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A Desconexão Democrática

Já publicamos, em The Democratic Disconnect, várias referências (no original, em inglês) aos trabalhos de Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk (2016-2017), publicados no Journal of Democracy. Aproveitando a edição em português da revista, vamos reproduzir agora as traduções dos dois artigos principais desses autores: A desconexão democrática (2016) e Os sinais de desconsolidação (2017) – este último em um novo post.

A Desconexão Democrática

Publicado originalmente como “The Democratic Disconnect”, Journal of Democracy, Volume 27, Número 3, Julho de 2016 © 2016 National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins University Press. Journal of Democracy em Português, Volume 5, Número 2, Outubro de 2016 © 2016 National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins University Press

Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk

Roberto Stefan Foa é pesquisador do World Values Survey e do Laboratório de Pesquisa Social Comparada da Escola Superior de Economia em São Petersburgo, Rússia. Seus textos aparecem em diversos periódicos, livros e publicações da ONU, OCDE e Banco Mundial. Yascha Mounk é professor de teoria política do Departamento de Governo da Universidade Harvard e pesquisador do New America, um think tank com sede em Washington D. C. Sua tese de doutorado, sobre o papel da responsabilidade pessoal na política contemporânea e filosofia, será publicada pela Harvard University Press. Seus ensaios aparecem na Foreign Affairs, no New York Times e no Wall Street Journal.

Por quatro décadas, Die Welt, um dos principais jornais da Alemanha Ocidental, recusou-se a aceitar a existência da Alemanha Oriental. Como os editores do jornal esperavam que o regime entrasse em colapso em questão de anos, colocavam entre aspas toda citação da sigla RDA sempre que falavam da República Democrática Alemã. Enquanto outros jornais cobriam as políticas implementadas pela RDA, Die Welt sempre escrevia sobre a “RDA”.

No verão de 1989, a direção do jornal finalmente decidiu parar de fingir que o regime da Alemanha Oriental estava à beira do colapso. Os comunistas já estavam no poder há tanto tempo, e pareciam tão enraizados, que as aspas haviam se tornado uma embaraçosa negação da realidade. Em 2 de agosto de 1989, repórteres foram autorizados a abandonar as aspas ao escrever sobre a RDA pela primeira vez na história do jornal. Três meses depois, o Muro de Berlim caiu. Em 3 de outubro de 1990, a RDA deixou de existir.

Os editores do Die Welt julgaram terrivelmente mal os sinais dos tempos. Precisamente no momento em que deveriam ter percebido que o apoio ao regime comunista estava diminuindo, eles finalmente haviam aceitado sua persistência. Não estavam sozinhos. A incapacidade de cientistas políticos, formuladores de políticas e jornalistas de levar a sério a possibilidade de que o bloco soviético poderia entrar em colapso deveria servir de advertência. Mesmo os acadêmicos mais bem treinados e metodologicamente rigorosos estão sujeitos a supor que o passado recente é um guia confiável para o futuro e que eventos extremos não ocorrerão.

Há três décadas, a maioria dos acadêmicos simplesmente considerava que a União Soviética permaneceria estável. Essa suposição mostrou-se falsa. Atualmente, depositamos confiança ainda maior na durabilidade das democracias consolidadas das nações mais ricas. Mas há alguma base sólida para nossa confiança democrática? À primeira vista, parece haver motivos para preocupação. Ao longo das últimas três décadas, a confiança em instituições políticas como os parlamentos ou os tribunais de justiça sofreu uma queda abrupta entre as democracias consolidadas da América do Norte e Europa Ocidental, assim como o comparecimento às urnas. À medida que a identificação partidária enfraqueceu e a filiação partidária declinou, os cidadãos tornaram-se menos dispostos a apoiar os principais partidos. Em vez disso, passaram a apoiar movimentos com um único tema, votar para candidatos populistas ou apoiar partidos “antissistema” que se definem em oposição ao status quo. Mesmo em algumas das regiões mais ricas e politicamente estáveis do mundo, parece que a democracia encontra-se numa situação verdadeiramente desanimadora.

