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A resistência a Carlos I reinventou a democracia

A democracia não foi reinventada pelos modernos em apenas um lugar. Foram vários episódios. O mais importante, todavia, foi a resistência ao poder despótico de Carlos I, na Inglaterra do século 17. Isso tem menos a ver, como se pensa, com a introdução posterior do sufrágio universal (por influência francesa). A segunda invenção da democracia (a primeira foi a dos atenienses, na passagem do século 6 ao século 5 AEC) não tem a ver propriamente com eleição e sim com um processo de desconstituição de autocracia (e, aliás, também a primeira, que foi inventada no processo de desconstituição da tirania dos psistrátidas: como se sabe, Psístrato deu um golpe militar e introduziu a tirania em Atenas em 546, governou até 527 e foi substituído por seus filhos Hipias e Hiparco. Hiparco foi assassinado em 514. Hípias ficou no poder até 510 e foi destituído por Clístenes. Só aí começou a democracia, ou melhor, a democracia foi inventada no processo de desconstituição da autocracia dos psistrátidas).

A DESCRIÇÃO DE MOSCA DA RESISTÊNCIA A CARLOS I

Vamos acompanhar a descrição clássica de Gaetano Mosca (1937) (1), na sua História das doutrinas políticas (2).

“Foi na Inglaterra que o poder absoluto do Rei, pelos anos de 1.200 D.C., começou a ser primeiramente contestado. O jogo de forças entre a nobreza e a monarquia ainda subsiste, apesar do predomínio do poder real sobre a nobreza.

O Parlamento, herdado da idade média, era composto da câmara dos comuns e da câmara dos lordes. Houve na Inglaterra uma fusão entre parte da nobreza menos influente e o terceiro estado, redundando na formação da câmara dos comuns. A câmara dos lordes era formada pelos grandes senhores feudais. Os Senhores Feudais freqüentemente eram convocados pelo Rei a se reunirem no Parlamento para discutir sobre as finanças necessárias para financiar as guerras.

A dinastia dos Tudors mantém a preponderância do poder real de 1485, final da guerra das duas rosas, até o ano de 1603. Durante este período, muito embora o Rei convocasse o parlamento com frequência, continuava ele exercendo o seu poder de forma absoluta, tanto quanto o Rei da França. O Rei exercia sua jurisdição local nomeando magistrados de sua confiança, que normalmente eram pessoas de renome nas localidades.

Havia uma relação de interdependência entre o Rei e parlamento. Este com representatividade local, procurava impor-se ao Rei através da edição dos Bill of Rigths. Cada vez que o Rei convocava o parlamento para levantar recursos financeiros, o parlamento lhe impunha um Bill.

O Rei Carlos I, quando assumiu o trono resolveu declarar guerra à França com o intuito de socorrer os huguenotes de La Rochelle, que também eram protestantes e lhe haviam pedido ajuda. O Rei Carlos I convocou o parlamento que lhe forneceu subsídios necessários para socorrer a cidade sitiada. Sucedeu que os ingleses perderam a batalha e tiveram de retornar.

O Rei e os nobres acusaram-se mutuamente acerca das responsabilidades pelo fracasso. O Rei dissolveu por duas vezes o parlamento convocando a outros na busca de ajuda financeira. Um terceiro Parlamento foi convocado e concordou em fornecer mais subsídios mediante a aprovação do chamado Bill of Rights (ato de direitos) que impunha restrições ao exercício do poder régio.

Aproximadamente em 1625 ocorreu o 1º Bill of Rights no qual ficou definido que:

1 – O Rei não poderia cobrar impostos, sequer sob a forma de contribuições ou doações sem consentimento do parlamento;

2 – Ninguém poderia ser perseguido por se recusar a pagar impostos não autorizados pelo parlamento.

O Rei Carlos I não cumpriu as determinações deste Bill of Rights. Houve uma guerra civil entre os parlamentares, de um lado, e o Rei Carlos I, de outro.

O exército parlamentar liderado por Oliver Cromwell acabou por prender Carlos I, o qual foi julgado e condenado a pena de morte, sendo executado no ano de 1649.

O governo Cromwell foi uma república ditatorial militar, regime até então desconhecido na Inglaterra. Oliver Cromwell morreu em 1658 e com ele foi enterrada a ditadura. Houve uma fase de transição na qual o filho de Cromwell governou. Após várias disputas retornou à Inglaterra a monarquia, assumindo o trono o filho do Rei Carlos I, Carlos II.

