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A democracia é radical

Este é outro surpreendente – e também pouco conhecido – artigo de John Dewey (1937), intitulado A democracia é radical. Incrível que os teóricos da autocracia disfarçados de teóricos da democracia (como Boaventura de Souza Santos e outros professores marxistas) que acham que inventaram a expressão ‘democracia radical’, nunca tenham citado – certamente porque nem sequer leram – o artigo, que reproduzo abaixo na íntegra.

Publiquei este artigo pela primeira vez em português, em 2008, juntante com Thamy Pogrebinschi, numa coletânea sobre os escritos políticos de John Dewey (não havia, até àquela época, nenhum texto político de Dewey em português):

FRANCO, Augusto & POGREBINSCHI, Thamy (2008): Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre: EdiPUC-RS, 2008.

A DEMOCRACIA É RADICAL

John Dewey

A democracia é radical (1937). Inicialmente publicado em Common Sense 6 (janeiro de 1937). Cf. Hickman, Larry A. & Alexander, Thomas. The Essential Dewey, vol. 1: Pragmatism, Education, Democracy. Bloomington: Indiana University Press, 1998: pp. 337-339. A menção, contida no livro acima, à obra de Dewey [LW 11: 296-99] se refere ao volume e às páginas das Later Works: 1925- 1953 in Boydston, Jo Ann (ed.). The Collected Works of John Dewey, 1882-1953. Carbondale and Edwardsville: Southern Illinois University Press, 1969-1991.

Há comparativamente pouca diferença entre os grupos na esquerda quanto aos fins sociais a serem alcançados. Há bastante diferença quanto aos meios pelos quais esses fins devem ser alcançados e pelos quais eles podem ser alcançados. Essa diferença quanto aos meios é a tragédia da democracia no mundo atual. Os governantes da Rússia Soviética anunciam que, com a adoção da nova constituição, pela primeira vez na história, eles criaram uma democracia. Quase ao mesmo tempo, Goebbels anuncia que o nazi-socialismo alemão é a única forma possível de democracia para o futuro. Possivelmente, há uma certa vaga aclamação daqueles que acreditam em democracia nessas manifestações. Trata-
se de algo que, após um período em que se desprezava e se ria da democracia, é agora aclamado.

Ninguém fora da Alemanha levará a sério a alegação de que a Alemanha é uma democracia, muito menos que é a forma aperfeiçoada de democracia. Mas existe algo a ser dito quanto à asserção de que os chamados Estados democráticos do mundo atingiram apenas uma democracia “burguesa”. Por democracia “burguesa” entende-se aquela na qual o poder reside, em última instância, nas mãos do capitalismo financeiro, a despeito das reivindicações que são feitas por um governo do povo, pelo povo e para o povo. Na perspectiva da história fica claro que a ascensão de governos democráticos tem acompanhado a transferência de poder dos interesses agrários para os interesses industriais e comerciais.

Essa transferência não ocorreu sem luta. Nessa luta, os representantes das novas forças de produção asseguravam que sua causa era a causa da liberdade e da livre escolha e iniciativa dos indivíduos. No continente e em menor grau na Grã-Bretanha, a manifestação política da livre iniciativa econômica adotou o nome de liberalismo. Os chamados partidos liberais eram aqueles que lutavam pelo máximo de ação econômica individualista com um mínimo de controle social, e assim o faziam no interesse daqueles empenhados na produção e comércio. Se essa manifestação expressa o significado pleno do liberalismo, então o liberalismo está ultrapassado e é uma insensatez social tentar ressuscitá- lo.

Pois o movimento falhou definitivamente em realizar seus propósitos de liberdade e individualidade, os quais eram as metas que ele estabeleceu e em nome dos quais proclamou sua legítima supremacia política. O movimento que ele defendia deu poder a uns poucos sobre as vidas e pensamentos de muitos. A capacidade de comandar as condições sob as quais a massa do povo tem acesso aos meios de produção e aos produtos que resultam de sua atividade vem sendo a característica fundamental da repressão da liberdade e a barreira ao desenvolvimento da individualidade ao longo de todos os tempos. É tolice negar que as massas ganharam acompanhando a mudança de mestres. Mas glorificar tais ganhos e não dar atenção às brutalidades e injustiças, ao alistamento e ao impedimento, à guerra aberta e encoberta que estão a serviço do presente sistema é hipocrisia intelectual e moral. A distorção e estupidificação da personalidade humana pelo regime monetário e competitivo existente tornam mentira a alegação que o sistema social atual é um sistema de liberdade e individualismo em qualquer sentido no qual liberdade e individualidade existam para todos.