A maioria dos cientistas políticos, no entanto, recusa-se solenemente a encarar essas tendências como uma indicação de problemas estruturais no funcionamento da democracia liberal, menos ainda como uma ameaça à sua própria existência. Uma vasta gama de lideranças acadêmicas, incluindo Ronald Inglehart, Pippa Norris, Christian Welzel e Russell J. Dalton, geralmente interpreta essas tendências como indicações positivas de aumento da sofisticação política de gerações mais jovens de cidadãos “críticos”, menos propensos a se sujeitar às elites tradicionais. Para fazer uso de uma distinção feita por David Easton em 1975, muitos acadêmicos reconhecem que a “legitimidade do governo”, ou o apoio a governos específicos, está em declínio. Mas também insistem que a “legitimidade do regime”, ou o apoio à democracia como sistema de governo, permanece robusta. Portanto, as pessoas podem sentir cada vez mais que a democracia não está funcionando bem em seu país ou que o governo da vez está fazendo um trabalho ruim, mas isso só as faz apreciar ainda mais o fato de que a democracia liberal as permite protestar contra o governo ou votar para trocar os governantes. De acordo com essa visão, democracias como França, Suécia e Estados Unidos permanecem tão consolidadas e estáveis hoje quanto eram no passado.

Em nossa visão, entretanto, essa interpretação otimista pode não ser mais defensável. Com base nos dados das rodadas 3 a 6 das World Values Surveys (1995-2014), analisamos quatro importantes tipos de medidas que são indicadores claros de legitimidade de regime e não de legitimidade de governo: o apoio explícito dos cidadãos ao sistema como um todo; o grau no qual eles apoiam instituições-chave da democracia liberal, como direitos civis; sua disposição para avançar suas causas políticas dentro do sistema político existente; e sua receptividade a alternativas autoritárias, como um regime militar.

FOA 1

O que encontramos é bastante preocupante. Cidadãos em várias democracias supostamente consolidadas na América do Norte e Europa Ocidental não apenas se tornaram mais críticos em relação a seus líderes políticos, mas também se tornaram mais cínicos em relação ao valor da democracia enquanto sistema político, menos esperançosos quanto a sua capacidade de influenciar políticas públicas e mais dispostos a expressar seu apoio a alternativas autoritárias. A crise de legitimidade democrática se estende por um conjunto mais amplo de indicadores do que se julgava anteriormente.

Quanta importância os cidadãos de países desenvolvidos atribuem ao fato de viverem em uma democracia? Entre as gerações mais velhas, a devoção à democracia continua tão intensa e generalizada quanto seria de se esperar: nos Estados Unidos, por exemplo, pessoas nascidas durante o período entreguerras consideram a governança democrática um valor quase sagrado. Quando solicitadas a avaliar de 1 a 10 quão “fundamental” é para elas “viver em um país que é governado de maneira democrática”, 72% daquelas nascidas antes da Segunda Guerra Mundial responderam “10”, o valor máximo da escala, assim como 55% da mesma coorte nos Países Baixos. Mas, como mostra a Figura 1, a geração Y (os millennials, nascidos após 1980) é muito mais indiferente. Apenas um em cada três millennials atribui máxima importância a viver em uma democracia; nos Estados Unidos, o número é ligeiramente menor, cerca de 30%. [1]

O declínio do apoio à democracia não é apenas uma história de jovens mais críticos que os mais velhos; é, usando a linguagem das pesquisas de opinião, um efeito de “coorte” mais que um efeito de “idade”. Em 1995, por exemplo, apenas 16% dos americanos nascidos na década de 1970 (então no fim da adolescência ou início da fase adulta) acreditavam que a democracia era um sistema político “ruim” para seu país. Vinte anos mais tarde, o número de “antidemocratas” nessa mesma coorte geracional havia aumentado cerca de 4 pontos percentuais, atingindo 20%. A coorte seguinte — composta pelos nascidos na década de 1980 — é ainda mais antidemocrática: em 2011, 24% dos millennials americanos (então no fim da adolescência ou início da fase adulta) consideravam a democracia uma maneira “ruim” ou “muito ruim” de governar o país. Embora essa tendência fosse um tanto moderada na Europa, ainda assim era significativa: em 2011, 13% dos jovens europeus (com idade entre 16 e 24 anos) expressavam essa visão, um aumento em relação aos 8% entre os entrevistados da mesma faixa etária em meados dos anos 1990 (ver Figura 2).

