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A mãe de todas as narrativas da esquerda

Me dediquei, nos últimos 20 anos, a investigar onde está o erro no script que faz com que pessoas achem que devam ser de esquerda para lutar contra a direita (ou vice-versa, mas nem tanto, na medida em que foi a esquerda que inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita). Mais recentemente descobri que, a despeito de qualquer conteúdo explicativo capaz de sustentar essa divisão, há um malware, um programa malicioso que roda automaticamente e que não tem a ver com ser de esquerda e sim com ter um projeto político autocrático: o malware é funcional para permitir a ereção de padrões de organização hierárquicos (mais compatíveis com modos de regulação autocráticos). E descobri também que, substantivamente (ou seja, em termos da explicação que justificaria alguém se posicionar como esquerda), não há propriamente um erro e sim uma variante narrativa que sulcou um caminho interpretativo. Então temos duas coisas: o programa malicioso e a narrativa (da igualdade).

O MALWARE DE LADO

Vamos começar – para limpar o caminho – pelo programa malicioso (o malware). Descobre-se facilmente o malware observando que não se trata apenas de combater a direita e sim de combater! Para quem tem um projeto de poder (seja ele qual for) que se estruture hierarquicamente, é necessário ter sempre um inimigo, mas qualquer inimigo serve: pode ser a Eurásia ou a Lestásia (para lembrar os Estados imaginários criados por George Orwell na sua célebre distopia 1984). A Eurásia podem ser os capitalistas ou os exploradores do povo. A Lestásia podem ser as elites e os coxinhas. Ou a Eurásia podem ser os machistas e homofóbicos. E a Lestásia podem ser os fascistas e os agentes do imperialismo ianque. O pior é que um estamento de mesma natureza pode ser, em alguns casos, amigo e, em outros, inimigo: por exemplo, os militares que apoiam Maduro, na Venezuela, são amigos, enquanto que os militares que lutam contra as FARC, na Colômbia, são inimigos. A própria sociedade mobilizada pode ser amiga ou inimiga. As pessoas que saíram às ruas de Moscou, em meados de 2014, em apoio a Putin, eram amigas, enquanto que as pessoas que se reuniram na Praça Maidan, em Kiev, no final de 2013, contra Viktor Yanukovytch, títere de Putin, eram inimigas.

Este é o “malware de lado”, que toma a política como continuação da guerra por outros meios. Sempre tem que haver dois lados e tudo se resume, então, a estar do lado certo. Assim marcha hoje, por exemplo, o protoditador Erdogan para consolidar o seu projeto de poder neo-otomanista: ele precisa de um inimigo, mas tanto faz se são os gulenistas, os kemalistas, os laicistas ou os curdos. Sem um inimigo não se pode justificar a ereção de uma estrutura de dominação, armada para derrotar o inimigo e, portanto, estruturada segundo padrões hierárquicos e regulada por modos autocráticos (como exige a guerra). Sem um inimigo (seja ele qual for) não é possível extrair a obediência de um contingente de pessoas e colocá-las a serviço do seu projeto (e a seu serviço), atemorizando-as permanentemente com a iminência do avanço ou da volta do inimigo (seja ele, na URSS stalinista: Leon Trótski; no romance de Orwell: Emmanuel Goldstein; ou, no Brasil atual: o Cunha ou os tucanos).

A PREMISSA DE QUE A IGUALDADE É CONDIÇÃO PARA A LIBERDADE

Dito isto, passemos ao mais importante: a narrativa que se replica. Ela está baseada na ideia de que a igualdade é condição para a liberdade. Esta é a mãe de todas as narrativas da esquerda. Como os ricos têm, em geral, mais liberdade do que os pobres, faz sentido. E aí todo mundo repete que, para existir verdadeira democracia, todos têm que ser iguais (em termos sócio-econômicos).

A premissa básica é a da igualdade como ideal supremo (e como pré-condição para a liberdade); ou a ideia de que não pode haver (verdadeira) liberdade sem (ou até que se alcance a perfeita) igualdade.

