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A democracia sob ataque terá de ser reinventada

A democracia está sob ataque. Talvez o maior ataque, desde que surgiu no século 5 AEC. O número de democracias não tem aumentado no século 21, ao contrário do que aconteceu durante o século 20. Só na última década surgiram três novas ditaduras – Rússia, Venezuela e Turquia – e há processos em curso de autocratização, como na Nicarágua, na Bolívia e no Equador. Para piorar o quadro, o governo da FSB (ex-KGB) de Vladimir Putin, iniciou uma ofensiva para desmoralizar as grandes democracias. Contra a democracia americana, a FSB (aliada com o staff de campanha de Trump) desencadeou uma campanha sórdida para denunciar os democratas como parceiros de uma suposta conspiração financiada por Soros e os Clinton visando instaurar uma nova ordem mundial. Contra as democracias europeias, Putin começou pela França, tentando desmoralizar o candidato Macron para viabilizar a eleição de Le Pen (e a acusação desencavada pela FSB é a de que ele, Emmanuel Macron, manteve relações homossexuais).

Uma onda antidemocrática se avoluma. O mundo começa a ser infestado por populistas e neopopulistas autoritários (já no poder, ou querendo se eternizar no poder, ou querendo tomar o poder, ou querendo voltar ao poder) como Trump (USA), Putin (Rússia), Farage (Reino Unido), Kaczynski (Polônia), Le Pen (França), Orbán (Hungria), Erdogan (Turquia), Duterte (Filipinas) e Lula (Brasil). Isso para não falar de Maduro (Venezuela), Evo (Bolívia), Correa (Equador e seu sucessor de significativo nome: Lenin Moreno), Ortega (Nicarágua), Funes (El Salvador) e as FARC, que querem ser uma espécie de PT colombiano (estes últimos pilotados pelo ditador cubano Raul Castro). Todo esse pessoal é populista (incluindo o chamado neopopulismo chavista, bolivariano, lulopetista e kirchnerista). E os populismos (sobretudo os contemporâneos, reincidentes no século 21), como sabemos desde Enrique Krauze (2006), subvertem a democracia. Sua natureza, como assinalou recentemente Moisés Naim (2017), é ser amoldável a qualquer ideologia, seja de esquerda ou de direita, pois se trata de um comportamento político que tem como objetivo alcançar e conservar o poder. Nesse sentido, o populismo serve igualmente a Trump e a Maduro, a Evo e a Le Pen, a Orbán e a Lula.

Há, todavia, ideologias por trás do populismo, que também unificam a imensa maioria das forças antidemocráticos presentes na cena política do século 21, sejam consideradas de esquerda ou de direita. A principal delas é o anti-globalismo (que expressa, na verdade, uma recusa à globalização). Assim, tanto Trump quanto a Al Qaeda são antiglobis (aliás, os primeiros financiadores de Osama bin Mohammed bin Awad bin Laden foram os caciques locais da Arábia Saudita, apavorados com a possibilidade de perder seu poder de vida e morte sobre as populações do interior do país, diante da invasão dos costumes estrangeiros via rádio, TV e, depois, Internet). Tanto Putin quanto o Daesh são antiglobis: o primeiro porque quer voltar a um mundo bipolarizado e não multipolarizado e o segundo porque quer um mundo unipolarizado, comandado por um Estado único, um califado universal. Tanto Erdogan e seus bate-paus (que querem reviver a glória de uma nova Constantinopla islâmica e imperial), quanto os militantes petistas no Brasil (que acham que todo mal vem da entrega de nossas riquezas ao capitalismo internacional). E – pasme-se! – tanto os militantes petistas e psolistas, quando os militantes olavistas, bolsonaristas, militaristas, monarquistas tipo tefepistas e nacionalistas que saíram do armário e perderam o pudor de mostrar a cara à luz do dia na presente década.

Em todos esses países surgiram intelectuais, políticos, empresários, profissionais liberais e militantes – sejam considerados de esquerda ou de direita – justificando abertamente o populismo nacionalista (anti-globalização). Autocratas como Olavo de Carvalho, açulam uma militância direitista, antidemocrática e hidrófoba, que floresce em países como o Brasil, proferindo ensinamentos delinquentes como:

“Donald Trump tem diante de si o mesmo desafio que Ivan o Terrível e Dom Afonso Henriques, fundador de Portugal, venceram brilhantemente: apoiar-se no povão para subjugar a elite. Ou faz isso, ou morre.”

