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A conversão à democracia

Se você diz que sempre foi democrata, está mentindo. Porque o mundo, tal como está organizado, não enseja nenhum aprendizado “natural” ou automático da democracia. É preciso remar contra a correnteza. Eu não nasci democrata, nem consegui ter um entendimento profundo da democracia até a queda do muro de Berlim. Nem você, embora possa ter feito essa opção em outra época, antes ou depois de 1989. Não é algo que se traga no sangue ou que se adquira no berço. Não é um comportamento que possa ser adquirido pela convivência familiar (sobretudo se a família em questão for a monogâmica, mas o mesmo vale para qualquer tipo de família). É uma conversão. Mas não, como nas religiões (inclusive nas “religiões laicas”), como a adesão a um conteúdo, a uma doutrina, a uma teoria ou a uma filosofia ou visão de mundo. É uma conversão prática a um tipo de comportamento diante do conflito, que não recusa o conflito (e nem encara-o como uma disfunção) e sim que tenta regular o conflito de modo pazeante e não beligerante.

Para entender isso é preciso compreender que a democracia é um processo de desconstituição de autocracia que se instala quando adotamos – sob autocracias – modos não guerreiros de regulação de conflitos. É claro que esse modo só perdurará por tempo suficiente para se expandir e se generalizar na base da sociedade e no cotidiano do cidadão na medida em que nossos padrões de organização forem menos centralizados do que distribuídos. Porque há um condicionamento recíproco (não uma relação de causação) entre modo de regulação e padrão de organização.

O que chamamos de democracia não é um modelo de sociedade ideal a ser alcançado no futuro e nem, muito menos, um estado original, não conspurcado pelo poder ou pela civilização, de convivência social. Os Yanomami e os Pirahã não são democráticos e é um absurdo aplicar tal conceito à sociedades ditas primitivas (paleolíticas ou neolíticas e mesmo aos grupos humanos – ou até de homínidas ou proto-homínidas – anteriores). A democracia foi uma brecha aberta na civilização patriarcal, que só faz sentido, portanto, na civilização patriarcal. É apenas um modo de regulação de conflitos que desconstitui a dinâmica que reproduz autocracia, ou seja, a guerra (com efeitos distributivos sobre os padrões hierárquicos de organização).

Mas se democracia é desconstituição de guerra, isso não significa que todas os agrupamentos humanos não guerreiros sejam democráticos. Antes de qualquer coisa é preciso entender que a guerra não é o conflito violento, mas um engendramento baseado na construção de inimigos para organizar cosmos sociais segundo padrões hierárquicos e regidos por modos autocráticos de regulação. Em seguida é necessário perceber que os grupos anteriores à civilização patriarcal (ou às hordas belicosas que, provavelmente, a geraram) não eram guerreiros, no sentido acima, ainda que houvesse conflito violento entre eles, assim como há entre animais não humanos. Aliás, a mais refinada, cruel e desumana forma de guerra – retratada em muitas distopias ficcionais e experimentada, em parte, em algumas ditaduras – acontece sem violência física explícita. O estado de guerra permanente no qual o conflito é encarado como uma disfunção (malfunction) do sistema é a culminância da civilização dos predadores. Agrupamentos que adotam modos não guerreiros de regulação de conflitos só são democráticos quando ocorrem na civilização dos predadores.

Então acho engraçado quando aparecem pessoas fazendo críticas ao passado de alguém que não foi democrata sempre, como se elas fossem (tivessem sido) democratas desde criancinhas. Ninguém é. É um caminho. Felizmente, para mim, consegui percorrer esse caminho. Alguns, que afetam espanto quando digo que fui de esquerda até o final dos anos 80, não conseguiram ter a mesma sorte (do meu ponto de vista, do ponto de vista dos democratas). Mas a autocracia não tem a ver com a esquerda, nem com a direita. Tem a ver, exatamente, com a contraposição esquerda x direita (ou seja, com a guerra: seja a guerra quente, seja a guerra fria, seja a política como continuação da guerra por outros meios, ainda que praticada sem violência – não importa: tudo é guerra). É a guerra entre esquerda e direita que constitui a esquerda e a direita (como se sabe, foi a esquerda que inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita). Assim, ser de esquerda para combater a direita ou ser de direita para combater a esquerda, significa sempre militância autocrática. Entenda-se que isso não diz respeito, como se apregoa comumente, a conteúdos específicos e sim a modos. Quando a política (o modo de regulação de conflitos) deixa de ser uma questão de modo e passa a ser uma questão de lado (de que lado se está), o agente já foi capturado pela autocracia (e já está reproduzindo autocracia).

Descobri isso tudo bem tarde, o que ainda é mais surpreendente. Que todos os que organizam ou se subordinam voluntariamente à organizações hierárquicas regidas por modos autocráticos, sejam consideradas de esquerda ou de direita, religiosas ou laicas, empresariais, estatais ou sociais, estão sob a influência (para usar a conhecida metáfora de Star Wars) do “dark side of the Force”. E que todos que advogam a guerra (seja contra quem for) como modo de resolver conflitos, estão infectados pelos mesmos malwares da civilização patriarcal (hierárquica e guerreira).

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