entre Demétrio Magnoli e o procurador Carlos Fernando é esclarecedor. Revela claramente a visão de democracia da força-tarefa da Lava Jato, além de deixar vazar a intolerância de quem não admite críticas ou reparos na sua missão redentora.

Eis o quarto artigo da série, (publicado em 04/07/2017)

Já tratamos deste tema na série de três artigos intitulados A visão de democracia da força-tarefa da Lava Jato (ver acima). Também já reproduzimos o artigo de Demétrio Magnoli, na Folha de São Paulo, em 24/06/2017, intitulado A Lava Jato perecerá se não for contido o espírito jacobino, que foi respondido por uma nota de Facebook, pelo procurador Carlos Fernando dos Santos Lima.

Magnoli, por sua vez, respondeu a nota do procurador com um artigo na própria Folha, em 1 de julho, que reproduzimos abaixo:

Janot dá a senha de combate para procuradores messiânicos

Demétrio Magnoli, Folha de São Paulo, 01/07/2017

O procurador Carlos Fernando dos Santos Lima cumpre dupla jornada, na força-tarefa da Lava Jato e nas redes sociais. Dias atrás, na sua encarnação de agitador de Facebook, postou uma réplica à coluna na qual apontei violações legais cometidas por Janot na “operação Joesley” (Folha, 17/6). Ele nem mesmo tenta refutar minhas críticas – mas, excitado, decreta que a “única motivação” do texto seria “amedrontar as pessoas com ameaças sobre o caos que virá se não nos contentarmos com as migalhas de mudança conseguidas até agora”. A técnica de polêmica selecionada evidencia que Carlos Fernando está no lugar errado e, aqui, refiro-me ao Ministério Público, não ao Facebook.

Carlos Fernandos povoam as redes sociais do mundo. Nos EUA, diante de uma contestação à proibição de entrada de muçulmanos, sua versão trumpiana retruca que o crítico deseja facilitar o terrorismo. Na Venezuela, face à descrição do caos social vigente, sua versão chavista assegura que o dissidente almeja o triunfo do “imperialismo ianque”. Incidentalmente, nosso procurador conhece, por experiência própria, a técnica de atribuição de motivações ocultas: os Carlos Fernandos das guerrilhas virtuais petistas garantem que, ao falar sobre a corrupção na Petrobras, Carlos Fernando tem como “única motivação” a entrega do pré-sal ao “Império”.

Se eu fosse um Carlos Fernando, alegaria que, ao fantasiar-se de revolucionário francês diante de uma Bastilha de papel, Carlos Fernando nutre a “única motivação” de cavalgar a Lava Jato para inaugurar uma carreira política inflada pela demagogia. Como não sou, faço como prega Luís Roberto Barroso (“não coloco em questão a boa-fé de ninguém” pois “as pessoas divergem em função de ideias”), descartando a trilha fácil da especulação sobre maléficas motivações alheias. De fato, acho que o procurador acredita genuinamente no que proclama. Ele não é um oportunista, mas um missionário. O que nos conduz ao tema de interesse público: o papel do Ministério Público na ordem política da democracia.

Janot escreveu que o “foco do debate” sobre o acordo com Joesley deve ser “o estado de putrefação de nosso sistema de representação política”. A sentença é uma senha de combate entre procuradores messiânicos, que a repetem obstinadamente. Na minha avaliação (que está longe de ser consensual), nosso sistema político entrou, realmente, em decomposição. Mas tal diagnóstico pertence ao universo de referências do analista político, não podendo servir como bússola para o Ministério Público. A diferença é que, ao contrário dos procuradores, não possuo as prerrogativas de investigar, acusar e pedir prisões.

O Ministério Público tem poderes que me são vedados. Em contrapartida, tem a obrigação de se nortear, exclusivamente, pela letra da lei. A mobilização de uma análise política em defesa da imunidade judicial de Joesley evidencia que, nesse episódio, a lei foi jogada na célebre “lata de lixo da História”. Sugiro que Raquel Dodge, procuradora-geral indicada, reserve dois minutos para ler a postagem de Carlos Fernando no Facebook. Ela ilumina as raízes da deriva de Janot rumo aos mares revoltos da política.

