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A terceira invenção da democracia

 

Texto publicado em janeiro de 2013

“¿Qué sucedió con los gobiernos? Según la tradición fueron cayendo gradualmente en desuso. Llamaban a elecciones, declaraban guerras, imponían tarifas, confiscaban fortunas, ordenaban arrestos y pretendían imponer la censura y nadie en el planeta los acataba. La prensa dejó de publicar sus colaboraciones y sus efigies. Los políticos tuvieron que buscar oficios honestos; algunos fueron buenos cómicos o buenos curanderos. La realidad sin duda habrá sido más completa que este resumen.“

Personagem Eudoro Acevedo no conto “Utopia de un hombre que está cansado” de Jorge Luis Borges (1975) que integra El libro de arena.

PREFÁCIO

Parece evidente que a democracia representativa – a democracia reinventada pelos modernos – vem sendo questionada em muitos lugares neste dealbar do século 21. O aumento do descontentamento com os sistemas políticos representativos vem abrindo possibilidades para uma nova reinvenção da democracia, uma terceira invenção da democracia.

Não é de hoje que se apontam vários problemas na democracia inventada pela segunda vez pelos modernos. Ficou tão célebre quanto batida a frase de Winston Churchill, pronunciada em 11 de novembro de 1947, na House of Commons: “Democracy is the worst form of government, except for all those other forms that have been tried from time to time.”

A questão é saber quais são esses problemas, se eles podem ser resolvidos, se eles podem ser resolvidos com a abolição da democracia representativa ou se eles podem ser resolvidos nos marcos da própria democracia representativa.

Dentre os vários problemas detectados na democracia representativa, pelo menos dois – talvez os dois problemas principais – são de difícil solução nos marcos da própria democracia representativa, mas também não podem ser solucionados com a abolição da democracia representativa.

Esses problemas são:

a) a democracia representativa acaba sendo confundida pelos seus atores – para todos os efeitos práticos – com sistema eleitoral, não tendo proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia; e

b) a democracia representativa, ao virar um modo político de administração de uma estrutura desenhada para a guerra (o Estado-nação), adotou, ela própria, uma dinâmica adversarial (dita competitiva) que dificulta a constituição de um sentido público.

Remanesce ainda um terceiro problema, herdado da primeira invenção da democracia pelos atenienses: a democracia não tem proteção eficaz contra o discurso inverídico, sobretudo contra o populismo, o que realimenta o primeiro problema mencionado (o do uso das eleições contra a democracia).

Como esses problemas refletem falhas estruturais (vale dizer, “genéticas”) e se constituem como erros de projeto, não é possível resolvê-los aperfeiçoando os mecanismos da democracia representativa. São limites ao processo de democratização entendido como movimento constante ou intermitente de democratização da democracia ou de desconstituição de autocracia.

Se os problemas apontados acima não podem ser resolvidos satisfatoriamente nos marcos da própria democracia representativa, então é sinal de que sua solução só poderá ser alcançada nos marcos de uma nova democracia; ou melhor: de novas experimentações – no plural – de democracia.

A julgar pelos questionamentos que vêm sendo feitos nas duas últimas décadas, espera-se experiências de democracia que sejam: mais distribuídas, mais interativas, mais diretas, com mandatos revogáveis, regidas mais pela lógica da abundância do que da escassez, mais vulneráveis ao metabolismo das multidões e mais responsivas aos projetos comunitários, mais cooperativas, mais diversas e plurais (não admitindo apenas uma única fórmula internacional mas múltiplas experimentações glocais).

Este livro é sobre isso. E a isso se chamou de terceira invenção da democracia. Mas não se trata de um novo modelo, de uma fórmula aplicável à várias circunstâncias: a terceira invenção da democracia é apenas a continuidade do processo de democratização nas condições da sociedade em rede. E isso exige a desinvenção das fórmulas de democracia.

São Paulo, 18 de dezembro de 2013

Augusto de Franco

 

ÍNDICE

PREFÁCIO

APRESENTAÇÃO

Sobre a presente abordagem

Do que se trata

As evidências

Questionamentos à democracia realmente existente

O fim das massas arrebanhadas e o início das multidões consteladas

A democracia nunca nasce da violência

INTRODUÇÃO

É possível reinventar a democracia?

A primeira invenção da democracia

Depois da primeira invenção da democracia

A segunda invenção da democracia

As diferenças entre a primeira e a segunda invenções da democracia

A democracia dos modernos não pode ser mais democratizada

A confusão da segunda democracia com regime eleitoral

A terceira invenção da democracia

Inventando a terceira democracia

CAPÍTULOS

1 – Democracia distribuída

2 – Democracia interativa

3 -Democracia direta

4 – Democracia com revocabilidade

5 – Democracia com lógica da abundância

6 – Democracia de multidões e comunidades

7 – Democracia cooperativa

8 – Democracias glocais

9 – Zilhões de sociosferas democráticas

10 – Ilhas democráticas na rede

NOTAS E REFERÊNCIAS

 

APRESENTAÇÃO

Sobre a presente abordagem

Por que e como foi inventada a democracia? Até hoje os estudiosos têm imensa dificuldade de decifrar o que ocorreu. Não estabelecem as conexões necessárias e não reconhecem os padrões sem os quais não se pode desvendar o sentido das configurações coletivas que se constelaram. Não há, portanto, uma compreensão propriamente social do surgimento da democracia. Ou, quando há, é uma lástima: tomam por social aquilo que diz respeito às condições de vida (em geral de sobrevivência) das populações e não à fenomenologia da interação, quer dizer, o fluxo da convivência social.