Dados de opinião pública indicam, portanto, uma inversão geracional significativa. Não faz muito tempo, pessoas mais jovens demonstravam um entusiasmo muito maior em relação a valores democráticos do que as pessoas mais velhas: nas primeiras rodadas do World Values Survey, em 1981-1984 e 1990-1993, entrevistados mais jovens estavam muito mais interessados em defender a liberdade de expressão que os mais velhos e significativamente menos dispostos a abraçar o radicalismo político. Atualmente, os papéis se inverteram: de maneira geral, o apoio ao radicalismo político na América do Norte e Europa Ocidental é maior entre os mais jovens e o apoio à liberdade de expressão é menor. [2]

Afastamento das instituições democráticas

É possível nutrir uma fidelidade abstrata à “democracia” ao mesmo tempo em que se rejeita muitas das normas e instituições-chave que tradicionalmente se entende como ingredientes necessários à governança democrática. Portanto, se queremos entender por que os níveis de apoio à democracia mudaram, precisamos estudar as maneiras pelas quais as concepções das pessoas sobre democracia, bem como seu grau de envolvimento com instituições democráticas, se transformaram. [3] Além do apoio a eleições regulares, que são essenciais mesmo numa interpretação mais restrita de democracia, o apoio inequívoco à democracia deveria incluir também um compromisso com valores liberais como a proteção de direitos e liberdades civis essenciais para se produzir mudança política. [4] Então, como a participação política e o apoio à democracia liberal se comportaram no passado recente?

FOA 2

Um conjunto de perguntas relativas a interpretações da democracia só apareceu no World Values Survey em 2005, portanto não há uma série histórica longa o bastante para medir diretamente a evolução do entendimento de democracia pelos cidadãos ao longo do tempo. É possível, no entanto, analisar as diferenças entre coortes geracionais como uma proxy. Olhando para os dados da Europa e dos Estados Unidos, verificamos que as atitudes em relação a instituições liberais não diferem radicalmente entre as várias gerações. Mas uma concepção liberal de democracia é menos enraizada entre os millennials (nascidos após 1980) do que entre seus pais baby boomers (nascidos nas primeiras duas décadas após a Segunda Guerra Mundial). Nos Estados Unidos, por exemplo, 41% daqueles nascidos durante o período entreguerras e nas primeiras décadas do pós-guerra declararam ser “absolutamente fundamental”, em uma democracia, que os “direitos do cidadão protejam a liberdade do povo”. Entre os millennials, essa porcentagem cai para 32%. Na União Europeia, os números são 45% e 39%, respectivamente.

Qualquer entendimento minimamente liberal de democracia representativa precisa abarcar a ideia de que as eleições precisam ser livres e justas. Portanto, é preocupante que, em democracias maduras, tal interpretação de democracia, embora ainda claramente endossada pela maioria da população, seja mais tímida entre os eleitores mais jovens. Nos Estados Unidos, por exemplo, apenas 10% dos cidadãos nascidos no período entreguerras e 14% dos baby boomers responderam que “não é importante” em uma democracia que “o povo escolha seus líderes em eleições livres” (respostas entre 1 e 5 numa escala até 10). Entre os millennials, esse número sobe para 26%. Na Europa, há um padrão similar, embora menos dramático, com 9% dos respondentes das gerações do entreguerras e baby boomers contra 13% dos millennials atribuindo pouca importância a eleições livres e justas. (Como não há série histórica para esses indicadores, esses achados são preliminares e precisarão ser confirmados por futuros estudos.) Ademais, não há nenhum grande motivo para supor que as pessoas mais jovens estariam propensas a adotar uma interpretação menos liberal de democracia, já que o padrão oposto é observado em lugares como a China, a Índia e a África subsaariana.