Seria cômico se não fosse trágico: “povão contra as elites”? Parece ou não parece Lula fazendo um discurso para a clientela do Bolsa Família em São José do Ribamar no Maranhão ou mesmo em um comício eleitoral na Praça da Sé?

Estas coincidências são apenas sinais mais fortes de que algo monstruoso se configurou nas últimas três décadas (em especial após o fim da guerra fria, com a queda do muro de Berlim e o colapso da União Soviética) e não percebemos. Forças tenebrosas se uniram tacitamente contra a globalização (os discursos de salão da esquerda na década de 1990 contra o neoliberalismo já eram um sinal disso, conquanto fraco). Esquerda e direita se unem – objetivamente, mesmo contra a eventual vontade de alguns dos sujeitos que as compõem – e o que as une é o medo da mudança de época diante do dealbar de uma sociedade-em-rede. Sim, o que as une é o estatismo, um localismo não-cosmopolita e, portanto, anti-globalização. Em termos de pensamento e comportamento políticos configura-se o pior cenário quando o tarado belicista Steve Bannon (principal assessor estratégico de Trump) e os irresponsáveis Black Blocs ficam do mesmo lado; ou melhor, quando pensam e agem do mesmo modo: para enfrear a processo democrático que, se não for barrado por um poder acima da sociedade (o poder centralizado do velho Estado-nação recauchutado), tende a ultrapassar fronteiras, derrubar muros e permitir o surgimento de padrões de relacionamento mais distribuídos, aumentando a conectividade e a interatividade geral, local e global (e, o que é mais importante, liberando e viabilizando a conexão local-global). Ora, isso é a definição de uma sociedade-em-rede. Atacar a democracia, nos tempos que correm, é – para todos os efeitos práticos – se opor à emersão da sociedade-em-rede.

E o pior é que contra essa aliança tácita, não há outro lado, porque não se trata de uma luta entre autocratas e democratas. O que há é mais autocracia, vinda de vários lugares (e de épocas passadas): na luta dos trumpistas e putinistas contra o jihadismo ofensivo islâmico, todos estão do mesmo lado! Trump justifica sua aproximação com Putin dizendo que é preciso combater o Estado Islâmico e outros grupos terroristas. Mas o outro lado a ser combatido é apenas um pretexto para autocratizar os regimes políticos e submeter as próprias sociedades (americana e russa) e os outros países, com a instalação do estado permanente de guerra. Pois “do outro lado” – financiando ou praticando o terrorismo – também estão estatistas aterrorizados com a sociedade-em-rede. Sim, os terroristas são os aterrorizados com a democracia, com a transformação de paredes em membranas permeáveis ao fluxo interativo da convivência social e… com a queda dos muros (culturais e físicos). No “outro lado” da guerra do século 21 – uma netwar, mas não porque seja travada por hackers e crackers e sim porque é uma guerra contra a net – quem encontramos? Não, por certo, democratas, mas teocratas e jihadistas: aiatolás iranianos que financiam grupos terroristas como o Hezbolah, ditadores islâmicos instalados no Afeganistão, na Arábia Saudita, na Argélia, no Azerbaidjão, em Barein, em Brunei, em Burkina Faso, no Cazaquistão, no Chade, em Comoros, na Costa do Marfim, em Djibuti, nos Emirados Árabes Unidos, na Eritreia, na Gâmbia, na Guiné, na Jordânia, no Kuwait, em Marrocos, na Nigéria, em Omã, no Qatar, na Síria, na Somália, no Sudão, no Tajiquistão, no Turcomenistão, no Uzbequistão e no Yemen.

E temos também as organizações da jihad ofensiva, algumas disfarçadas de pacíficas, como a Irmandade Muçulmana – no Egito, na Líbia, na Tunísia, na Palestina (sob o nome de Hamas) – e, outras, atuando ostensivamente, revelando o que são mesmo: Boko Haram (Nigéria), Al Shabab (Somália e redondezas), Lashkar-e-Taiba (Paquistão e Afeganistão), Al Qaeda (Oriente Médio, África, Ásia e alhures), Talibã (Afeganistão e Paquistão), Estado Islâmico (Iraque, Síria etc.), Gama’at Islamiya (Egito), Jamaat-e-Islami (Índia, Paquistão, Bangladesh, Sri Lanka, Caxemira), Jemaah Islamiyah (Indonésia, Malásia, Filipinas, Cingapura, Brunei) – todas terroristas!