Alguns pensadores do século passado conseguiram captar o “gene” (ou o meme) original democrático – como John Dewey, Hannah Arendt e Humberto Maturana (entre outros; poder-se-ia citar também Claude Lefort, Cornelius Castoriadis e Amartya Sen) – mas a maioria dos teóricos da política ficaram presos aos esquemas explicativos da modernidade que replicavam visões em que o social era uma espécie de epifenômeno (na verdade, para a maioria deles só existiam os indivíduos, o mercado e o Estado) e, assim, não conseguiram perceber os condicionamentos recíprocos entre o padrão (social) de organização e modo (político) de regulação.

Ora, do ponto de vista social, a democracia é um erro no script da Matrix. Não se explica de outra maneira. Não era necessária. Nem foi o resultado de qualquer “evolução” social. Não surgiu dos interesses privatizantes de alguma corporação. Surgiu em uma cidade no mesmo momento em que nela se conformou um espaço público.

Os teóricos políticos do século passado, porém, não podiam se conformar com isso. Viciados na ideia (ou no esquema explicativo) de determinação de uma superestrutura por uma estrutura (um velho vício de raiz iluminista difundido pelo marxismo), queriam sempre surpreender o que está debaixo do pano, queriam desvendar a máquina que estaria por trás do que acontece na vida fenomênica. Dessarte, por não encontrar o mecanismo oculto (em geral econômico, como acreditam) que estaria determinando uma nova criação política, suas análises não foram (e ainda não são, posto que esses teóricos remanescem no século atual) capazes de revelar que estamos diante de um esgotamento da democracia dos modernos e da possibilidade de emergência de uma nova democracia. Há, ademais, um problema de pressupostos.

Os analistas políticos, em sua maioria, pensam a partir de um conjunto de pressupostos, raramente discutidos porquanto tomados como verdades evidentes por si mesmas: o primeiro deles é que o ser humano é inerentemente competitivo (postulado largamente falsificado pelas evidências e, portanto, impossível de ser sustentado pela ciência, tendo status semelhante ao de uma crença de natureza religiosa) e faz escolhas racionais tentando maximizar a satisfação de seus interesses egotistas (quando todas as evidências apontam que na raiz da ação dos humanos – e até dos mamíferos em geral – está mais uma emotional motivation do que uma rational choice); o segundo é que sem líderes destacados não se pode mobilizar e organizar a ação coletiva (o que vem sendo refutado fartamente pelos fatos: sobretudo pelos aglomeramentos, enxameamentos e amassamentos que vêm ocorrendo com cada vez mais frequência em sociedades altamente conectadas); e o terceiro é que nada pode funcionar sem um mínimo de hierarquia (idem, do contrário não estaríamos assistindo a profusão de redes mais distribuídas do que centralizadas).

Além disso, os analistas políticos, de maneira geral, baseiam suas análises no suposto de que o conteúdo (do que flui) é relevante para explicar a “realidade” (o que acontece), confundindo informação (mensagem transmitida-recebida) com comunicação (acoplamento estrutural), longe de perceber que o comportamento coletivo é função da fenomenologia da interação (estando os fenômenos interativos, por sua vez, na dependência não de conteúdos e sim do padrão de organização: basicamente, dos graus de distribuição e conectividade da rede social).

Quando é que tudo muda nas análises da democracia? Quando descobrimos que movimentos de desconstituição de autocracia são acompanhados por movimentos de desconstituição de hierarquia. A democracia pode se democratizar (ou se radicalizar, a ponto de ser considerada uma pluriarquia) em redes com alto grau de distribuição (e, consequentemente, com altos graus de conectividade e interatividade). Dizendo de modo mais preciso: os processos de democratização tenderão a ter continuidade na medida em que as sociosferas onde ocorrem forem adquirindo uma topologia mais distribuída do que centralizada.

Porque a democracia é uma espécie de “metabolismo” da rede social, cujo “corpo”, a estrutura, o hardware, é dado pelo padrão de organização. Mas esse “metabolismo”, essa dinâmica do modo de regulação, não é uma imanência, não emerge automaticamente da estrutura, em função do seu padrão de organização. Democratização (do modo de regulação) e distribuição (da rede) acontecem ao mesmo tempo, ou melhor, são fenômenos acompanhantes, sinergicamente acompanhados um do outro, mas não causados um pelo outro.

O padrão de organização condiciona possibilidades. Quanto mais centralizada for a topologia da rede, menos chance terá o processo de democratização de prosseguir. Mas mesmo em padrões mais distribuídos do que centralizados, ainda assim é necessário que haja ação política para instaurar modos de regulação crescentemente democráticos. Ações políticas democratizantes, entretanto – eis o ponto – ou serão acompanhadas por mudanças estruturais que tornem a rede mais distribuída ou terão menos chances de prosseguir (e de perdurar). Ora, tornar a rede mais distribuída significa, exatamente, desconstituir hierarquia. Assim como a democracia pode ser tomada, no sentido “forte” do conceito, como movimento de desconstituição de autocracia, as redes distribuídas podem ser tomadas como movimentos de desconstituição de hierarquia, sendo que esses processos estão ligados, não por causalidade direta nem automática e sim por condicionamentos recíprocos.

Pode-se dizer que tanto a expansão da liberdade quanto a incidência da cooperação (que ocorre na medida em que a rede se torna mais distribuída) são atributos do modo como os seres humanos se organizam (e nada mais). Mas não há uma fórmula organizativa capaz de produzir automaticamente liberdade sem política. É o processo político de desconstituir autocracia que amplia os graus de liberdade. E é o processo de netweaving, de desconstituir hierarquia, que amplia a cooperação.

Dito isto, podemos passar aos resultados da minha reflexão sobre a terceira invenção da democracia.