Diferentemente de seu pai, Carlos II não aspirava exercer um poder absoluto. Havia uma relação de interdependência entre o Rei e parlamento. Este com representatividade local procurava impor se ao Rei através dos Bill of Rigths. Cada vez que o Rei convocava o parlamento para levantar recursos financeiros, o parlamento lhe impunha um Bill. A autoridade parlamentar foi se firmando, pouco a pouco, transferindo para si o poder de governo.

Em 1685 morre Carlos II, assumindo em seu lugar como sucessor seu irmão Jaime II, fervorosamente católico de tendência absolutista.

O Rei Jaime II estava com idade avançada e tinha duas filhas protestantes provenientes de um primeiro casamento. Quando nasceu um filho seu com a segunda mulher, este foi batizado católico. O direito deste príncipe excluía da sucessão as filhas protestantes do Rei. O parlamento sentiu o temor de instalar~se novamente na Inglaterra uma dinastia de religião católica, com tendências absolutistas. O Parlamento procurando evitar este perigo firmou um acordo com o príncipe Guilherme de Orange, que era casado com a filha mais velha de Jaime II, para a deposição do rei. Em 1688 Guilherme de Orange invade a Inglaterra com seu exército, recebendo o apoio do parlamento Inglês. Diante da impopularidade do Rei Jaime ll, não houve maiores dificuldades para derrubá-lo. O Rei Jaime II refugiou~se na França jogando o sinete real no Tâmisa.

Guilherme Orange e Maria, sua esposa, foram proclamados respectivamente Rei e Rainha da Inglaterra. Efetivou-se, desta forma, o que os ingleses chamaram de revolução gloriosa.

Em 1689 o Parlamento discutiu e aprovou o segundo Bill of Rights determinando que:

1- Os reis da Inglaterra deveriam ser protestantes;

2 – Nenhuma guerra podia ser declarada sem o consentimento do parlamento;

3 – Nenhum estrangeiro poderia fazer parte do Conselho Privado;

4 – Todas as decisões reais para terem força executória, deveriam ser contra-assinadas por um membro do Conselho Privado;

5 – Todas as decisões reais, para ter força executória, deveriam ser aprovadas por um membro do Conselho Privado;

6 – Todos os juízes deveriam ser nomeados em função de sua conduta exemplar;

7 – O rei não podia suspender o processo de impeachment;

8 – Nenhum soberano inglês poderia deixar a Inglaterra sem o consentimento do Parlamento.

A partir daí, o parlamento assume definitivamente a condição de legislador independente do poder régio. Como bem acentua Gaetano Mosca, ainda não se poderia denominar o regime inglês como sendo o parlamentar.

O Conselho Privado, a que se fez alusão no Bill of Right de 1689, era um corpo político que assistia o soberano no exercício de suas funções políticas, composto de 50 a 60 membros aproximadamente. O número de membros era excessivo, tornando-o pouco apto para exercer as suas funções rapidamente e em segredo, quando necessário.

No reinado de Carlos II, afim de evitar estes inconvenientes, reduziu-se esse número aos quatro ou cinco membros mais influentes do Conselho Privado. Estes discutiam os assuntos mais importantes, e posteriormente os levavam à reunião plenária do Conselho. Este grupo restrito do Conselho, que também atuou nos reinados de Jaime II, de Guilherme II e da rainha Ana, foi denominado Gabinete.

Em 1714, o primeiro Rei da Dinastia de Hanover, Jorge I, que só falava o idioma alemão, teve a ideia de chamar para o Gabinete os membros mais influentes da Câmara dos Comuns. Por influência de Horácio Walpole, conselheiro do Rei durante quase vinte anos, Jorge I passou a escolher para a composição do Gabinete somente membros do partido majoritário, que na época eram os Whigs. Como Jorge I sequer entendia a língua inglesa, o Gabinete passou a reunir-se sem ele, adquirindo o hábito de simplesmente submeter à sua assinatura as decisões tomadas sem a sua presença. Foi desta forma que o Gabinete, órgão até então desconhecido pela constituição inglesa, passou a exercer de fato o poder executivo.

Jorge II, filho do Rei, seguiu o exemplo do pai abstendo-se completamente. Seu sucessor, Jorge III, nascido na Inglaterra, foi o último rei que procurou ainda conservar as prerrogativas da antiga monarquia. Após o seu reinado tornou-se impossível, na Inglaterra, governar sem o apoio de um dos partidos políticos.

Foi a partir desta época que um governo parlamentar puro estabeleceu-se na Inglaterra. As grandes modificações ocorridas posteriormente no parlamento, foram de correntes do sistema eleitoral dos seus integrantes. Havia três correntes doutrinárias divergentes. O partido conservador pregava que apenas os proprietários de terras deveriam exercer o direito de voto. Uma segunda corrente defendia que se deveriam enquadrar como eleitores também os proprietários de bens móveis, que eram os grandes industriais da época. Por certo não havia a idéia de bem imóvel por acessão física. Havia também uma corrente democrática, influenciada pelos franceses, que defendia o sufrágio universal.