Registrei, na coluna, as inclinações jacobinas de uma ala do Ministério Público – e apontei o risco de uma reação termidoriana destinada a cercear a Lava Jato. Carlos Fernando replicou com uma exaltada apologia da Revolução Francesa (cujos “ideais prevaleceram”, “apesar do Termidor”) que a identifica, implicitamente, ao Terror jacobino. O procurador ainda não aprendeu que um dos legados da experiência revolucionária francesa é a disjunção entre justiça e Terror (termidoriano ou jacobino). Por isso, escolheu Danton, um dos criadores do Tribunal Revolucionário, para citar em epígrafe, esquecendo-se de que seu herói morreu na guilhotina jacobina, condenado sob a acusação de enriquecimento ilícito num processo farsesco.

Pois bem. Hoje (04/07/2017) o militante Carlos Fernando publicou, na mesma Folha, uma réplica – como sempre pedestre, moralista e expondo todo o analfabetismo democrático comum ao pensamento dessa ala jacobina do Ministério Público – que reproduzimos abaixo:

Brasil atualmente está submetido ao terrorismo do medo

Carlos Fernando dos Santos Lima, Folha de São Paulo, 04/07/2017

Em resposta ao artigo publicado na Folha de S.Paulo do último sábado, dia 1º de julho, sob o título “Janot dá a senha de combate para procuradores messiânicos”, de autoria de Demétrio Magnoli, só podemos dizer que o Brasil está submetido ao terrorismo do medo. Há muito os propagandistas políticos descobriram que o medo é mais forte que a esperança.

É mais fácil culpar o “outro” que admitir nossa falta. É fácil angariar apoio dividindo o país em esquerda e direita, em coxinhas e mortadelas, em isso e aquilo, esquecendo-se que somos parecidos uns com os outros.

A maioria de nós acorda pela manhã pensando em trabalhar para sustentar sua família, em como os impostos comem parte do nosso suor, em qual será o futuro de nossos filhos, e assim por diante. Somos semelhantes em sonhos e esperanças.

Por outro lado, ter esperança tornou-se brega. Falar em melhorar o país é tachado de messiânico. Lutar por essa melhora passou a ser jacobino.

Direita e esquerda falam em “tribunais revolucionários”, em “tribunais de exceção”, como se não fôssemos uma democracia – imperfeita, mas, ainda assim, uma democracia em que prevalece o Estado de Direito.

A Lava Jato representa a esperança. De repente, um golpe de sorte impediu a operação de ter sido morta no nascedouro e confirmou aquilo que há muito intuíamos.

Sabemos hoje como são financiadas as eleições em nosso país. Conhecemos agora como partidos e políticos enriquecem à custa dos impostos que pagamos.

Temos ciência dos conchavos, da distribuição de cargos apenas para a produção de propina. Agora há esperança de que, sabendo o diagnóstico de nossa doença – a corrupção –, possamos usar dos remédios para a cura.

Um desses remédios é a lei penal. E como lei, deve valer para todos. Obediente a esse princípio, a investigação de um pagamento de propina a um ex-diretor da Petrobras cresceu exponencialmente para revelar como partidos da base do governo Lula, sob o comando deste, usaram dessa estatal para fazer caixa para seus projetos de poder.

Mas não só, revelou-se logo que outras estatais foram vítimas do mesmo crime. Até aí o maniqueísmo de alguns e o oportunismo de outros encontravam alguma racionalidade. Para aqueles que detestavam o PT, estava claro que este partido tinha criado a prática da corrupção no governo federal.

Já os oportunistas viram a oportunidade de tirar o PT do poder. Para os simpatizantes do PT, não passava de trama das elites. Quanto aos petistas envolvidos nos crimes, acreditaram em intenções políticas dos investigadores.

Todos estavam errados. A resposta veio quando as investigações chegaram aos outros partidos, inclusive da oposição. Dessa forma, aquele Jucá que vai nas manifestações vestido de amarelo teve reveladas suas relações espúrias com a Odebrecht.