Do que se trata

Da democracia, como se sabe, houve uma primeira invenção (dos antigos) e uma segunda invenção (dos modernos). A segunda democracia reinventou a primeira, não apenas a reformou. Era mesmo impossível fazer uma reforma da democracia ateniense de sorte a adaptá-la ao Estado-nação europeu moderno. Nas condições da modernidade era impossível fazer isso, quer dizer, manter a democracia como modo de regulação de uma comunidade política (local), porque o Estado-nação era uma unidade política que agregava diversas comunidades poucos conectadas entre si.

E não somente em razão – como se alega frequentemente – do grande número de pessoas envolvidas (a população de um país), que habitavam comunidades subordinadas a uma nova unidade nacional e sim em virtude das características da clusterização havida: sem atalhos e sem meios de comunicação suficientes e adequados para permitir interação em tempo real ou sem distância entre os vários clusters de parentesco e vizinhança, de trabalho e de lazer, de aprendizagem, de prática e de projeto (que continuaram existindo, sim, mas perderam grande parte da sua condição de sujeitos políticos, players coletivos válidos e necessários do jogo democrático). As condições de conectividade e interatividade das novas unidades nacionais impediam procedimentos diretos de regulação como os adotados pelos antigos.

Nasceu assim uma democracia indireta, chamada democracia representativa, nas quais as unidades passaram a ser os indivíduos arrebanhados no Estado-nação e não mais as comunidades ou os clusters convivenciais emergentes da interação social. Tendo como sujeito o indivíduo, a democracia dos modernos só conseguiu se instalar a partir de um conjunto de proteções instituídas para os indivíduos contra a sua própria unidade política, quer dizer, contra o seu próprio Estado. Como instituição desenhada para a guerra, o Estado também se armou contra o cidadão e era necessário que os cidadãos se “armassem” igualmente contra o Estado.

Eis a razão pela qual a democracia dos modernos surgiu nos marcos do liberalismo e não pode vicejar a não ser onde se constituiu, com alguma legitimidade, um Estado que não invadia a esfera dos direitos dos cidadãos: o chamado Estado de direito. Ora, tal construção não teria sido possível a partir de uma reforma da primeira democracia. Os modernos tiveram, portanto, que reinventar a democracia e por isso pode-se dizer que a democracia representativa foi a segunda invenção da democracia.

Fala-se agora em terceira invenção da democracia porque o que está em curso não é, igualmente, uma reforma, em termos clássicos, da segunda democracia (a democracia dos modernos) e nem, muito menos, da primeira democracia (a democracia dos antigos). É ainda democracia, sim, porque a natureza da democracia como movimento de desconstituição de autocracia permanece, mas as formas pelas quais o processo de democratização pode avançar (ou pelas quais a democracia pode se democratizar mais) – alargando a brecha democrática – vão muito além de uma reforma, apontando para uma reinvenção mesmo da política.

Pode-se dizer que estamos na antessala de uma nova reinvenção da democracia – e, portanto, diante da possibilidade concreta de uma terceira invenção da democracia – porque o sistema representativo instituído pela democracia dos modernos não pode mais ser reformado, conquanto continue oferecendo as condições necessárias (ainda que não suficientes) para o avanço do processo de democratização (ou de alargamento da brecha democrática).

Os sintomas mais visíveis de que isso está ocorrendo são as manifestações que constelam multidões convocadas peer-to-peer (ou seja, em rede distribuída, por fora do broadcasting das instituições centralizadas), como os swarmings civis que ocorrem com cada vez mais frequência no mundo contemporâneo. Mas esses são apenas sintomas e não os únicos processos pelos quais a democracia poderá ser reinventada uma segunda vez.

Depois das primaveras e dos breves verões de alta efervescência popular, poderemos ainda caminhar para invernos mais ou menos obscuros. O processo não é linear e não acontece da mesma maneira em todo lugar. Em muitas localidades poderemos assistir a volta do domínio de organizações autocráticas ou o retorno ao poder de velhos atores estatais que foram apenas temporariamente desalojados. Mas isso também não durará muito em uma sociedade cada vez mais conectada e interativa.

O importante é perceber que uma nova democracia não nascerá apenas de manifestações. Tudo indica que serão necessárias muitas experiências glocais, de ensaios cooperativos de democracia como modo-de-vida, na base da sociedade e no cotidiano das pessoas.

As evidências

Várias evidências de mudanças profundas (e até certo ponto subterrâneas) que estão se processando na sociedade, com inevitáveis repercussões na esfera da política, começaram a surgir na primeira década deste século, com a emersão de fenômenos interativos – swarmings civis – como o 11M (aquela extraordinária manifestação, em várias cidades espanholas, a propósito da tentativa de falsificação, pelo governo de Aznar, da autoria dos atentados da Al Qaeda em março de 2004 em Madri, atribuindo-a falsamente ao separatismo basco). Nos anos seguintes, movimentações mais ou menos semelhantes começaram a surgir, quase sempre gestadas de forma subterrânea na sociedade, destoando dos padrões clássicos das mobilizações organizadas centralizadamente por hierarquias políticas e sindicais.

Em 2011 esses movimentos eclodiram no que ficou conhecido como “revolução árabe”, começando pelo 14 de janeiro na Tunísia, passando pelo 2 de fevereiro no Iêmen, pelo 11 de fevereiro no Egito (dia decisivo para a queda do ditador Mubarak), pelo 14 de fevereiro do Bahrein, pelo 17 de fevereiro na Líbia, pelo 9 de março em Marrocos e pelo 18 de março na Síria.

Outra incidência importante foi o 15M espanhol (que ficou conhecido como a manifestação dos indignados com a velha política, em maio de 2011 em Madrid, espalhando-se por outras cidade). Vieram também em seguida uma série de movimentos do tipo Occupy inspirados pelo 17S (o Occupy Wall Street no Zuccotti Park, em Nova York, em 17 de setembro de 2011).