Além de tudo isso, ainda temos as já conhecidas ditaduras ideológicas, marxistas-leninistas ou nacionalistas, algumas ditas populares: Angola, Belarus, Camarões, Camboja, China, Congo, Coréia do Norte, Cuba, Etiópia, Fiji, Guiné Equatorial, Guiné-Bissau, Laos, Madagascar, República Centro Africana, República Democrática do Congo, Ruanda, Suazilândia, Sudão do Sul, Togo, Vietnam e Zimbábue. E a Rússia engajada no mais saliente projeto expansionista e regressivo, querendo reeditar a guerra fria e fazer o mundo retrogradar para a política de blocos dos anos 60.

Poder-se-ia dizer que a democracia é a única esperança para um mundo tão acossado por tendências autoritárias. Na verdade, porém, não há esperança para um mundo configurado por esses atores estatistas. Não chegam a quarenta os países onde a forma Estado-nação deixou-se democratizar suficientemente sob a vigência de Estados de direito: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Cabo Verde, Canadá, Chile, Chipre, Costa Rica, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Finlândia, França, Holanda, Irlanda, Islândia, Itália, Japão, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Noruega, Nova Zelândia, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Checa, Suécia, Suíça e Uruguai (aos quais se pode somar algumas pequenas ilhas e micro-países democráticos, como Andorra, Bahamas, Barbados, Ilhas Marshall, Mauricio, Kiribati, Liechtenstein, Micronésia, Palau, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, São Marinho, Tuvalu).

Tirando essas democracias plenas ou mais ou menos plenas, não chegam a cinquenta os países com algum grau mínimo ou aceitável de democratização, como: Israel, Índia, Eslovênia, África do Sul, Lituânia, Grécia, Jamaica, Latvia, Eslováquia, Timor Leste, Panamá, Bulgária, Trindade e Tobago, Polônia, Indonésia, Argentina, Brasil, Croácia, Gana, Filipinas (sob risco com Duterte), Hungria (também sob risco com Orbán), Suriname, Tunísia (onde o recente processo de democratização está sendo derruído pela Irmandade Muçulmana e por outros grupos autocráticos), Servia, Romênia, República Dominicana, El Salvador (ainda sob risco, apesar da fuga de Funes), Mongólia, Colômbia, Lesoto, Peru, México, Hong Kong (dependendo do humor dos ditadores chineses), Malásia, Moldávia, Paraguai, Namíbia, Zâmbia, Senegal, Guiana, Papua Nova Guiné, Macedônia e Montenegro.

E… chega! Acabaram as democracias. O países que não foram mencionados nos parágrafos acima são regimes híbridos, extremamente vulneráveis à autocratização, quando não já caracterizáveis como protoditaduras, como: Guatemala, Albânia, Georgia, Equador, Honduras, Bolívia, Bangladesh, Benin, Ucrânia, Mali, Tanzânia. Malawi, Quirguistão, Quênia, Nicarágua, Uganda, Tailândia, Liberia, Butão, Líbano, Madagascar, Bosnia e Herzegovínia, Nepal, Moçambique, Serra Leoa, Paquistão, Cambodja, Iraque, Armênia.

O fato – que ninguém pode contestar – é que mais da metade da população do planeta não vive – e aliás nunca viveu – sob democracias: sejam plenas, defeituosas ou minimamente aceitáveis. Mas o problema é que a vaga autoritária continua crescendo, sobretudo agora com a ascensão do populismo num grande país, como os USA na era Trump, ainda que já viessem caindo há várias décadas nos rankings mundiais das democracias. A situação é dificílima, pois que temos, por um lado, a aliança tácita Trump-Putin (que quer voltar a um mundo bipolarizado e comandado por grandes centros de poder para colocar ordem na casa) e, por outro lado (que, como vimos, do ponto de vista da democracia, é o mesmo lado), o crescimento vertiginoso do jihadismo islâmico (e do próprio islamismo como projeto político-religioso que, com ou sem ataques terroristas, vai invadindo os países democráticos). Essa guerra tacitamente articulada deixa a democracia imprensada e obriga os governos dos países democráticos a reduzirem as liberdades dos seus próprios cidadãos em nome do combate ao perigoso inimigo.

