in ,

A política assombrada pelos demônios

E a democracia como uma vela no escuro

Algumas pessoas me perguntam por que perco tanto tempo analisando e criticando o lixo ideológico espalhado por hierarcas e autocratas, como Olavo de Carvalho (e outros teólogos ocultistas), os monarquistas tradicionalistas (como os descendentes da casa imperial Orléans e Bragança e seus vassalos intelectuais), os militaristas intervencionistas (como Bolsonaro), os estatistas nacionalistas (idem), os jovens-velhos do Brasil Paralelo (que mais parecem neófitos da Opus Dei ou da antiga TFP), os liberais-econômicos que são iliberais políticos (como Rodrigo Constantino e 90% dos que hoje no Brasil se dizem liberais).

Ora, perco tempo porque essa é a função que assumi na segunda metade da minha vida: resistir, denunciar e desconstruir as visões e propostas hierárquicas e autocráticas, sejam as da chamada direita (mencionadas acima), sejam as da chamada esquerda (marxista, comunista, petista e assemelhadas – que venho analisando criticamente desde meados da década de 1990, quando muitos direitistas de hoje estavam caladinhos ou, depois, já nos anos 2000, abrigados sob as asas do governo Lula). Tudo que tenho feito, nas últimas décadas, não passa disso: investigar as redes e a democracia e propor iniciativas de des-hierarquização e de des-autocratização da sociedade.

Por isso perco – ou ganho – tanto tempo com isso. É o que define a minha vida, inclusive em termos espirituais.

O DRAMA DE INVESTIGAR E DEFENDER A DEMOCRACIA

O que escrevo diariamente sobre democracia soa para alguns como uma narrativa alienígena. Mas o que digo já foi descoberto e escrito, em grande parte, por pensadores democráticos que investigaram a fundo a democracia, como Alexis de Tocqueville, Stuart Mill, John Dewey, Hannah Arendt, Cornelius Castoriadis, Norberto Bobbio, Humberto Maturana, Amartya Sen, Ralf Dahrendorf, Isaiah Berlin, Robert Dahl, Adam Przeworski, Claude Lefort, John Rawls, Jacques Rancière e dezenas de outros (não dá para citar todos: para ver o que se escreveu sobre democracia até o final da século 20 clique neste link).

Como as pessoas não leram nada disso (em geral nem conhecem o nome desses pensadores) ficam achando que estou delirando ao defender uma ideia de democracia que, segundo elas, não pode existir no mundo real. Acham, assim, que tudo que falo não passaria de um sonho utópico.

Claro que não apenas repito o que disseram os filósofos e teóricos citados acima. A partir das minhas próprias investigações sobre a fenomenologia da interação (redes sociais), construí um novo marco teórico baseado no condicionamento recíproco entre padrão de organização (social) e modo de regulação (político).

Mas é difícil encontrar interlocutores, dentro e fora da academia. Se as pessoas não estão familiarizadas com o be-a-bá do pensamento democrático (caso da maioria que interage nas mídias sociais) ou se não estão convertidas à democracia e seguem os novos teóricos da autocracia disfarçados de teóricos da democracia (caso das universidades, dominadas por pensadores de esquerda), é difícil conversar com elas sobre esses assuntos.

Para complicar o quadro, estão surgindo – na lógica do combate à hegemonia cultural da esquerda (ou do marxismo) – expressivos contingentes de pessoas que tornaram-se fieis de doutrinas conservadoras, liberais-conservadoras e liberais-econômicas, que – se não recusam abertamente a democracia – também não a tomam como um valor. Isso para não falar dos conspiracionistas, tradicionalistas monarquistas, estatistas, nacionalistas, intervencionistas e jacobinos que são adversários declarados da democracia e, é claro, dos moralistas – analfabetos democráticos que são instrumentalizados por todos os outros. Esse é o drama que vivemos, eu e todos os que se dedicam a investigar e a defender a democracia nos tempos que correm.

Para tentar entender o que está acontecendo, lancemos mão de uma metáfora.

UMA METÁFORA MÉDICA

Apesar de curadas da doença, as pessoas que tiveram catapora, em geral, nunca se livram do vírus responsável, o Varicela Zoster. Depois que as lesões da pele saram, esse vírus fica armazenado em nossos linfonodos (gânglios de linfa próximos à coluna) da medula espinhal, que se prolongam até os nervos periféricos. Se nosso sistema imunológico sofre uma baixa grande, o vírus se manifesta novamente – dessa vez, não como catapora, mas como herpes zoster.