Em 2013 tivemos outra eclosão, com o #DirenGezi na Turquia e as manifestações de junho de 2013 no Brasil (sobretudo as que ocorreram nos dias 17 e 18 de junho). Em 30 de junho de 2013 tivemos a maior manifestação da história, com 20 milhões (ou mais) de pessoas nas ruas e praças de várias cidades do Egito.

Em tudo isso a grande novidade não está nos protestos em si (eventos populares massivos, aparentemente semelhantes, já ocorrem há muito no mundo), mas na manifestação de uma até então desconhecida fenomenologia da interação. Uma parte dessas manifestações, sobretudo o 11M e o 15M espanhol, o 11F egípcio, o 17S americano, o 17-18J brasileiro não foi convocada e organizada de modo centralizado por algum líder ou entidade hierárquica. Foram processos P2P (peer-to-peer), emergentes, surgidos a partir de um alto grau de conectividade da rede social e da disponibilidade de mídias interativas em tempo real (o telefone celular, a internet e as incorretamente chamadas “redes sociais”, como o Twitter e o Facebook).

O caso brasileiro merece atenção especial pelo seu caráter, dimensão, capilaridade e abrangência. O que ocorreu naqueles dois dias de junho de 2013 (o 17-18J) no Brasil não foi uma dinâmica de luta contra um inimigo concreto, objetivo (como no 30 de junho no Egito, em que dezenas de milhões saíram as ruas para derrubar o hierarca da Irmandade Muçulmana): não havia um poderoso para tirar do poder (como ocorreu nas manifestações pelo impeachment do presidente Collor de Mello em 1992), não havia uma lei para ser aprovada (como nas manifestações das Diretas Já em 1984).

O que ocorreu foi a expressão molecular de um incômodo, de uma insatisfação difusa com o sistema (as pessoas sentiram que há algo muito errado com o sistema, embora não soubessem explicar o que é exatamente “o sistema”). Mas a vibe não era guerreira. As emoções predominantes não eram adversariais. As multidões não procuravam um inimigo para destruir. Simplesmente diziam: nós existimos, nós agora acordamos, nós queremos enfim declarar que não estamos satisfeitas com o que está acontecendo e nós não nos sentimos representados por vocês (os que estão no poder).

Tudo indica que os processos das grandes manifestações vão continuar a despeito de um refluxo no segundo semestre de 2013. Em 8 de dezembro a Ucrânia explodiu (com 1 milhão de pessoas na Praça da Independência, em Kiev, contra a subordinação do país ao governo de assassinos da FSB – ex-KGB – chefiado por Putin, que pretende recriar uma espécie de União Soviética para reeditar a guerra fria). Mas milhares de outras manifestações menores também ocorrem neste exato momento em numerosas localidades do mundo. E milhares de experimentos glocais de novos modos de vida e convivência social estão sendo ensaiados.

O que se está vendo são as manifestações que constelam multidões imensas (maiores do que em qualquer outra época da história) em praças e ruas e são televisionadas e transmitidas por outros meios (sobretudo pela Internet). Mas há também o que não se está vendo.

Do que não se está vendo há uma mudança molecular, profunda, comportamental, em curso agora na intimidade do multiverso de conexões ocultas que chamamos de social. As correntes interativas nas timelines estão ficando caudalosas como nunca – e não apenas no Twitter, no Facebook e nas demais plataformas interativas, mas no espaço-tempo dos fluxos (que é o que conta). Trilhões de novas sinapses estão ocorrendo e, para usar uma belíssima frase de Pierre Levy (1998), estão se configurando como um “imenso ato de inteligência coletiva sincronizado, convergindo para o presente, clarão silencioso… explodindo como uma ramada de neurônios” (1).

Sim, o processo continua e se tornará mais visível em breve. Com o aumento da interatividade, fenômenos como clustering, swarming, cloning e crunching podem se contrair no tempo a ponto de ser percebidos. Processos típicos de redes distribuídas foram detectados na esfera da política, ainda que não tenham sido compreendidos pelos analistas que permanecem ignorando a nova fenomenologia da interação. Esses analistas – mesmo percebendo o fenômeno – se recusam a acreditar que seja possível mobilizar e organizar a ação coletiva sem líderes destacados e sem um mínimo de hierarquia responsável pela promoção e condução dos eventos de massa.

Questionamentos à democracia realmente existente

Os novos movimentos emergentes vêm questionando, em alguma medida, o velho sistema representativo, independentemente da consciência de seus participantes ou interagentes. Em alguns casos – como o 15M – os manifestantes chegaram a expressar elementos de um programa de reinvenção da política ao declarar que seus sonhos não mais cabiam nas urnas dos velhos representantes, agitando palavras de ordem como “Democracia real já! Não somos mercadorias em mãos de políticos e banqueiros”, “Outra política é possível”, “A revolução estava em nossos corações e agora enche as ruas” e “Não sou contra o sistema, o sistema é que é contra mim”.

Tudo isso surgiu misturado com questionamentos à democracia. E não poderia ser de outro modo de vez que a democracia representativa, a democracia no sentido “fraco” do conceito, como modo político de administração do Estado ou sistema de governo, é a democracia realmente existente nos países (quer dizer, nos países que a adotam com a maior parte dos seus requisitos, o que corresponde, na verdade, a menos de 50% dos países do globo). Tal contingência tem dificultado que esses novos atores entendam quais são os problemas da democracia que temos.