A vitalidade de uma democracia depende não apenas da crença em valores políticos essenciais como direitos civis, mas também da participação ativa de uma cidadania informada. De fato, seguindo a tradição de Gabriel Almond e Sidney Verba em sua clássica obra The Civic Culture [A cultura cívica], de 1963, estudos posteriores demonstraram que a participação cidadã afeta a habilidade da democracia de ofertar bens públicos, garantir a responsabilização dos agentes públicos pelos seus atos e promover um governo efetivo. Isso torna ainda mais preocupante o bem-documentado declínio da participação democrática formal: desde a década de 1960, o comparecimento dos eleitores às urnas tem caído e a filiação a partidos políticos despencou em praticamente todas as democracias consolidadas.

Assim como as gerações mais jovens estão menos convencidas da importância da democracia, também estão menos propensas a se engajar politicamente. Na verdade, tanto na Europa Ocidental quanto na América do Norte, é possível observar um forte e rápido declínio do interesse na política entre os jovens. Ao mesmo tempo, esse interesse permaneceu estável ou até mesmo aumentou entre as coortes mais velhas. Como consequência, a participação política total permaneceu estável, no patamar de 60% nos Estados Unidos e cerca de 50% na Europa. Em outras palavras, o quadro geral, por mais importante que seja, mascara a parte mais impressionante da história: a lacuna geracional em termos de apatia política, que se amplia rapidamente.

Em 1990, tanto a maioria dos americanos jovens (aqueles entre 16 e 35 anos de idade) quanto os mais velhos (36 anos ou mais) informaram estar “relativamente interessados” ou “bastante interessados” em política — 53% e 63%, respectivamente. Em 2010, a proporção de americanos jovens que afirmavam ter interesse em política havia caído mais de 12 pontos percentuais. Por sua vez, a proporção entre os americanos mais velhos havia aumentado 4 pontos percentuais. Assim, a lacuna geracional se ampliou de 10% para 26%. Entre os entrevistados europeus que, de maneira geral, demonstraram menor interesse na política do que seus pares americanos, esse fenômeno foi ainda mais pronunciado: a lacuna entre os mais jovens e os mais velhos mais do que triplicou entre 1990 e 2010, de 4 para 14 pontos percentuais. Isso é atribuível quase que exclusivamente à rápida queda do interesse entre os respondentes mais jovens. Enquanto a proporção de europeus com 36 anos ou mais interessados em política permaneceu estável em 52%, entre os mais jovens esse número caiu de 48% para 38% (ver Figura 3).

Tanto nas democracias avançadas quanto nas emergentes, a geração que atingiu a maioridade ao longo da década de 1960 afastou-se das formas tradicionais de participação política, como a filiação a partidos políticos e o comparecimento às urnas. Essa tendência persistiu, com os millennials ainda menos dispostos que seus pais a participar do sistema democrático por meio das instituições formais. A maior parte dos acadêmicos evitou a conclusão de que as pessoas mais jovens vêm se desinteressando pela política democrática, argumentando que o declínio nas formas tradicionais de participação política havia sido compensado pelo aumento nas formas “não convencionais” de ativismo, como o pertencimento a movimentos sociais ou a participação em protestos e boicotes. [5] Dados recentes da rodada 5 (2005- 2009) e rodada 6 (2010-2014) do World Values Survey, no entanto, sugerem que isso não é mais verdade: a geração dos baby boomers não conseguiu transferir a seus filhos e netos sua inclinação por formas não convencionais de ativismo. Como consequência, gerações mais recentes não apenas não participam de instituições formais da democracia liberal; também estão menos propensas a participar de atividades políticas não convencionais, como novos movimentos sociais ou protestos políticos.

Historicamente, os cidadãos mais jovens estão mais propensos a participar de protestos. Isso é tão marcante que, nos Estados Unidos, um em cada onze baby boomers participou de alguma manifestação nos últimos doze meses, mas apenas um em cada quinze millennials o fez. Na Europa, o quadro é um pouco menos claro: respondentes mais jovens relataram terem participado mais de protestos nos últimos doze meses, mas o fizeram em níveis menores do que coortes anteriores quando tinham a mesma idade. Esse declínio na participação política é ainda mais pronunciado em variáveis como a participação ativa em novos movimentos sociais. A proporção de jovens engajados em organizações humanitárias e ligadas aos direitos humanos, por exemplo, é cerca da metade da proporção das coortes mais velhas. Portanto, observamos que os millennials da Europa Ocidental e da América do Norte estão menos engajados politicamente que as gerações mais velhas, tanto nas formas tradicionais de participação quanto em atividades cívicas de contestação.

