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A política da pureza ou é autocrática ou leva sempre à autocracia

Leiam o artigo de Joe Skeaping (2016), Onde isso vai terminar? Maximilien Robespierre e a Política da Pureza, publicada no site The Boomerang Press, em tradução de Renato Jannuzzi Cecchettini (e já reproduzida aqui em Dagobah, no artigo Where Will it End? Maximilien Robespierre and the Politics of Purity). A pureza, como assinalamos, é um dos principais indicadores de autocracia, mesmo que venha afirmada como objetivo democrático. Aliás, Robespierre, os jacobinos e outros próceres da revolução francesa, não tinham uma visão de democracia, que confundiam com república.

Renato Jannuzzi, a título de exemplo, selecionou dois trechos de discursos de Robespierre, em fevereiro de 1794, na Assembléia Nacional.

“Qual é o fim que nos esforçamos para alcançar? O usufruto tranquilo da liberdade e da igualdade; o reino da justiça eterna; cujas leis estão gravadas, não em mármore ou pedra, mas nos corações de todos os homens… Que tipo de governo pode realizar esses prodígios? Somente o governo republicano ou democrático: as duas palavras são sinônimas.”

“Qual é, então, o princípio fundamental do governo democrático ou popular, em outras palavras, a base essencial que o sustenta e o faz funcionar? É a virtude […] que não é nada senão o amor pela terra de nascimento e suas leis […] esse sentimento sublime pressupõe uma preferência pelo interesse público acima de todos os interesses particulares […] No sistema da Revolução Francesa, o que é imoral é insensato, e o que corrompe é contrarrevolucionário.”

Reformadores morais – de farda, de toga, de terno ou sans-culotte – sempre levaram a humanidade a mais autocracia, nunca a mais democracia.

Pois é… Ao contrário do que a esquerda propaga não foi a revolução francesa que reinventou a democracia (a democracia dos modernos). A democracia foi reinventada na resistência parlamentar ao governo despótico de Carlos I, mais de um século antes, na Inglaterra. A revolução francesa inventou, isto sim, a esquerda. E, de certo modo, reinventou a República. Mas mesmo a antiga república romana não era bem uma democracia (se adotarmos os critérios da primeira invenção da democracia adotados pelos atenienses: isologia, isegoria e isonomia no que tange às opiniões). Ademais, há uma evidência atual. Boa parte dos países que aparecem em todos os rankings de democracia nos primeiros lugares não são repúblicas. Exemplos? Noruega, Suécia, Nova Zelândia, Dinamarca, Canadá, Austrália, Holanda, Luxemburgo, Reino Unido e Espanha.

O que chamamos propriamente de democracia é o processo de democratização (ou seja, de desconstituição de autocracia) que vai sempre aos trancos e barrancos, fazendo curvas para não trombar nos muros e nas construções verticais erigidas no passado, em outros mundos sociais, sujando os pés no barro pegajoso do chão da praça e o corpo inteiro no suor de quem rala prá baixo e prá cima o dia todo no mercado, sofrendo bullying e muitas vezes se ferindo ao apartar brigas de valentões que disputam pelo melhor lugar para vender seus peixes. Esses caminhos são imprevisíveis, singulares e precários, reinventados a cada vez. Não se pode esperar que se saia limpo ao percorrê-los.

Leiam o artigo.

Onde isso vai terminar? Maximilien Robespierre e a Política da Pureza

Joe Skeaping, The Boomerang Press, 10/09/2016

Tradução livre de Renato Jannuzzi Cecchettini, no Facebook. 

Pureza política, em qualquer forma, é ao mesmo tempo impossível e indesejável. Pessoas que despejam sua fé em um indivíduo ou em uma ideologia que promete curar todos os males e alcançar uma sociedade ideal não estão apenas se preparando para a frustração, elas também são culpadas por uma forma de cegueira moral, o que as previne de enxergar o lado bom de seus adversários políticos ou as suas próprias fraquezas.

“Maximilien foi… uma criança, e quando as crianças crescem não se tornam santos e demônios, mas homens e mulheres.”

(Peter McPhee, biógrafo de Robespierre)

A carreira política de Maximilien Robespierre, uma das mais importantes e controversas figuras da Revolução Francesa, provê uma ilustração poderosa do efeito destrutivo da política da pureza. Tendo feito celebrados discursos em defesa da liberdade de expressão e direito das minorias na Assembleia Nacional, Robespierre usava sua autoridade no Comitê de Salvação Pública para defender uma purga dos seus oponentes políticos, e a remoção do direito de um réu a um julgamento justo. Quanto mais se aproximava de acreditar que a França precisava de ‘purificação’ para reviver o espírito cívico da virtude já perdido, mais ele se transformava – nas palavras de McPhee – “propenso a entender o mundo revolucionário em termos de oposição binária: o bem e o mal, ‘patriotas’e ‘contra-revolucionários’.