No plano teórico não conseguiram ainda ver que uma democracia realizada como modo de administração política do Estado-nação carrega uma contradição fundamental que limita o processo de democratização. Pensam que a democracia realmente existente (a democracia representativa, formal e política que vigora nos países que a adotam) não é direta, participativa e social para satisfazer interesses das elites (o tal 1%, o alvo identificado por alguns manifestantes). Não percebem que a estrutura centralizada onde se aplica a democracia realmente existente não pode se deixar pervadir continuamente por uma dinâmica distribuída (mesmo que tal estrutura estivesse a serviço dos 99%).

Ora, o Estado-nação tem uma morfologia hierárquica porque é um fruto da guerra, foi desenhado para a guerra, foi gerado para um mundo em que a coexistência só podia se dar nos marcos do equilíbrio competitivo. Mas a democracia é um “metabolismo” de redes com graus de distribuição maiores do que aqueles que podem ser alcançados pelo Estado-nação. Esta é a razão – incompreendida – dos limites que a democracia dos modernos impõe à continuidade do processo de democratização.

No plano político, alguns atores das novas manifestações democráticas não perceberam ainda que o problema não é o que há de democrático nas democracias realmente existentes e sim o que não há. Ou seja, não perceberam que o problema não é a democracia e sim a sua autocratização (promovida pelas protoditaduras ou pelas democracias formais em processo de autocratização) e a sua manipulação (promovida pelos governos neopopulistas que parasitam regimes democrático-formais, usando as eleições contra a democracia para degenerar as instituições e permanecer indefinidamente no poder).

Nessas circunstâncias eles não podem compreender que a democracia que temos – com todas as suas imperfeições – é condição necessária para a democracia que queremos. E não chegam sequer a se perguntar por que movimentos como esses (como os Occupy, por exemplo) não acontecem na Coréia do Norte, em Cuba ou na China, ou em Teerã, na Guiné Equatorial, em Angola, no Zimbabwe, em Camarões, no Sudão, no Chade, na Etiópia, em Gâmbia, no Uzbequistão, no Cazaquistão, no Tadjiquistão… para não falar de regimes como o que vige na Rússia de Putin, onde os movimentos de contestação são duramente reprimidos e seus participantes são perseguidos, encarcerados e mortos por um governo de assassinos (da FSB, ex-KGB).

Por essas e por outras razões, os novos atores têm dificuldade de perceber que “o inimigo” não é a democracia (a democracia política, formal e representativa ou qualquer forma imperfeita e limitada de democracia) e sim tudo que impede ou enfreia o processo de democratização, ou seja, tudo que tenta fechar a brecha democrática por meio da autocratização dos modos de regulação de conflitos e da restrição das liberdades.

Não deixa de ser curioso o fato de que existam movimentos como esses que, a julgar pelas declarações de alguns de seus manifestantes, às vezes dão a impressão de querer detonar as pouquíssimas 25 democracias representativo-formais plenas que existem no mundo e não existam movimentos semelhantes para abolir as mais de 50 ditaduras (e assemelhadas) e os 70 regimes restritivos à liberdade que ainda remanescem nesta segunda década século 21…

A despeito, porém, da consciência de seus atores sobre o que está realmente em jogo, o sentido geral desses movimentos é o da reinvenção da política. O sentido é correto, pois da evidência de que a democracia representativa (estabelecida sob um Estado de direito) seja condição necessária para o ensaio de formas políticas mais democráticas capazes de superá-la, não se pode inferir que isso acontecerá por uma reforma do velho sistema representativo. Em suma, o juízo de que a democracia que temos é condição necessária para a democracia que queremos não significa que a democracia que queremos será gerada a partir (ou como um desenvolvimento interno) da democracia que temos.

Nos últimos anos, a partir das descobertas da nova ciência das redes, pode-se chegar à conclusão de que o velho sistema político não poderá ser reformado, nem por dentro (por uma progressiva democratização capaz de “aperfeiçoá-lo”, como julgam tolamente os liberais), nem por fora (por uma espécie de revolução global capaz de substituí-lo de modo abrupto por outro sistema, supostamente mais democrático, com a adoção de novos procedimentos mais diretos, participativos e deliberativos, como advogam alguns dos novos teóricos da democracia que são, sem o saber, teóricos da autocracia). E isso, simplesmente, porque, ao que tudo indica, não haverá mais um sistema.

O fim das massas arrebanhadas e o início das multidões consteladas

Multidões de pessoas conectadas – e formadas a partir de miríades de micromotivos diferentes (compondo uma grande murmuration) – não são massas arrebanhadas. Bem… é aqui que começa uma (nova) conversa logo após o fim do (velho) mundo (único).

Uma multidão de milhões não pode ser convocada centralizadamente, nem mesmo descentralizadamente. Ela acontece por um mecanismo distribuído próprio da rede. Ela é a manifestação de uma fenomenologia da interação, um swarming (enxameamento). Felizmente, swarmings – como os que aconteceram em Madri (2004 e 2011), no Egito (2011) e no Brasil (2013) – não podem ser planejados por um grupo centralizado, não podem ser urdidos por um comitê central e nem podem ser convocados por meios broadcasting. Só ocorrem quando se trafega pelos canais próprios das redes, por meios P2P, ou seja, quando o fluxo percorre os múltiplos caminhos de topologias distribuídas. São necessários muitos feedbacks, muitos laços de retroalimentação de reforço, muitas reverberações, para que pequenos estímulos provenientes da periferia dos sistemas estáveis afastados do estado de equilíbrio, possam se amplificar de modo a modificar o comportamento dos agentes do sistema como um todo. Só quem pode fazer isso é a rede, não hierarquias.