O crescimento do apoio a alternativas autoritárias

Está claro que os cidadãos expressam atualmente um apego menor à democracia liberal, interpretam a natureza da democracia de uma maneira menos liberal, e nutrem menos esperança de influenciar as políticas públicas por meio da participação ativa no processo político do que o faziam anteriormente. O que não está claro é em que medida isso deve servir de alerta para a política e as instituições democráticas. O apoio e a participação cada vez menor em instituições políticas podem refletir simplesmente o fato de que a democracia liberal já não compete com outras formas alternativas de regime. Talvez o verdadeiro motivo pelo qual os cidadãos que atingiram a maioridade ao final da Guerra Fria não expressam o mesmo fervor no apoio à democracia liberal não seja o fato de eles serem indiferentes em relação a seu sistema de governo, mas simplesmente o fato de nunca terem testemunhado uma real ameaça a ele. Embora essa leitura otimista possa parecer plausível à primeira vista, ela não dialoga com o fato de o apoio explícito a regimes autoritários também ter crescido.

FOA 3

Nas últimas três décadas, a proporção de cidadãos americanos que acham que seria uma coisa “boa” ou “muito boa” ter um “governo militar” — uma posição aparentemente não democrática — vem aumentando de maneira constante. Em 1995, apenas um em cada dezesseis respondentes concordava com essa afirmação; hoje, um em cada seis. Embora permaneçam minoria, já não podem ser considerados uma minoria insignificante, especialmente considerando o aumento da proporção daqueles a favor de um “líder forte que não precise se preocupar com deputados e senadores e com eleições” e os que gostariam que “técnicos especialistas”, e não políticos, “tomem decisões” para o país. Os Estados Unidos não é o único país onde se pode observar essa tendência. A proporção de pessoas que concorda com a afirmação de que seria melhor ter um governo militar aumentou na maioria das democracias maduras, incluindo a Alemanha, a Suécia e o Reino Unido.

De maneira similar, embora 43% dos americanos mais velhos, incluindo aqueles nascidos no período entreguerras e seus filhos baby boomers, não acreditem ser legítimo que, numa democracia, os militares assumam quando o governo for incompetente, entre os millennials esse número é bem menor, apenas 19%. Na Europa, a lacuna geracional é menos gritante, mas igualmente clara: 53% dos europeus mais velhos e apenas 36% dos millennials rejeitam fortemente a notação de que a incompetência de um governo pode servir de justificativa para o exército “assumir”.

Surpreendentemente, sentimentos tão pouco democráticos aumentaram de maneira particularmente rápida entre os mais ricos. Em 1995, os “ricos” (definidos como aqueles situados nos três maiores decis de renda), eram os que mais se opunham a visões não democráticas, como a sugestão de que seu país estaria melhor sob um regime militar. Respondentes de menor renda (aqueles situados nos cinco menores decis de renda) eram os mais favoráveis a tal proposição. Desde então, o apoio relativo a instituições não democráticas se inverteu. Em quase todas as regiões, os ricos agora estão mais propensos do que os pobres a se declarar favoráveis a “ter um governo militar”. Nos Estados Unidos, por exemplo, apenas 5% dos cidadãos de classe alta achavam que o regime militar era uma ideia “boa” ou “muito boa” em meados dos anos 1990. Desde então, esse número subiu para 16%. Em comparação, na América Latina em meados dos anos 1990, uma década após a redemocratização, 21% dos respondentes de classe alta ainda apoiavam o regime militar. Esse número agora está em 33%.