Aquele Temer que se colocou como um estadista para substituir Dilma na Presidência acaba sendo denunciado por corrupção no mandato. Aquele Aécio que usa das revelações da investigação para acusar o PT de corrupção na campanha presidencial é gravado solicitando milhões de um empresário.

Nesse momento os argumentos caíram por terra. Hoje a população sabe que a Lava Jato é uma tentativa séria de investigar, processar e punir TODOS os crimes de corrupção de que se tenha notícia, de que partido ou político forem. Só lhes restou mudar inteiramente o discurso.

Agora unidos entre si, políticos, partidos e seus simpatizantes atemorizam a população com terrores econômicos e um suposto “estado de exceção”. Mentem para implantar o terror, para novamente dividir. Mentem para se salvar e salvar o seu modo de fazer política.

O final desse embate entre esses mercadores do medo e o Ministério Público terá consequências para o futuro de nosso país, seja pela prevalência do medo e do divisionismo, seja pela prevalência da esperança e da ética.

É lamentável. Insistir na divisão da sociedade entre corruptos e não-corruptos (supostamente “o povo”, como faz seu colega Dallagnol – um conceito populista e manipulador) é quase pior do que insistir na divisão, constituinte da esquerda, esquerda x direita. E é quase pior porque, no momento atual, há um agravante: ao confundir a verdadeira (e única) organização política criminosa (aquela dirigida por Lula, Dirceu e seus sequazes) com qualquer quadrilha de batedores de carteira da política, ela fornece uma razão para tratar igualmente os desiguais, permitindo que os violadores da democracia escapem, fugindo para frente, escorregando pelos desvãos da carcaça podre do nosso sistema político. Ora, onde todos são igualmente culpados, os mais culpados viram menos culpados e têm grandes chances de acabar impunes. Pior: ao contrário das quadrilhas de ocasião, formadas por políticos que se associaram para delinquir cometendo crimes comuns, a organização política que dirige de fato o PT escapará da justiça. Não foi e não será desbaratada. Querem uma evidência? Do núcleo duro dessa organização só há um dirigente preso (em regime fechado): João Vaccari.

Não há muito o que analisar. Os textos de Carlos Fernando falam por si. Podemos acrescentar mais um, expelido ontem por ele no seu mural no Facebook:

Desistiu de lutar porque o STF soltou Rocha Loures e deixou de prender Aécio? Confirmou suas suspeitas de que não há esperança para o Brasil porque o TSE se negou a cassar a chapa Dilma – Temer? Desacreditou da possibilidade de um país melhor depois de ver José Dirceu livre?

Sempre que conversam comigo nas ruas ouço pedidos para que não desistamos de lutar. Muitos me perguntam porque passei a escrever com tanta frequência aqui no meu Facebook. Alguns ainda me alertam que talvez eu fale demais, talvez seja muito incisivo ou inconveniente. Até colunistas de jornal me chamam de jacobino ou messiânico.

Passei a escrever aqui porque precisava dizer que não podemos desanimar nem desistir, apesar das dificuldades. Era preciso falar isso nesse momento em que muitos pararam de apoiar a Lava Jato. Muitos desses eram apenas falsos apoiadores, como políticos como Romero Jucá, que frequentaram as manifestações para tirar fotos de coraçãozinho para seus eleitores, ou movimentos de rua composto de jovens que já nasceram velhos. Esses acreditaram que nosso objetivo era apenas desarticular a corrupção do PT. Queriam apenas chegar ao poder rapidamente. Enganaram-se.

Outros ingenuamente acreditaram, e ainda acreditam, que toda a corrupção do Brasil aconteceu nos últimos 13 anos por conta do PT. Triste engano que não resiste a uma aula básica de história. As organizações criminosas que enfrentamos sempre estiveram no poder, seja o nome do partido que for. Essa sempre foi a maneira de fazer campanha política no Brasil. O PT só sistematizou isso e foi com muita sede ao pote.