Pode-se, no máximo, tentar clonar as estruturas distribuídas das redes sociais realmente existentes (e é bom não confundir as redes sociais, quer dizer, as pessoas interagindo segundo determinado padrão mais distribuído do que centralizado, com as mídias sociais, as ferramentas interativas – como o Facebook e o Twitter) e procurar atuar de modo coerente com elas. Atuar de modo coerente com a estrutura e a dinâmica de mundos distribuídos significa fazer netweaving: mais do que cortar e quebrar (to hack e to crack), tecer, alinhavar. Ou seja, ser mais interativista do que ativista (militante).

Nada de organizar destacamentos. Interagir para clusterizar (sim, tudo que interage clusteriza). Distribuir para enxamear (sim, tudo que interage, a partir de certo grau de distribuição, conectividade e interatividade, pode enxamear). Conectar para contrair o tamanho social do mundo, quer dizer, para ensejar e acelerar o crunching (o amassamento que ocorre em Small Worlds Networks) que está mudando não apenas a estrutura e a dinâmica, mas a natureza daquilo que chamamos de sociedade humana.

Mesmo assim, não se sabe – e é bom que não se saiba de antemão – se os fenômenos mencionados vão acontecer. Eles podem acontecer e podem não acontecer. O importante é não tentar instrumentalizar os outros, mobilizá-los para o confronto, insuflar um ânimo adversarial, construir e demonizar inimigos. Os recentes eventos no Brasil mostraram que o importante é não iniciar uma espiral de violência. O importante é construir a paz e não a guerra.

A democracia nunca nasce da violência

Não há um caso, um único caso na história. A primeira democracia, a democracia dos antigos gregos, não nasceu assim: os atenienses frequentadores da Ágora não organizaram um atentado ao tirano Psístrato ou ao seu filho Hipias, nem, muito menos, insuflaram uma rebelião popular. O protagonismo daquela nascente dinastia autocrática foi interrompido, sim, mas por ação pacífica. Os democratas simplesmente proclamaram um édito em que dispensavam os serviços do autocrata. Clístenes, Efialtes e Péricles não tomaram o poder tirânico para exercê-lo da sua maneira, simplesmente dispensaram esse poder (quer dizer, recusaram-se a reproduzi-lo do modo como estava estruturado: e é a isso, precisamente, que chamamos de primeira invenção da democracia).

A democracia dos modernos também não se estabeleceu a partir de nenhuma guerra, ainda que tenha ficado constrangida a se transformar em (e a se rebaixar a) um modo de administração política do Estado-nação, este sim, uma estrutura desenhada pela guerra e para a guerra. Esta, aliás, é a principal razão dos limites que a democracia atualmente existente impõe ao processo de democratização e, inclusive, mais do que isso, a razão da sua falência, agora anunciada pelos novos movimentos da sociedade-em-rede.

A terceira democracia, quando vier, também não virá por meio de uma guerra. Por que? Ora, porque a democracia é um modo pazeante das relações. Ela é o contrário da autocracia, que só pode se manter com base na guerra. Ela não é um lugar para se chegar e sim um modo de caminhar que desconstitui autocracia na medida em que recusa combater e vencer para derrotar inimigos (reais ou construídos como pretexto para justificar uma estratégia de poder).

As democracias não nascem de rebeliões, nem de revoluções entendidas como atos violentos de remoção dos antigos ocupantes dos cargos de poder e sua substituição por novos ocupantes. Todos os processos que foram assim desencadeados produziram mais autocracia, não mais democracia. Estreitaram a brecha democrática que foi aberta, uma ou outra vez na antiguidade e na modernidade, na civilização patriarcal e guerreira. Restringiram em vez de ampliar as liberdades.

As primeira medidas dos governos revolucionários que chegaram ao poder pela violência foram, via de regra, a abolição da liberdade de imprensa e da liberdade de organização, a instalação de polícias políticas e a ereção de monstruosos aparelhos estatais de espionagem interna e repressão. Ademais, provocaram verdadeiros genocídios, os maiores de que se tem notícia na história.

As democracias não são originadas em eventos épicos, em grandes batalhas, mas são resultados de processos moleculares, de dinâmicas de rede (sim, se não houvesse uma rede social em Atenas, com significativo grau de distribuição, a conversação na praça do mercado que deu origem à primeira democracia não teria acontecido). As democracias não são regimes de heróis, de visionários desvairados que querem conduzir rebanhos, de líderes manipuladores, de utopistas vidrados em suas fórmulas para redimir a humanidade e salvar a espécie humana por meio de grandes confrontos épicos, de batalhas titânicas. A democracia é lírica, é um modo de convivência pacífico e pacificante, voltado para transformar inimizade em amizade política e – para lembrar John Dewey (1939) – praticado pelas pessoas comuns (2).

Atribui-se ao Mahatma Gandhi o dito – na verdade proferido por Abraham Johannes Muste (1885-1967) – de que não existe um caminho para a paz, a paz é o caminho. O mesmo pode ser dito da liberdade, da materialização do ideal de liberdade como autonomia e da democracia como modo pazeante de regulação de conflitos. Não existe caminho para a democracia: a democracia é o caminho. Se queremos uma nova democracia, mais democratizada ou radicalizada, não há outro caminho senão a democratização.

A terceira invenção da democracia trata disso: da continuidade do processo de democratização nas condições de uma sociedade-em-rede.

 

INTRODUÇÃO

É possível reinventar a democracia?