Os Estados Unidos são a notável exceção à afirmação que a democracia surgiu historicamente por interesse de uma classe industrial e comercial, embora seja verdade que na formação da constituição federal essa classe se aproveitou muito mais do que devia dos frutos da revolução. E também é verdade que à medida que esse grupo ascendeu ao poder ele se apoderou também de cada vez mais poder político. Mas é simplesmente falso que este país, mesmo politicamente, seja meramente uma democracia capitalista. A luta atual neste país é algo mais do que um protesto de uma nova classe, seja ela chamada de proletariado ou batizada com qualquer outro nome, contra uma autocracia industrial estabelecida. Trata-se de uma manifestação do espírito nativo e duradouro da nação contra as invasões destrutivas das forças que são estranhas à democracia.

Este país nunca teve um partido político do tipo “liberal” europeu, embora em campanhas recentes o Partido Republicano tenha assumido a maioria dos slogans do mesmo. Mas os ataques dos líderes do partido ao liberalismo como uma forma de ameaça vermelha mostram que o liberalismo tem uma origem, cenário e objetivos diferentes nos Estados Unidos. Trata-se fundamentalmente de uma tentativa de realizar os modos democráticos de vida em seu significado pleno e com amplo alcance. Não há sentido específico em tentar salvar a palavra “liberal”. Há todos os motivos para não permitir que os métodos e metas da democracia sejam obscurecidos pelas denúncias contra o liberalismo. O perigo desse eclipse não é uma questão teórica; é profundamente prático.

Pois democracia significa não só os fins que até mesmo as ditaduras agora afirmam ser seus fins, segurança para os indivíduos e oportunidade para seu desenvolvimento pessoal. Significa também uma ênfase precípua nos meios pelos quais esses fins devem ser cumpridos. Os meios aos quais ela se dedica são as atividades voluntárias dos indivíduos ao invés da coerção; são assentimento e consentimento ao invés de violência; são a força da organização inteligente versus aquela da organização imposta de fora e de cima. O princípio fundamental da democracia é que os fins de liberdade e individualidade para todos apenas podem ser obtidos por meios que estejam de acordo com esses objetivos. O valor de sustentar a bandeira do liberalismo neste país, a despeito do que ele veio a significar na Europa, é sua insistência na liberdade de crença, de investigação, de discussão, de reunião, de ensino: no método da inteligência pública, em oposição a uma coerção que alega ser exercida em nome da liberdade suprema de todos os indivíduos. Há hipocrisia intelectual e contradição moral no credo daqueles que defendem a necessidade de ao menos uma ditadura temporária de uma classe bem como na posição daqueles que afirmam que o presente sistema econômico é um sistema de liberdade de iniciativa e de oportunidade para todos.

Não há oposição na defesa de meios democráticos liberais combinados com fins que são socialmente radicais. Não apenas não existe contradição, mas nem a história nem a natureza humana dão motivos para se supor que fins socialmente radicais possam ser atingidos por outros meios que não os meios democráticos liberais. A ideia de que aqueles que possuem poder nunca o renunciam exceto quando forçados por um poder físico superior a fazer isso aplica-se a ditaduras que alegam agir em nome das massas oprimidas quando na verdade atuam para exercer o poder contra as massas. O fim da democracia é um fim radical. Pois ele é um fim que não foi adequadamente realizado em país algum e em época alguma. Ele é radical porque requer uma enorme mudança nas instituições sociais, econômicas, jurídicas e culturais existentes. Um liberalismo democrático que não reconhece essas coisas no pensamento e na ação não tem consciência de seu próprio significado e do que esse significado exige.

Além disso, não há nada mais radical do que a insistência em métodos democráticos como os meios através dos quais as mudanças sociais radicais podem ser realizadas. Não é uma mera declaração verbal dizer que a confiança na força física superior é a posição reacionária. Pois este é o método do qual o mundo dependeu no passado e que está agora se armando a fim de perpetuar. É fácil entender por que aqueles que estão em contato próximo com as injustiças e tragédias da vida que caracterizam o sistema atual e que têm consciência de que agora temos os recursos para iniciar um sistema social de segurança e oportunidade para todos devem ser impacientes e ansiar pela derrubada do sistema existente por qualquer meio. Mas os meios democráticos e a realização dos fins democráticos são unos e inseparáveis. O ressurgimento da fé democrática como uma fé esperançosa, uma fé cruzada e militante, é uma realização a ser devotamente desejada. Mas a cruzada pode conquistar no máximo uma vitória apenas parcial a não ser que se origine de uma fé viva em nossa natureza humana comum e no poder da ação voluntária baseada na inteligência pública coletiva.

 

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