“Este homem vai longe: ele crê em tudo que diz.”

(Mirabeau, sobre Robespierre)

Contudo, o começo da carreira política de Robespierre mostrava poucas indicações do seu desejo posterior em agir impiedosamente na busca de seus ideais. Um homem de hábitos austeros firmeza de princípios, Robespierre não era um grosseiro; ao invés disso, o seu estilo de oratória era comedido e sincero. Antes de ser jogado no redemoinho da política parisiense, ele havia sido um relativamente desconhecido advogado provincial e isso possibilitou a ele se apresentar como uma voz independente e imparcial sobre a desordem política. Isso deu peso à afirmação de Robespierre de falar em nome das pessoas comuns da França, ao invés dos membros da aristocracia, clero e burguesia, cobertos de ouro. Os discursos iniciais mais celebrados na Assembleia Nacional atacaram os privilégios, confirmou a liberdade de consciência e atacou os compromissos dos autoproclamados líderes da revolução. Ele criticou a pena de morte e depois o movimento pela guerra contra os inimigos externos da França.

“Em meio à corrupção, você permaneceu o inabalável apoio da verdade… você lutou para manter a pureza de uma constituição ditada pela filosofia para o bem da humanidade”.

(Discurso em apoio à Robespierre)

O idealismo de Robespierre foi fundamentado sobretudo no trabalho de dois grandes escritores, Rousseau e Plutarco, os quais atacaram a corrupção percebida entre eles através da santificação de uma ordem social anterior. Jean-Jacques Rousseau argumentou que a sociedade humana foi anteriormente baseada na virtude e fraternidade, porém estes princípios foram erodidos pela busca da ambição e riqueza material. Séculos antes, o historiador romano Plutarco, elogiou a coragem e o auto-sacrifício dos defensores da liberdade que derrubaram os inimigos internos e pretendentes a tiranos, assim preservando a República de Roma. À medida que as crises políticas enfrentadas pelo Estado revolucionário se aprofundavam entre 1792 a 1794, Robespierre usou discurso após discurso para expor sua visão de uma sociedade mais pura e enobrecida que realmente conheceria as aspirações elevadas de 1798.

“Cidadãos, existe muitas razões para acreditar que a Revolução, assim como Saturno, irá progressivamente devorar todos seus filhos…”

(Pierre Vergniaud, discurso para a Convenção Nacional, Janeiro de 1793)

Mas quase desde o momento em que Robespierre começou a articular essa visão poderosa, ele e seus apoiadores foram confrontados com um problema irritante. A purificação é um processo bastante abrangente; Meias-medidas são impossíveis, e não há espaço para pequenas dúvidas ou análises céticas. Qualquer desafio a Robespierre era interpretado como um ataque à sua integridade, e já que ele era o corajoso discípulo da verdade que estava libertando a França, esse ataque também visava destruir a revolução como um todo. Os críticos cautelosos e isolados que advertiram sobre o ritmo radical da mudança não eram melhores que os conservadores mais ardentes, na verdade eles eram piores, uma vez que eles se dissimulavam como radicais apenas para impedir que uma verdadeira transformação acontecesse e assim proteger suas próprias posições. À medida que a revolução se radicalizava, a conspiração aparente piorou; mais dos antigos colegas e aliados de Robespierre expressaram dúvidas e pediram cautela. Todos os traidores, todos hipócritas, todos, um por um, destinados ao cadafalso.

“Ele tem todas as características, não de um líder religioso, mas do líder de uma seita”.

(Condorcet, sobre Robespierre)

Você não tem que procurar muito longe para encontrar o mesmo tipo de dinâmica política funcionando na política contemporânea (mesmo que a maior parte da violência esteja hoje online). Os campeões de “anti-política” são, de uma forma ou de outra, descendentes de Robespierre: Nem todos são grandes oradores, nem tão austeros, nem tão astutos, mas todos dizem falar em nome dos marginalizados e ignorados, considerando uma sociedade na qual a corrupção pode ser derrotada pela força do seu idealismo. Seu devotados apoiadores vão aproveitar os menores fragmentos de evidências para legitimar o seu programa político e usar insultos pessoais ou retórica violenta para destruir qualquer um que os desafie. A purificação da política garante que não pode haver compromisso com o status quo e nenhum espaço para duvidas. As questões complexas são simplificadas em uma escolha binária, e as do lado errado do debate são difamadas e purgadas.

No final, o problema com a política da pureza é que todo mundo termina coberto de imundície.

Joe Skeaping é Head de História do Brighton College. Esta peça foi originalmente escrita para o seu blog A Brazen World. Confira em http://abrazenworld.blogspot.co.uk

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Where Will it End? Maximilien Robespierre and the Politics of Purity

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