Sim, é possível reinventar a democracia. Se a democracia não pudesse ser reinventada, ela não poderia ter sido inventada. Ao dizer que a política é o que é, não havendo condições de mudar sua natureza (a relação amigo-inimigo), o realismo político está, na verdade, inoculando uma vacina contra as mudanças políticas democratizantes: está dizendo que a política será sempre o que foi e sempre como foi; ou como se avalia que sempre foi. Ora, na maior parte do tempo a política não foi democratizante: apesar da onda democrática mundial do último século, nos últimos seis milênios a democracia não passou de uma experiência localizada, frágil e fugaz. Depois da sua invenção pelos gregos, a tendência que vigorou amplamente foi a da autocratização e não a da democratização. Por isso teve razão Amartya Sen (1999) quando, perguntado sobre qual teria sido o acontecimento mais importante do século 20, respondeu de pronto: a emergência da democracia (3).

Em virtude de uma conjunção particularíssima – provavelmente fortuita – de variados fatores, sociedades humanas na antiguidade lograram abrir uma brecha na cultura autocrática (patriarcal, hierárquica e guerreira), ensaiando pactos de convivência estabelecidos em redes de conversações entre iguais, que aceitavam a legitimidade do outro e valorizavam sua opinião e não apenas o seu conhecimento técnico ou o seu saber científico ou filosófico. Registros históricos apontam que isso aconteceu em cidades gregas, a partir de 509 antes da Era Comum, mas não é improvável que tenha ocorrido também, de modo mais fugaz, em outras ocasiões e lugares (o relato profético da chamada Assembleia de Siquém, ocorrida na Palestina entre os séculos 12 e 11 (?) a. E. C., talvez constitua um indício importante nesse sentido). Assim surgiu a democracia como uma experiência de conversação em um espaço público, quer dizer, no caso de Atenas, não privatizado pelo autocrata.

Circunstâncias históricas peculiares – que possibilitaram as reformas de Clístenes, de Efialtes e o início do protagonismo Péricles – geraram uma configuração singular, uma constelação particularíssima de fatores que permitiu a abertura da brecha democrática. O fato é que, do ponto de vista do padrão de organização, a democracia não teria surgido sem a formação de uma rede local com significativo grau de distribuição em Atenas. Em Atenas, as instituições democráticas foram criadas para afastar qualquer risco de retorno do poder exercido pelo tirano Pisístrato e seus filhos a partir da experimentação de redes de conversações em um espaço (que se tornou) público.

A primeira invenção da democracia

A primeira invenção da democracia durou de 509 a 322 a. E. C. A democracia foi uma invenção coletiva, uma espécie de “metabolismo” da rede social (com significativo grau de distribuição) que se formou na Agora, em Atenas. Foi um movimento de desconstituição de autocracia. Mas os historiadores não captaram isso e sim os feitos dos indivíduos: as guerras que travaram, os assassinatos que cometeram ou de que foram vítimas, os golpes que tramaram ou dos quais se defenderam, os cargos de poder que conquistaram ou dos quais foram apeados e as reformas que impulsionaram ou tentaram evitar.

Diz-se que tudo começou com as reformas de Sólon (638-558), sobretudo a instituição da Ecclesia (assembléia) e da Boulé (conselho) por volta de 590. Mas, na verdade, do ponto de vista da democracia como desconstituição de autocracia, tudo começou em consequência da intervenção de Psístrato, que deu um golpe militar e introduziu a tirania em Atenas em 546, governou até 527 e foi substituído por seus filhos Hipias e Hiparco. Hiparco foi assassinado em 514. Hípias ficou no poder até 510 e foi destituído por Clístenes.

Clístenes (565-492) fez uma reforma da constituição (508) e abriu caminho para Efialtes (que fez uma reforma do Areópago). Efialtes foi assassinado em 461 ensejando a ascensão de Péricles, que exerceu seu protagonismo político de 461 a 429. A democracia ateniense floresceu neste período. E o século 5 foi também chamado de século de Péricles.

Em 338 Atenas foi derrotada pela Macedônia e ficou sob o domínio de Filipe e de seu filho Alexandre. Escolhe-se o ano de 509 para marcar o início da democracia porque foi a época do fim da tirania dos psistrátidas. Escolhe-se o ano de 322 para marcar o fim da democracia ateniense porque foi o ano em que a oligarquia foi imposta em Atenas por Antipatro, regente do império de Alexandre. Foi também o ano da morte de Demóstenes (384-322).

É claro que todos esses registros são sofríveis. Escritos sob o influxo de culturas autocráticas milenares, os relatos históricos não podiam mesmo revelar o que estava acontecendo do ponto de vista social.

A democracia foi a mais formidável antecipação de uma era interativa que já ocorreu nos seis milênios considerados de “civilização”. Foi uma invenção fortuita e gratuita de pessoas que logrou abrir uma fenda no firewall erigido para nos proteger do caos, para que não caíssemos no abismo (ou não mergulhássemos no fluxo da convivência social).

Mas na verdade as pessoas que inventaram a primeira democracia não tinham a menor consciência das implicações e consequências do que estavam fazendo. Talvez tivessem motivos estéticos. Ou talvez quisessem, simplesmente, abrir uma janela para poder respirar melhor. Em consequência, abriram uma janela para o simbionte social poder respirar, sufocado que estava, há milênios, em sociedades de predadores (e de senhores).

Não é por acaso que no primeiro escrito onde aparece a democracia (dos atenienses) – em Os Persas, de Ésquilo (427 a. E. C.) – ela tenha sido apresentada como uma realidade oposta à daqueles povos que têm um senhor.

Depois da primeira invenção da democracia

É surpreendente que, depois da experiência dos gregos, a democracia tenha retrocedido, não avançado. E que isso tenha ocorrido tanto na prática quanto na teoria.

Sobre o tema há, por certo, muitas controvérsias. Alguns, como Dahl (1998), tentam interpretar a República romana como uma versão (latina) da democracia (grega) (4). Mas, ao que tudo indica, não se trata exatamente da mesma coisa, visto que o sistema de governo com participação popular dos romanos não reunia aqueles três atributos – de isonomia, isologia e isegoria – que caracterizavam o funcionamento da comunidade (koinonia) política de Atenas e de outras cidades gregas do período democrático (509-322).