Jacques Rancière (2005), em O Ódio à Democracia, já havia percebido a trampa e matou a questão. Por trás de tudo está a ideia de que existe uma sociedade igual para colocar no lugar da sociedade desigual (e de que essa sociedade igual estaria em alguma espécie de mundo paralelo pronta para ser trazida – ou realizada – a partir das contradições da sociedade desigual, elidindo a evidência de que a sociedade igual é somente o conjunto das relações igualitárias que se traçam aqui e agora por meio de atos singulares e precários).

Por não perceber isso, validam-se afirmativas como as seguintes:

Sem igualdade (social) não pode haver democracia (política). O que é um deslizamento epistemológico indevido: o que se poderia afirmar é que sem igualdade (política) não pode haver democracia (política).

Se a democracia não servir para tornar a sociedade mais igualitária, para nada mais servirá. Confunde-se novamente aqui dois campos de sentido: a democracia não serve propriamente para levar um conjunto humano para a igualdade social e econômica porque a democracia não incide sobre as diferenças (sociais) existentes na sociedade humana e sim sobre as separações (geradoras de poder) que se instalam a partir dessas diferenças. Em outras palavras: a igualdade é a condição para a política democrática, não seu sentido ou sua finalidade.

Somente a cidadania plena conduz à democracia. Mais uma vez, o mesmo problema: se houver cidadania, é a democracia que leva à inclusão na comunidade política. Se não houver cidadania, a democracia não pode sequer se exercer (entre os cidadãos). A igualdade é a condição para a política democrática, não seu sentido ou sua finalidade. O sentido da política (democrática) não é a igualdade e sim a liberdade.

A democracia só pode ser experimentada em sua plenitude quando os principais problemas sociais (sobretudo o da desigualdade) estiverem resolvidos. E temos de novo a confusão. O que se poderia dizer é que os problemas sociais não podem ser resolvidos sem democracia, como condição para alcançar a (“verdadeira”) democracia no futuro. Do contrário, quem os resolverá enquanto não houver democracia? Um déspota esclarecido, quer dizer, um autocrata? Mas a democracia é sempre resultado do processo de democratização, quer dizer, só se pode construir democracia praticando democracia. Não há um atalho autocrático para a democracia.

Conclusão. Fica claro que opor igualdade à liberdade (dizendo que não pode haver verdadeira liberdade sem igualdade) é um modo de esvaziar a democracia do seu sentido. Pois a liberdade de que trata a democracia é a liberdade de uma sociedade se autoconduzir a partir da interação de suas próprias opiniões (quer dizer das opiniões das pessoas interagentes) em um espaço público. Essa liberdade de se autoconduzir não pode ser condicionada pela necessidade de ser conduzido para colocar-se apto a, no futuro, se autoconduzir. Eis o ponto!

Repetindo e comentando:

A igualdade é a condição para a política democrática, não o seu sentido ou a sua finalidade. Esta é a confusão que causou a tragédia da falta de conforto com a democracia de alguns defensores da igualdade. Como eles queriam voltar a uma mítica igualdade – na verdade, um suposto igualitarismo – primordial ou original, imaginaram que se a democracia não servisse para isso, para nada mais serviria. Trata-se, evidentemente, de uma confusão entre democracia e cidadania.

A igualdade a que se refere a democracia é uma igualdade de condições de proferimento de opiniões (a matéria-prima da política). A democracia não pode ser o instrumento para transformar fracos em fortes, pobres em ricos ou ignorantes em sábios (para considerar aquelas três separações básicas que, segundo Bobbio, estariam na raiz do fenômeno do poder coimplicado na transformação de diferenças em separações). É um modo (político) de convivência em que os fracos, os pobres e os ignorantes têm as mesmas condições de opinar – e, em um sentido mais amplo, de influir na definição dos destinos coletivos – do que os fortes, os ricos e os sábios. Isso não é pouca coisa na medida em que tal exercício continuado acabará incidindo não sobre essas diferenças em si, mas sobre as separações que se instalam a partir delas.