Foto: Human herpesvirus 3 (HHV-3)
Foto: Human herpesvirus 3 (HHV-3)

Bem… o que aconteceu com o sistema imunológico da democracia para que os “vírus” representados por ideias-implante de padrões hierárquico-autocráticos, que estavam confinados em pequenas e obscuras organizações tradicionais, fossem reativados e passassem a caminhar por nosso “sistema nervoso”?

Em um próximo artigo vamos tentar identificar quais são esses “vírus”. De pronto, porém, podemos citar (tomando como exemplo as vídeo-aulas do Brasil Paralelo, da série Brasil: a Última Cruzada) algumas ideias onde eles se abrigam: a) a ideia de que existe um plano divino oculto que nos conduzirá para um futuro glorioso; b) a ideia de já está traçado o nosso caminho para o futuro e que esse caminho é uma espécie de escada; c) a ideia de que devemos ser guardiães de uma tradição, vigilantes de uma hierarquia, sempre armados e prevenidos contra o outro, para não deixar que nos roubem os degraus da nossa civilização; d) a ideia de que somos filhos de uma grandeza que tem, por um lado, a cruz (uma ferramenta de tortura) e, por outro lado, a espada (um instrumento para mutilar e matar); e) a ideia de que devemos fazer uma cruzada contra os que querem destruir os fundamentos e os valores da civilização ocidental cristã (os globalistas, aliados ao comunismo internacional e o Islã).

Há várias indicações de que ocorreu um choque (com efeitos “imunodepressivos”) na sociedade brasileira a partir de meados de 2014, coincidindo com a segunda campanha de Dilma Rousseff. O clima adversarial instalado na base da sociedade durante essa campanha – que jogou amigo contra amigo, irmão contra irmão – destruiu, em parte, a capacidade da sociedade de conversar com o outro.

Ora, uma infecção viral é isto: a incapacidade do organismo de interagir com programas estranhos que podem se tornar maliciosos se não se consegue estabelecer um acoplamento estrutural com eles. No caso biológico um vírus é uma entidade formada por um capsídeo de proteínas que envolve o ácido nucleico (DNA ou RNA) com capacidade para se auto-replicar ao utilizar a maquinaria celular. No caso de um vírus de computador, mutatis mutandis, é mais ou menos a mesma coisa.

Claro que nenhuma metáfora é perfeita. E metáforas biológicas costumam não ser muito adequadas para evocar explicações sobre fenômenos sociais e políticos. Mas as metáforas têm algum potencial heurístico, sobretudo quando se trata de encontrar saídas para a impregnação ideológica que setores conservadores autocráticos, que parecem ter levantado da tumba de repente (ou fugido do hospício), estão querendo operar. Uma dessas ideias mais pernósticas é a da tal “civilização ocidental cristã”.

SOBRE A TAL “CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL CRISTÔ

Li Samuel Huntington há 20 anos e desde aquela época não concordei com a hipótese do “choque de civilizações”, uma elaboração típica do ambiente mental da guerra fria. Mas a minha discordância principal é porque não existem, como tais, as civilizações que ele lista. São todas subculturas da grande civilização patriarcal. Sim, ainda estamos no patriarcado.

Clash_of_Civilizations

Civilização foi um nome que deram para a militarização própria do patriarcado, que logo desembocou no complexo hierárquico-autocrático da cidade-templo sumeriana, murada e fortificada, a primeira forma estável de Estado conhecida pela humanidade. Foi a criação política (ou antipolítica, do ponto de vista democrático) de uma forma de dominação social (ou antissocial, do ponto de vista das redes).

A partir daí estabeleceu-se uma separação histórica: de um lado, povos que viviam sob o domínio de um senhor e, de outro lado, todos os demais povos sem-Estado, como as aldeias agrícolas neolíticas, as tribos paleolíticas, os grupos de coletores e caçadores – tudo isso seria não-civilização e, pior, nem história seria (e sim pré-história). Em cerca de 150 mil anos de caminhada do Homo Sapiens sobre a Terra, somente os últimos 6 a 5 milênios seriam de “civilização”. Jericó, segundo essas visões, com 8 mil anos, não teria sido nada antes de ser cercada por muralhas. Como se vivesse até então ali um povo dito “primitivo”.