Mas pior que todos aqueles abertamente contra as investigações, são aqueles que usam o nome de Sérgio Moro, ou da Força-tarefa Lava Jato para colocar mensagens de apoio a Temer. Eu assinei a denúncia de Lula e as alegações finais em que foi pedida a sua condenação, e assinaria a denúncia contra Temer e o pedido de prisão de Aécio. Não existem duas Lavas Jatos, assim como não existem dois Ministérios Públicos Federais. O PGR Rodrigo Janot tem nosso apoio.

Trabalhamos na Lava Jato em obediência à lei e à Constituição. Muitos podem dizer que deveríamos ter feito isso ou aquilo, outros nos criticam porque não fizemos aqueloutro. Pacientes ouvimos as críticas e temos as nossas razões para cada decisão tomada. E continuamos trabalhando. A história dirá o que foi certo ou não em nossa estratégia.

Não há vergonha de perder uma luta se houver sido feito o que era preciso dentro da lei. Mas ainda há muito pelo que lutar. O importante agora é que a Câmara dos Deputados autorize o julgamento de Temer. Cada um de nós pode fazer algo a respeito. #deixeosupremojulgar

Vejam que não se trata da fala de um membro de um poder da República (é verdade que não se sabe bem qual, mas mesmo assim um poder) e sim de um militante político. Um militante burro que não percebeu que a diferença entre a corrupção de Lula e a corrupção de um Temer qualquer não está apenas ou principalmente na dose e sim no propósito.

Com mais esta nota (reproduzida imediatamente acima) o procurador da força-tarefa da Lava Jato Carlos Fernando confirma suas dificuldades coma democracia e declara seu apoio incondicional ao conspirador geral da República Rodrigo Janot e à armação que foi feita, com a delação de Joesley, para dizer que todos os corruptos são iguais (ou seja, que Berlusconi é a mesma coisa que Mussolini). É muito triste para a democracia ler isso, vindo de uma pessoa que muitos admiravam. É a Lava Jato sendo morta pelos jacobinos que a comandam.

Mas a culpa não é totalmente desses jovens procuradores de orelhas limpas, tementes a deus, que honram seus casamentos, suas famílias e seus empregos e que resolveram fazer sua própria revolução para limpar o país, repetindo o que fizeram os bravos tenentes de 1922. O que tornou possível o surgimento dessa espécie de tenentismo de toga (ou sem toga, mas sempre agarrado a uma toga) do parquet, foi um arranjo institucional mal-feito do ponto de vista da democracia.

Voltamos assim ao tema de interesse público proposto por Demétrio Magnoli na sua última coluna na Folha (reproduzida acima) – tema que já discutimos aqui: qual o papel do Ministério Público na ordem política da democracia?

Ao determinar o atual papel institucional do Ministério Público, a Constituição de 1988 autorizou uma corporação (privada, sim, como toda corporação) de militantes a atuar a partir do Estado, ou seja, legitimou que agentes da policy fizessem politics (como estão fazendo, a torto e a direito, diariamente, fora dos autos e além de suas competências como funcionários do Estado, gente como Carlos Fernando e Deltan Dallganol). É uma aberração porque privatiza corporativamente a esfera pública.

Não estando bem definido a que poder da República representa, a corporação do Ministério Público quer-se como um poder autônomo e acima dos demais poderes.

Sim, a que controle externo se submete o Ministério Público? A uma corporação, composta, em maioria, por membros do próprio MP? Mas aí é controle interno – além de tudo corporativo (quer dizer, privado) – não externo.

[…]

Se é este o controle externo a que se submete o MP, então não há como não concluir que não há controle externo algum. Ademais, o PGR – Procurador Geral da República – responde a um conselho que ele próprio preside.

E o PGR, ainda que isso não esteja na Constituição, é escolhido, pelo presidente da República, numa lista tríplice eleita pelo próprio MP, tendo seu nome submetido ao Senado.

Não se sabe onde os constituintes de 1988 estavam com a cabeça para instituir uma espécie de quarto poder (autônomo), pois, a rigor, o MP, não fazendo parte dos demais Poderes da República (Executivo, Legislativo, Judiciário), não se submete senão a si mesmo.