Ao não ver que o sentido da política é a liberdade, deixa-se de perceber o que é próprio da política, o que pertence propriamente à sua esfera, e tende-se a incluir na esfera da política (e na esfera da democracia) entes que nela não podem habitar, como, por exemplo, relações sociais e econômicas de igualdade e equidade. Mas a democracia, como percebeu Hannah Arendt e não perceberam os defensores de uma suposta “democracia socialista”, só vale para iguais. Por isso, os escravos não poderiam mesmo participar da democracia grega e o fato desses não-cidadãos não poderem participar da Ágora não descredencia o conceito grego de democracia, antes o afirma.

A democratização é um movimento, é um meio para se atingir um determinado fim, mas a política propriamente dita não, porquanto ela já é este fim.

A utopia da democracia é a liberdade, ou seja, a política; não a igualdade. A igualdade é a condição sem a qual não se pode exercer a política, quer dizer, a liberdade. Se os escravos, os estrangeiros e as mulheres de Atenas participassem da Ágora, não poderia haver democracia na Grécia – a menos que eles deixassem de ser o que eram, ou seja, passassem a ser iguais aos cidadãos. Mas só então eles seriam livres no sentido político.

Isso significa que, se existe qualquer coisa como uma libertação dos excluídos da cidadania, essa libertação deve levar a uma inclusão na cidadania política para que se transforme em liberdade política. A liberdade política nada mais é do que o exercício da vida política.

O fato de ser justa a preocupação com a igualdade e de julgarmos, corretamente, como indesejável uma sociedade escravagista nada tem a ver com a democracia em si mesma, e sim com outro imperativo ético: o da universalização da cidadania.

Outra coisa são as consequências da democracia – ou do exercício da política como “pazeamento” – para o que se convencionou chamar de democratização da sociedade, aí incluído o sentido de inclusão universal de seus componentes nas decisões coletivas, ou seja, a chamada cidadania política. Mas relações sociais democráticas, assim como democracia social e democracia econômica, são conceitos deslizados. Democracia é, definitivamente, política. A questão aqui é saber como a democracia (política) pode repercutir sobre a igualdade (social) ou sobre a repartição mais igualitária dos recursos (econômicos), o que não é a mesma coisa que dizer que só poderá existir “verdadeira” democracia à medida que existir igualdade social e equidade econômica, como faz, por exemplo, uma parte dos autocratas, quer dizer, dos que praticam a política como uma questão de ‘lado’.

Por outro lado, no que tange à inclusão na cidadania política, mesmo neste caso tal inclusão, depois dos gregos e até hoje, sempre foi relativa e limitada, por exemplo, ao direito de delegar e de se fazer representar, ao direito de voto de tempos em tempos, pelo qual se abre mão do direito de interferir a qualquer tempo (e em tempo real) nas decisões – coisa que, diga-se de passagem, não foi inventada pelos gregos e que não pode ser julgada como mais democrática do que os procedimentos que eles inventaram, só podendo ser justificada em virtude de supostas impossibilidades técnicas (portanto, extrapolíticas) quando se alega que sociedades populosas não teriam condições de adotar mecanismos de democracia direta. Mas essa não parece ser a “verdadeira razão”, já que sempre existiram meios de tornar cada vez mais frequentes, diretos e participativos e interativos os processos de decisão (até com tambores e sinais de fumaça, para não falar, nos últimos vinte anos, da possibilidade de fazer isso em tempo real usando recursos telemáticos). Ademais, parece haver aqui uma imprecisão factual: as comunidades gregas nas quais se praticava a política stricto sensu, quer dizer, a democracia não predominantemente delegativa – as poleis, incorretamente caracterizadas como Cidades-Estado – não eram tão pequenas assim. Segundo Finley (1981), “ao eclodir a Guerra do Peloponeso, em 431, a população ateniense, então no seu auge, era da ordem de 250 mil a 275 mil habitantes, incluindo-se livres e escravos, homens, mulheres e crianças… Corinto talvez tenha atingido 90 mil; Tebas, Argos, Corcira (Corfu) e Acraga, na Sicília, 40 mil a 60 mil cada uma, seguindo-se de perto o resto, em escala decrescente…” – ou seja, o tamanho dos nossos atuais municípios (1).