A ideia de que o apoio ao regime militar aumentou acentuadamente entre os cidadãos mais ricos de democracias liberais consolidadas é tão contraintuitivo que naturalmente gera ceticismo. Mas é consistente com variáveis similares que medem a inclinação dos cidadãos por outras alternativas autoritárias. Nos Estados Unidos, entre todas as coortes de idade, a proporção de cidadãos que acreditam que seria melhor haver um “líder forte” que não precise se “preocupar com deputados e senadores e com eleições” também vem aumentando ao longo do tempo: em 1995, 24% dos respondentes compartilhavam dessa visão; em 2011, esse número havia subido para 32%. Ao mesmo tempo, a proporção de cidadãos favoráveis a que “técnicos especializados, não políticos, tomem decisões que acham que são as melhores para o país” aumentou de 36% para 49%. Uma razão para tais mudanças é que, enquanto há duas décadas os cidadãos mais ricos estavam muito mais propensos a defender instituições democráticas do que os grupos de menor renda, os ricos agora estão ligeiramente mais propensos a defender um líder forte que possa ignorar instituições democráticas (ver Figura 4 abaixo).

Surpreendentemente, a tendência de maior aceitação de alternativas não democráticas é especialmente forte entre cidadãos ao mesmo tempo jovens e ricos. Voltando à questão de apoio a um regime militar, em 1995 apenas 6% dos americanos jovens e ricos (nascidos após 1970) acreditavam que seria uma coisa “boa” se o exército assumisse; atualmente, essa visão é compartilhada por 35% dos americanos jovens e ricos. Os Estados Unidos não são um ponto fora da curva entre as democracias maduras. Na Europa em 1995, 6% dos jovens de alta renda eram favoráveis à possibilidade de um regime militar; atualmente, 17% dos jovens de alta renda o são. Essa é uma descoberta surpreendente: o crescimento do apoio à política iliberal está sendo impulsionado não apenas pelos miseráveis e desempregados de meia idade. Apoios declarados também podem ser encontrados entre os jovens, ricos e privilegiados.

FOA 4

Embora o apoio ao regime militar entre os jovens e ricos possa parecer uma aberração, seu apoio a práticas e instituições não democráticas não deveria surpreender. Se ampliarmos as lentes de análise, podemos observar que, com a exceção de um breve período no fim do século 20, a democracia esteve geralmente associada a demandas redistributivas dos pobres e, portanto, era vista com certa desconfiança pelas elites. A recente aversão às instituições democráticas entre os cidadãos ricos do Ocidente pode significar simplesmente um retorno ao que foi historicamente a norma. [6]

Estaria a democracia se desconsolidando?

Uma das principais constatações da política comparada é a impressionante estabilidade das democracias consolidadas mais ricas. Nos primeiros anos de sua existência, tanto as democracias mais pobres quanto as mais ricas são vulneráveis à mudança de regime. Democracias mais pobres ainda correm perigo mesmo após vários anos transcorridos e mudanças de governo por meio de eleições. As democracias ricas e consolidadas, no entanto, parecem estar seguras; como Adam Przeworski e Fernando Limongi demonstraram, nenhuma democracia consolidada com um PIB per capita superior a 6 mil dólares a preços de 1985 jamais entrou em colapso. [7]

Essa constatação esteve presente em boa parte da literatura sobre democratização e estabilidade de regime, mas, ao mesmo tempo, obscureceu toda uma área de estudo. Aparentemente seguros diante da ideia de que as democracias consolidadas ricas não assistirão ao colapso de seu regime, cientistas políticos deixaram de perseguir perguntas que pareciam figurar entre as mais importantes da disciplina: que indicadores empíricos podem nos dizer se as democracias consolidadas mais ricas são tão estáveis quanto foram no passado? Indicadores empíricos oferecem razões para acreditar que democracias aparentemente estáveis podem estar enfrentando problemas? E o que pode acontecer se democracias mais ricas de fato começarem a entrar em colapso, como aconteceu com virtualmente todos os demais tipos de regimes políticos na história da humanidade

Como Juan Linz e Alfred Stepan famosamente colocaram, democracias são consideradas consolidadas quando são “o único jogo possível”. [8] Essa metáfora é ao mesmo tempo elusiva e evocativa. O que significa, em termos concretos, a democracia ser o único jogo possível? Em nossa opinião, o grau de consolidação da democracia depende de três características fundamentais: o grau de apoio popular à democracia enquanto sistema de governo; a fragilidade ou inexistência de partidos e movimentos antissistema; e o grau de aceitação das regras democráticas.