Assim, quando alguém fala de Civilização Ocidental (desse jeito mesmo, com letras maiúsculas), acho interessante a ousadia de modificar o passado para predeterminar um caminho para o futuro. E fico ainda mais espantado com a construção “Civilização Ocidental Cristã”, que seria uma espécie de último estágio civilizacional. As outras religiões seriam inferiores, as outras etnias, menos evoluídas, os outros povos, menos “civilizados”. Isso, além de um embuste, é uma perversão que traz embutida a ideia de que fomos separados pela própria história, que teria uma imanência, um rumo, um sentido, independentemente dos sentidos e dos caminhos que as pessoas escolhem.

Isso separa, em vez de congraçar (ensejando a miscigenação biológica e cultural), indivíduos e grupos de uma mesma espécie cujos membros são (quase) todos primos até o grau 50 (como mostra a ciência genética). Sim, somos todos uma grande família em termos biológicos. Essa evidência científica deve ser uma heresia para os que querem nos manter fechados ao outro, ao diferente, permanentemente prevenidos e armados contra ele. É uma abominação, uma urdidura ancestral de hierarcas e autocratas, que agora parece estar voltando para nos assombrar.

UM BAFO INSUPORTÁVEL

Se formos fazer um balanço dos dias que correm (ou dos últimos três anos, pelo menos) a conclusão será decepcionante. Como decaímos! Antes conversávamos no Facebook sobre assuntos interessantes e instigantes. Para dar meu depoimento pessoal, relatando as interações criativas em que estive envolvido, muitos diálogos enriquecedores tratavam da nova ciência das redes, ou seja, da fenomenologia da interação em mundos altamente conectados. Até 2013, sobretudo para tentar explicar os swarmings que ocorreram no Brasil (em em várias outras localidades do mundo, como a Turquia) de 17 a 20 de junho, o clima social permitia isso. As pessoas estavam interessadas em inovação. Discutíamos os desdobramentos das ideias de Humberto Maturana do ponto de vista das redes. Dialogávamos sobre novos padrões de organização, mais compatíveis com a sociedade em rede e sobre as relações entre crescimento da interatividade e inovação nas empresas e entidades sociais. Especulávamos sobre o último Hillman e a releitura do legado junguiano a partir de uma nova perspectiva coletiva (na qual a pessoa, o emaranhado social, ocupava o lugar de sujeito – o ser humano concreto – em vez da abstração chamada indivíduo). Enfim…

Mas após o choque ocorrido na sociedade brasileira durante a segunda campanha eleitoral de Dilma, mergulhamos na escuridão. Os interlocutores inovadores, que se interessavam por esses assuntos, simplesmente desapareceram, se retraíram e se refugiaram nos seus pequenos clusters e deixaram de interagir publicamente. No seu lugar apareceu uma gente esquisita, usando o Facebook e outras mídias sociais para fazer guerra, para desqualificar e detratar o outro que, por não pertencer à sua grei, passou a ser tratado como infiel.

Primeiro vieram os militantes petistas, organizados em hordas, poluindo tudo. Depois – como reação igual em sentido contrário – apareceram os militantes ditos de direita, que eram contra o PT não porque fossem democratas e sim porque queriam outro tipo de dominação, outro tipo de doutrinação, conservadora, brandindo as ideias de ordem, hierarquia, disciplina, obediência, comando-e-controle, família, tradição e valores da civilização ocidental cristã.

Ate que, por último, assomaram os fanáticos olavistas e bolsonaristas, pessoas medonhas, almas pequenas, punitivistas, intolerantes. Depois do choque nos fluxos interativos (e amistosos) da convivência social promovido pelo PT, a borra que estava no fundo do poço emergiu turvando tudo. A atmosfera ficou sufocante, o ar ficou irrespirável.

Eis o ponto a que chegamos, em que a inteligência tipicamente humana e a criatividade parecem ter desaparecido para dar lugar à disputa adversarial, à inimizade, uma espécie de reflorescimento da cultura patriarcal no que ela tem de mais hediondo, de mais nojento, de mais anti-humano. Se existem forças malignas (pelo menos do ponto de vista da liberdade e da criatividade), estamos sentido o seu bafo insuportável neste momento no Brasil.

A POLÍTICA ASSOMBRADA PELOS DEMÔNIOS

Carl Sagan escreveu, em 1995, um livro intitulado “O Mundo Assombrado pelos Demônios: A Ciência Vista Como Uma Vela No Escuro”. Do que se trata aqui é da política assombrada pelos demônios: a democracia como uma vela no escuro.

Deixe uma resposta

Loading…

Deixe seu comentário

There Never Was a West

Em quem os democratas devem votar em 2018