A “verdadeira razão”, aludida aqui, pela qual não se amplia a chamada cidadania política é a mesma razão pela qual não se exerce a política como “pazeamento” das relações, ou seja, porque algo está impedindo que isso ocorra. A democracia, desde que foi inventada, é disputada por tendências que querem autocratizá-la e tendências que querem democratizá-la. A efetivação dessas últimas tenderia a instalar o ‘estado de paz’ pelo exercício da política, o que não pode ocorrer enquanto houver incidência e reincidência predominantes das primeiras.

Restaria uma última questão: por que o exercício da política como liberdade – ou seja, a prática da democracia – não tem conseguido evitar as guerras ao longo da história? A resposta é bem mais simples do que pode parecer: porque ao longo da história não existiram, em volume suficiente, as tais práticas democráticas. Basta ver que as democracias (no sentido “fraco” do conceito) – pelo menos as que existem como regimes de governo na contemporaneidade – não têm guerreado entre si. Esse é um bom indício (e um bom começo).

Sobre a democracia (no sentido “forte” do conceito) como modo de praticar a política na vida social, podemos dizer que ela não consegue evitar as guerras na exata medida em que também não consegue se exercer na base da sociedade e no cotidiano do cidadão. Ou seja, a guerra acontece na medida em que não se consegue praticar a política como “pazeamento” das relações, porque algo está impedindo que isso ocorra.

As afirmações de que não adianta ter democracia se o povo passa forme ou, em termos mais genéricos, de que não adianta ter democracia política se não for reduzida a desigualdade social, são afirmações, em geral, populistas, como tais demagógicas (e, portanto, subversoras da democracia) (2). Elas confundem a esfera das liberdades com a esfera das necessidades, subordinando a política às condições de uma cidadania universalizada (seja na perspectiva do igualitarismo, seja na perspectiva do estabelecimento, ex parte principis, de mínimos sociais sobrevivenciais, como defendem, em geral, os policymakers dedicados ao combate à pobreza).

A democracia (política, como toda a democracia) é, assim, vista quase que como um luxo, uma realidade própria de um regime de abundância, que não poderia ser exigido diante da realidade da escassez. Cuba não tem democracia, mas – diziam (e ainda dizem) seus defensores, desqualificando a democracia que lhes cobram como apenas política e apenas representativa, burguesa, controlada pelas elites – em compensação, não tem crianças na rua e nem favelas com populações em situação de extrema vulnerabilidade social. Mais valeria, segundo tal pensamento, ter toda a população bem alimentada, mesmo que para isso algumas liberdades fossem (temporariamente) restringidas (pelo menos até que se atingisse o reino da abundância ou se chegasse a uma solução satisfatória para os problemas de sobrevivência da maioria do povo).

Afirmações como essas contribuem para desacreditar a democracia e para atrasar o processo de democratização das sociedades ao confundi-lo, sintonizando-se instrumentalmente com o senso comum, com os processos eleitorais (já desgastados e sem muita credibilidade). São, no fundo, visões autocráticas, que concorrem no sentido de autocratizar a democracia. Pois como a democracia é sempre resultado do processo de democratização, quer dizer, como só se pode construir democracia praticando democracia, se a democracia somente pudesse ser experimentada quando os problemas sociais estivessem resolvidos, quem, então, sem ter passado pela experiência democrática, poderia democratizar a sociedade pelo povo e para o povo? E, antes, parece óbvio que se os problemas sociais pudessem ser resolvidos sem democracia, como condição para alcançar a (“verdadeira”) democracia no futuro, caberia a alguém fazer isso pelo povo e para o povo, por fora da democracia, quem sabe um déspota esclarecido e identificado com as necessidades populares… Amartya Sen (1999) já havia percebido tal armadilha (3).

 

NOTAS

(1) Cf. Finley, M. I (org.) (1998). O Legado da Grécia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

(2) Cf. o texto Os dez mandamentos do populismo, do historiador mexicano Enrique Krause (O Estado de São Paulo: 15/04/06), disponível aqui.

(3) Sen, Amartya (1999). Democracia como um valor universal Pode ser baixado diretamente aqui: SEN, Amartya (1999). Democracia como um valor universal

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Análise política #015 (18/07/2016)

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