A segunda corrente acabou prevalecendo. Somente no ano de 1867 o direito de voto foi estendido a todos os chefes de família. Após a segunda guerra mundial (1939-1945) o sufrágio foi concedido às mulheres”.

DEMOCRACIA E ELEIÇÃO

Nem para os antigos gregos, nem para os modernos ingleses, as eleições estão na gênese da democracia. Foi o populismo que introduziu essa interpretação, forçando a mão para dizer que democracia é a vontade da maioria (auferida aritmeticamente) e levando seus críticos a condená-la como uma espécie de ditadura da maioria. O que é essencial na democracia – em termos genéticos – é não viver sob o jugo de um senhor. Como escreveu Ésquilo (472 AEC), em Os Persas, referindo aos atenienses: “Não são escravos, nem súditos de ninguém”.

Psístrato e seus filhos e Carlos I queriam súditos, pessoas submissas à sua vontade soberana. A resistência a isso gerou a democracia: pela primeira vez e pela segunda. E só por isso pode-se denominar os dois processos com a mesma palavra: ‘democracia’. Não porque tivesse havido eleições. Os interagentes na Agora ateniense, que depuseram Hipias com a leitura de um édito na praça, são em tudo semelhantes, do ponto de vista do que constitui geneticamente a democracia, aos redatores do Bill of Rights para conter a vontade soberana de Carlos I. Ninguém falou em eleição. Regimes eleitorais não são necessariamente democracias: basta ver que, das 60 autocracias (ditaduras) que ainda remanescem no século 21 (sob as quais – pasme-se! – ainda vive mais da metade da população do planeta), boa parte delas promove eleições. E nem por isso.

DEMOCRACIA E CIDADANIA

E nem se pode dizer que são as eleições livres, com a participação universal (ou de todos), que caracterizam a democracia. Nem foi assim com os antigos atenienses do século 5 (AEC), nem com os ingleses do século 17. Em ambos os casos não eram todos os que participavam das decisões políticas (apenas os membros da comunidade política: no caso dos atenienses, a Polis, quer dizer, a koinonia política e no caso dos ingleses o parlamento). No caso dos gregos, não podiam participar os estrangeiros, os escravos e as mulheres. No caso dos ingleses, idem (e mais ainda: no início, nem mesmo os que não possuíam propriedades). Isso não significa, ao contrário do que afirmam os analfabetos democráticos e os autocratas, que confundem democracia com cidadania ou subordinam a liberdade à igualdade, que não eram “verdadeiros” regimes democráticos. Não eram mesmo: em primeiro lugar porque não existem “verdadeiros” regimes democráticos e, em segundo lugar, porque a democracia é um processo de desconstituição de autocracia, não um modelo estático para colocar no lugar de qualquer governo autocrático.

É claro que é desejável que todos os cidadãos participem e que a cidadania seja universalizada. Mas isso não tem a ver com a gênese do processo de democratização (que é o que, propriamente, podemos chamar de democracia). É uma conquista progressiva de inclusão na política, que pode ser impulsionada, sim, pela democracia, mas não pode ser condição para o início e a continuidade do processo de democratização (que começa sempre em autocracias, onde não apenas alguns, mas ninguém, ex parte populis, participa de nada).

DEMOCRACIA E GUERRA

Ademais, tanto os redatores do édito de Clístenes, aposentando Hipias, quanto os redatores do Bill of Rights que queriam domesticar Carlos “Leviatã” I, não inventaram e reinventaram a democracia por um ato de força, por um golpe, por uma guerra ou por uma revolução violenta. Hipias deixou o poder pacificamente. Carlos I, não – e só por isso houve aquela guerra civil que levou à ditadura (transitória) de Cromwell (sim, guerra é um outro nome para autocracia), não que isso tivesse sido essencial para o início do segundo processo fundante de democratização que ocorreu na história. A democracia nunca nasce da guerra.

Referências

(1) MOSCA, Gaetano, História das Doutrinas Políticas, completada por Gaston Bouthoul. Rio de Janeiro: Zahar, 1958.

(2) Resumo elaborado por Marco Fridolin Sommer dos Santos no trabalho intitulado Funções do Estado, apresentado no curso de mestrado em Direito da UFRGS, na disciplina de Teoria Geral de Direito Público e publicado na Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, volume 13, 1997.

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