Quando atuam no estrito limite constitucional de suas funções, a coisa vai mais ou menos bem. Mas quando resolvem fazer política (não política pública = policy, mas política privada mesmo = politics), tudo complica para a democracia. Temos então uma versão oblíqua de partido fundido ao Estado, que carateriza ditaduras, um partido oficial – instituído constitucionalmente como um enclave estatal – que, embora não se chame de partido, funciona como tal. Representantes eleitos podem fazer isso em democracias, mas funcionários do Estado, burocratas de carreira, admitidos por concurso, não. Se puderem, subvertem o arranjo de freios e contrapesos da democracia, deprimindo o sistema imunológico do sistema representativo. É como se o próprio organismo autorizasse uma de suas partes a destruir as outras – tudo em nome da lei. E as partes escolhidas para serem destruídas, no caso presente, são justamente aquelas ex parte populis, que receberam o munus da representação imediata, fonte principal da legitimidade democrática.

Sim, tudo isso poderia ser feito por uma reinvenção do sistema, com a eleição de uma assembléia nacional constituinte, mas nunca por uma corporação de burocratas estatais a pretexto de limpar a sujeira da política, regenerar o tecido institucional que foi corrompido pelos maus costumes dos políticos que cometem crimes comuns (e além de tudo ignorando as forças políticas organizadas precipuamente para alterar o DNA da nossa democracia ou igualando essas forças perigosíssimas aos demais agentes de um sistema que apodreceu, aproveitando-se de uma gritante falha da Constituinte de 1988: a de não ter tipificado, em nosso arcabouço legal, o instituto do crime político contra a democracia).

Mais cedo ou mais tarde vamos ter que nos debruçar sobre isso. Mas enquanto a oportunidade não se apresenta, é dever da sociedade democrática barrar as pretensões jacobinas da corporação dos procuradores que querem reformá-la – como se tivessem o poder de fazer alterações em nós a partir de seus empregos no Estado.

Sergio Moro

Agora o artigo de 2004 de Sérgio Moro, (que comentei em um post de 28/10/2020)

Sim, não é de hoje. Ao publicar o texto “Considerações sobre a Operação Mani Pulite”, ainda em 2004, Moro não estava apenas relatando um caso italiano de cruzada de limpeza ética na política, a Operação Mani Pulite (Mãos Limpas). Não. Ele estava falando para o Brasil. Seu artigo é uma proposta de saneamento dos meios políticos nacionais. Dez anos depois, em março de 2014, seu intento foi alcançado com a instalação da Operação Lava Jato.

Os pontos principais da estratégia e das táticas que seriam, uma década depois, adotadas pela Lava Jato, foram antecipados por Moro em 2004:

1 – Deslegitimação do sistema político,

2 – Crítica à ineficiência ou excesso de liberalismo do sistema judicial e das leis brasileiras,

3 – Prisões antes do julgamento e coação dos presos para forçar delações

4 – Vazamentos para a imprensa,

5 – Conquista da opinião pública,

6 – Movimentos sociais em apoio à cruzada de limpeza ética e…

7 – Não dito, mas subentendido: constituição de uma força política com características jacobinas e restauracionistas após a terra-arrasada. A Lava Jato ensejou o surgimento do lavajatismo, um movimento claramente político que visava não apenas a rigorosa aplicação das leis no combate à corrupção, mas a conquista do poder de Estado.

Não vou reproduzir todo o artigo comentado. Ele pode ser lido neste link: O texto de Moro sobre a Mani Pulite com alguns comentários.

O fato é que temos aí uma evidência cabal de incompreensão da democracia. E isso muito antes de Moro ter feito o que fez, a saber:

Ter condenado Lula num processo parcial e prendê-lo, tirando o principal adversário de Bolsonaro da disputa e, ato contínuo, ter abandonado a magistratura para ser auxiliar daquele que foi diretamente beneficiado por sua atuação. Isso deveria ser um escândalo em qualquer lugar civilizado.