Esse entendimento prático de consolidação democrática abre um espaço conceitual para a possibilidade de uma “desconsolidação democrática”. Em teoria, é possível que, mesmo nas democracias aparentemente consolidadas da América do Norte e Europa Ocidental, a democracia possa um dia deixar de ser “o único jogo possível”: cidadãos que outrora aceitavam a democracia como a única forma legítima de governo poderiam se tornar mais abertos a alternativas autoritárias. Sistemas políticos estáveis, nos quais todas as principais forças haviam se unido no passado em apoio à democracia, poderiam entrar em uma fase de extrema instabilidade ou testemunhar a ascensão meteórica de partidos antissistema. Por fim, regras antes respeitadas por todos os atores políticos relevantes poderiam se transformar em alvo de ataques por parte de políticos brigando por vantagens partidárias.

É no mínimo plausível considerar que tal processo de desconsolidação democrática possa já estar em marcha em algumas democracias consolidadas na América do Norte e Europa Ocidental. Nos Estados Unidos, cidadãos perderam rapidamente a confiança no sistema político; no início de março de 2016, por exemplo, o Congresso era aprovado por apenas 13% da população. O empresário bilionário e apresentador de televisão Donald Trump, após conquistar um apoio fervoroso e surpreendentemente amplo ao fazer campanha contra o sistema político e prometer políticas que violariam explicitamente os direitos de minorias étnicas e religiosas, venceu as primárias republicanas pela presidência dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, mesmo atores políticos consagrados mostram-se cada vez dispostos a violar as regras informais em troca de vantagem partidária: para ficar apenas em um exemplo, o Senado americano recusou-se a considerar a indicação feita pelo presidente Barack Obama para a vaga de juiz da Suprema Corte.

Nos últimos anos, a Europa também vem assistindo aos vários sinais de desconsolidação. A taxa de aprovação dos principais políticos do continente atingiu o nível mais baixo da história, e os cidadãos desconfiam cada vez mais de suas instituições políticas. Partidos populistas de extrema-direita, como a Frente Nacional da França ou os Democratas Suecos, ressurgiram das cinzas e transformaram o sistema partidário de praticamente todos os países da Europa Ocidental. Enquanto isso, partes da Europa Central e Leste Europeu são testemunhas das transformações institucionais e ideológicas que podem estar em curso: na Polônia e na Hungria, políticos autoritários começaram a pressionar a imprensa crítica, violar direitos de minorias e enfraquecer instituições-chave como os tribunais de justiça independentes.

Responder de maneira rigorosa se a democracia está em processo de desconsolidação nesses países exigiria bastante fôlego de pesquisa e foge do escopo de um ensaio com foco em dados de pesquisa de opinião. Mas, antes de iniciar tal pesquisa, é necessário identificar um importante quebra-cabeças empírico e formular um conjunto de objetivos explanatórios coerentes.

Se aceitarmos como preciso o número de pessoas que dizem apoiar a democracia, nenhum tipo de regime na história da humanidade atingiu tamanho apelo global e universal quanto a democracia atualmente. No entanto, a realidade de democracias contemporâneas parece muito menos glamorosa do que esse fato pode sugerir. Cidadãos de democracias estão cada vez menos satisfeitos com suas instituições; estão cada vez mais dispostos a abandonar instituições e normas tradicionalmente vistas como componentes essenciais da democracia; e sentem-se cada vez mais atraídos por formas alternativas de regime.

Longe de mostrar que cidadãos simplesmente se tornaram mais dispostos a criticar determinados governos porque suas expectativas em relação à democracia aumentaram, isso indica uma profunda tensão no coração da política contemporânea: mesmo com a democracia sendo a única forma de governo amplamente vista como legítima, perdeu a confiança de muitos cidadãos que já não acreditam que a democracia possa atender suas preferências e necessidades mais prementes. A visão otimista de que esse declínio na confiança representa tão somente uma queda temporária não é nada mais que uma hipótese conveniente, baseada em parte na relutância em questionar a alardeada estabilidade de democracias ricas.