É claro que se deve defender as democracias realmente existentes – as plenas, as mais ou menos plenas e as defeituosas – e também contribuir de alguma forma para que os regimes híbridos se democratizem. Sobretudo as democracias plenas devem ser defendidas, a despeito de todas as suas mazelas, porque elas permitem a continuidade dos processos de democratização por iniciativa da sociedade, coisa que as ditaduras e protoditaduras não permitem: quem duvidar deve tentar fazer experiências democráticas em Cartum, Pyongyang, Havana ou Bangui (e voltar, se puder, para nos contar o resultado). Mas é meio inútil esperar por processos de democratização que transformem os Estados-nações autoritários em respeitáveis Estados democráticos de direito. Não vai acontecer no horizonte visível (ou previsível). Algumas golfadas populistas, como a que levou Trump ao governo americano, serão revertidas no curto ou médio prazos. Mas isso só acontecerá onde já há experiência democrática suficiente. Países como a Rússia jamais serão convertidos à democracia, a não ser, talvez, no longuíssimo prazo.

Isso significa que a democracia morreu? Não! Significa apenas que ela não poderá mais continuar se expandindo – pelo menos, não do mesmo modo e no mesmo ritmo com que cresceu no século 20 – reduzida a modo político de administração do Estado-nação. O século 21 está revelando que um modo de regulação que não se sintonize ou não se sinergize com um padrão de organização não pode perdurar por muito tempo. Há um condicionamento recíproco entre ‘cracia’ e ‘arquia’. Agora que vivemos a emergência de uma sociedade-em-rede o problema fica, afinal, plenamente visível. Sim, o que está emergindo é uma sociedade cada vez mais distribuída, conectada e interativa, mas isso acontece em sociedades (sociosferas), não em Estados (clones resilientes da forma setecentista do Estado-nação europeu moderno). As sociedades emergentes atuais não cabem mais dentro dos Estados que remanescem. Mais cedo ou mais tarde, a coisa vai transbordar: as fronteiras opacas serão rompidas e os muros, de tão perfurados, desabarão.

A esperança, portanto, não está na conversão da velha forma Estado-nação (que – convenhamos – só deu plenamente certo quando moderada pela fórmula do Estado democrático de direito e em menos de trinta países). A esperança está nas sociedades que vão continuar desejando experimentar a democracia, por fora das grandes e pequenas pirâmides, em novos arranjos societários de vida e convivência social. Daqui para a frente deveremos experimentar a democracia não apenas no Estado, mas também nas organizações da sociedade (como a família, a escola, a igreja, a corporação – incluindo a universidade e o sindicato -, o quartel, as organizações da sociedade civil, o partido e a empresa hierárquica). Só assim será possível que uma nova onda democratizante ressurja no médio prazo, incidindo nas novas unidades de governança que surgirão independentemente do Estado-nação centralizador, como as cidades transnacionais, as cidades-pólo tecnológicas, as cidades-regiões, as redes de cidades e outros arranjos comunitários que, assumindo a direção autônoma do seu próprio desenvolvimento, constituirão também novas unidades políticas. Esta será a terceira invenção da democracia: a desinvenção da fórmula única de democracia sonhada pelos modernos. Serão, necessariamente, muitas democracias e não apenas reproduções do modelo único da democracia representativa.

Enquanto isso não acontece (ou melhor, acontece, mas nunca se consuma globalmente, posto que não haverá mais uma fórmula ou um modelo) os democratas terão de viver, cada vez mais, em ilhas democráticas – não exatamente nas ilhas citadas acima, como Malta e Kiribati, que oxalá consigam manter suas democracias, mas em ilhas na rede, que podem se configurar temporariamente em todos os lugares onde a influência do campo hierárquico que acompanha os governos autocráticos e seus aparatos não for forte o suficiente para impedir a sua existência: em cidades, em bairros, em comunidades de aprendizagem, de prática, de projeto e, inclusive dentro e à margem das instituições e entidades centralizadas atuais. Serão bolhas, bolhas dentro de organizações maiores, que existirão enquanto durarem. Essas bolhas não crescerão envolvendo o mundo todo. Mais cedo ou mais tarde as bolhas de hoje desaparecerão, dando origem a mais bolhas de amanhã. É assim – por multiplicação, reverberação e cloning – que o processo de democratização avançará daqui para a frente, inventando miríades de novos países sociais e não mais tentando converter à democracia os apenas cerca de duzentos países estatais que remanescem como herança de séculos de guerra e de política pervertida como continuação da guerra por outros meios.

A democracia sob ataque – e quem a ataca é sempre a guerra (ou seja, um modo não-pazeante de regulação de conflitos: seja a guerra quente, seja a guerra fria, seja a política praticada como arte da guerra), cujo objetivo real não é matar pessoas e sim matar a rede – terá de ser reinventada.

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