Ter sido, desde o início, um líder da “República de Curitiba”. Aquela estrovenga, como se sabe, não era uma democracia e sim uma armação reacionária de paladinos da justiça para limpar o mundo de toda corrupção que logo virou comitê eleitoral de Bolsonaro. Ou Moro, Deltan e Cia não atuaram como cabos eleitorais de Bolsonaro?

Repito o que já disse em um artigo mais recente (de 13/11/2021).

Se Moro tivesse alguma noção de democracia teria votado em Bolsonaro? (Ou não votou?)

E a “República de Curitiba” teria virado comitê eleitoral de Bolsonaro? (Ou não virou?)

E Moro teria abandonado a magistratura para ser auxiliar de Bolsonaro? (Ou não abandonou?)

Ressuscitar, com a candidatura Moro, a “República (reacionária) de Curitiba” – aquela que virou em 2018 um comitê eleitoral do capitão e foi tão promovida por Deltan, Carlos Fernando, Bia Kicis e Carla Zambelli – pode acabar sendo o mesmo que manter uma espécie de bolsonarismo sem Bolsonaro.

Só um analfabeto democrático comemora a candidatura Moro porque ela vai tirar votos de Bolsonaro. Deixar o morolavajatismo da “República de Curitiba” crescer e se consolidar como uma força reacionária e antipolítica no Brasil é um risco alto para a nossa democracia.

A candidatura Moro pode ser resumida assim. Se Bolsonaro tivesse mantido o combate à corrupção ao estilo lavajatista (tipo cruzada jacobina de limpeza ética), tudo estaria bem no Brasil. Ou seja, se for para livrar o mundo dos corruptos, pode-se erodir à vontade a democracia.

Mas é preciso entender o que é democracia. Não é um mundo limpo. Não é a mesma coisa que caça aos corruptos. Os ditadores Salazar e Castelo Branco eram honestos. Como repito sempre que posso, os autocratas espartanos (que apoiaram e financiaram dois golpes contra a democracia ateniense) eram honestíssimos.

A conclusão se impõe. Moro e a força-tarefa da Lava Jato não têm muita noção do que seja democracia (liberal). Isso tudo sem falar da atuação de Moro quando já estava no cargo de ministro bolsonarista da Justiça: calou frente a corrupção da família Bolsonaro – deu declarações de que “Caixa 2 não é crime”, “o Ônix se arrependeu e me pediu desculpas” e “os filhos do presidente já deram todos os esclarecimentos” – tentou passar a “licença para matar” para a polícia (desde que o agente da justiça preemptiva estivesse tomado por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”) e parou somente quando foi impedido de continuar aparelhando PF e Coaf, como é de conhecimento público. E, por último, tudo isso sem falar nas suas declarações autocráticas de agora, já como pré-candidato, ao propor um tribunal de exceção para punir corruptos tomando como modelo a Ucrânia.

Não, Moro e a força-tarefa da Lava Jato não são atores democrático-liberais. São reacionários travestidos de conservadores.

É por isso – e não por outra razão qualquer – que os morominions são tão parecidos com os bolsominions. Porque, em parte, eles eram bolsominions mesmo. Tinham orgasmos com a tal “República de Curitiba”, que limparia o mundo dos maus, mas que virou apenas um comitê eleitoral de Bolsonaro. Reacionários disfarçados de conservadores.

Os militantes morolavajatistas (os morominions) abandonaram Bolsonaro quando descobriram que ele não era um cruzado da limpeza ética. Na verdade queriam na presidência alguém que nos salvasse das “pessoas más”. Pensaram que ao votar em Bolsonaro estavam votando em Moro. A emoção é a mesma: salvacionista.

Salvacionista e mítica. Toda vez que você é possuído por uma pulsão de limpar o mundo é o mito do pecado original que está se manifestando. Na verdade, você não se acha limpo o bastante e então quer se limpar nos outros. É assim que nascem as cruzadas de limpeza ética. E o gozo – que foi tão estimulado por Deltan, Carlos Fernando e Moro – por ver uma cabeça rolar.

O artigo quase-bom do Pablo Ortellado sobre a concepção de democracia do PT

Moro é fascista?