As democracias não desaparecem da noite para o dia, nem as que começaram a se desconsolidar irão necessariamente fracassar. Mas desconfiamos que o grau de consolidação democrática é um dos fatores mais importantes para determinar a probabilidade de um colapso democrático. Em um mundo onde a maioria dos cidadãos apoia fervorosamente a democracia, onde partidos antissistema são marginais ou não existentes e onde as principais forças políticas respeitam as regras do jogo político, o colapso democrático é extremamente improvável. Mas já não é certo, no entanto, que esse seja o mundo em que vivemos atualmente.

Mesmo que pesquisas posteriores mostrem que uma desconsolidação democrática está de fato em curso, isso não significa que uma determinada democracia vá entrar em colapso em breve. Tampouco é óbvio que a democracia que mais se desconsolidou será a primeira a fracassar. Mudanças de regime acontecem tanto por acidente quanto por intenção, por circunstâncias históricas bem como por pré-condições estruturais. Mas, se uma desconsolidação democrática estiver de fato em curso, significaria que o que antes era impensável não pode mais ser considerado fora do escopo de possibilidades. À medida que as democracias se desconsolidam, a perspectiva de um colapso democrático se torna cada vez mais real — mesmo em partes do mundo que há muito não passavam por tal instabilidade. Se os cientistas políticos desejam evitar serem pegos de surpresa pelo desaparecimento das democracias consolidadas nas próximas décadas, como o foram durante a queda do comunismo há algumas décadas, precisam descobrir se a desconsolidação democrática está de fato em curso; explicar as possíveis causas desse fenômeno; delinear suas prováveis consequências (presentes e futuras); e refletir sobre as possíveis soluções.

Notas

[1] Essas lacunas permanecem em outros pontos do espectro. Se pegarmos as respostas 9 ou 10, a taxa cai de 85% entre americanos nascidos na década de 1930 para 43% entre aqueles nascidos após 1980, e de 68% dos europeus nascidos na década de 1930 para 59% entre aqueles nascidos após 1980. Do outro lado do espectro, a proporção de respondentes afirmando não atribuir muita importância a viver em uma democracia (1 a 5 na escala) representa apenas 4% dos americanos nascidos na década de 1930, mas 21% dos millennials e 6% dos europeus nascidos na década de 1930, mas 11% dos millennials.

[2] Apoio ao radicalismo é medido pelas respostas a uma escala política direita- esquerda, com “1” sendo radical de esquerda e “10” radical de direita. Tanto na Europa quanto na América do Norte, o radicalismo político autodeclarado é maior na coorte de idade mais nova (nascida após 1980) do que em qualquer outra geração em pesquisas anteriores.

[3] Andreas Schedler; Rodolfo Sarsfield, “Democrats with Adjectives: Linking Direct and Indirect Measures of Democratic Support”. European Journal of Political Research, v. 46, n. 5, Aug. 2007. pp. 637-59; Michael Bratton; Robert Mattes, “How People View Democracy: Africans’ Surprising Universalism”. Journal of Democracy, v. 12, n. 1, Jan. 2001. pp. 107-21.

[4] Ver Robert A. Dahl; Ian Shapiro; José Antônio Cheibub (Org.), The Democracy Sourcebook (Cambridge, EUA: MIT Press, 2003) e Alejandro Moreno; Christian Welzel, “Enlightening People: The Spark of Emancipative Values”. In: Russell J. Dalton; Christian Welzel (Org.), The Civic Culture Transformed: From Allegiant to Assertive Citizens (Nova York: Cambridge University Press, 2013).

[5] Christian Welzel, Freedom Rising: Human Empowerment and the Quest for Emancipation (Nova York: Cambridge University Press, 2013) e Pippa Norris, Democratic Deficit: Critical Citizens Revisited (Nova York: Cambridge University Press, 2011).

[6] Duas recentes contribuições para esse argumento são Carles Boix, Democracy and Redistribution (Nova York: Cambridge University Press, 2003) e Daron Acemoglu; James A. Robinson, Economic Origins of Dictatorship and Democracy (Nova York: Cambridge University Press, 2006).

[7] Adam Przeworski et al., Democracy and Development: Political Institutions and Well-Being in the World, 1950–1990. Nova York: Cambridge University Press, 2000.

[8] Juan J. Linz; Alfred Stepan, Problems of Democratic Transition and Consolidation. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1996.

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