Se encararmos a democracia, no seu sentido “fraco”, apenas como sistema de governo (popular) – e não, em seu sentido “forte”, como sistema de convivência ou modo de vida comunitária que, por meio da política praticada ex parte populis, regula a estrutura e a dinâmica de uma rede social – perceberemos que várias outras experiências surgiram concomitante e posteriormente à experiência dos gregos: Roma (do final do século 6 até meados do século 2), governos locais em cidades italianas (como Florença e Veneza, por exemplo, do início do século 12 até meados do século 14), bem como outras experiências endógenas de governo que admitiam alguma forma de assembleia com participação mais ou menos popular (na Inglaterra, na Escandinávia, nos Países Baixos, na Suíça e em outros pontos ao norte do Mediterrâneo). De qualquer modo, foram experiências insuficientes diante da tendência autocrática predominante.

A rigor tivemos um interregno autocrático de dois mil anos (de 322 a. E. C. até o século 18; ou, com alguma boa vontade, até o século 17).

A segunda invenção da democracia

Depois da experiência fundante da democracia grega, ou seja, da primeira invenção da democracia, os modernos reinventaram a democracia e tentaram ensaiá-la no Estado-nação europeu: um fruto da guerra, da paz de Westfália (1648-1659). O Pacto do Livre Povo Inglês (1649) é as vezes tomado como um marco do início da extensão dos direitos políticos a todos os cidadãos. Mas existiram muitos antecedentes e consequentes.

A segunda invenção da democracia foi logo influenciada pela concepção do Estado liberal. Mas se tomarmos a democracia como movimento de desconstituição de autocracia e não como forma de governo, então as tentativas dos modernos de limitar as atividades do Estado, como queria von Humbolt (1792), inserem-se no mesmo movimento iniciado pelos atenienses contra a tirania (5). O sentido desse movimento é a liberdade e esse movimento é o que podemos chamar propriamente de política na acepção democrática original do termo.

Não importa se a primeira democracia foi inventada contra o poder tirânico de Psístrato e seus filhos em Atenas ou se a segunda democracia foi, em parte, inventada contra a monarquia absolutista de Carlo I na Inglaterra. A despeito das teorias liberais do Estado, que tentaram interpretar a reinvenção da democracia pelos modernos do ponto de vista da liberdade do indivíduo perante o Estado, a democracia continuou sendo um movimento de desconstituição de autocracia.

Do ponto de vista dos sistemas autocráticos, amplamente predominantes, a democracia – para usar uma expressão de Saint-Exupery (1929), empregada em outro contexto (no livro “Correio Sul”) – foi “um erro no cálculo, uma falha na armadura…” devidamente corrigida nos dois mil anos seguintes à experiência dos gregos (6). Quando os modernos tentaram reinventá-la, só então se pôde perceber toda a força da tradição autocrática. Nos dois séculos posteriores às ousadias teóricas de Althusius (1603), Spinoza (1670) e Rousseau (1762) – que lançaram os fundamentos para a reinvenção da democracia pelos modernos: a ideia de política como vida simbiótica da comunidade, a ideia de liberdade como sentido da política e a ideia de democracia como regime político capaz de materializar o ideal de liberdade como autonomia –, os pensadores políticos posicionaram-se, em sua imensa maioria, francamente contra a democracia.

O juízo de Burke (1790), segundo o qual “a democracia é a coisa mais vergonhosa do mundo”, é emblemático desse ânimo autocratizante que vigorou nos dois milênios anteriores à época em que a democracia foi reinventada pela primeira vez (7).

As diferenças entre a primeira e a segunda invenções da democracia

A democracia surgiu como um projeto local, não nacional. O grupo de Péricles (às vezes chamado indevidamente de “partido democrático”) não foi constituído para tentar converter os espartanos ou qualquer povo da liga ateniense à democracia (e nem para empalmar e reter indefinidamente o poder em suas mãos, como grupo privado) e sim para realizar a democracia na cidade, na base da sociedade e no cotidiano do cidadão enquanto integrante da comunidade (koinonia) política.

Foram os modernos que tentaram transformar a democracia em um projeto inter-nacional (ou seja, válido para um conjunto de nações-Estado). Mas na sua forma originária ela só poderia se materializar plenamente – como percebeu com toda a clareza John Dewey (1927) – no local: é um projeto vicinal, comunitário, que tem a ver com um modo-de-vida compartilhado (8). E é mais o “metabolismo” de uma comunidade de projeto do que o projeto de alguns interessados em conduzir uma comunidade para algum lugar segundo seus pontos de vista particulares ou para satisfazer seus interesses (uma definição nua e crua de partido).

A polis grega do período democrático não era a cidade-Estado e sim a koinonia (comunidade) política. Como percebeu a argúcia de Hannah Arendt (1958), “a polis não era Atenas e sim os atenienses” (9). Isso, é claro, faz toda a diferença.

O Estado liberal ideal sintetizado por von Humbolt (1792) era o Estado-nação europeu moderno, um fruto da guerra, da paz de Westfália (1648-1659). Ocorre que guerra é sempre, em qualquer circunstância, um movimento de autocratização. Os gregos democráticos também se comportavam de forma apolítica (não-democrática) quando guerreavam, por certo, mas isso não era constitutivo do seu modo de vida democrático.

Há uma diferença, tão sutil quanto crucial, aqui: enquanto a democracia, para os gregos, era um modo de regulação da comunidade política (a polis democrática), os modernos transformaram a democracia numa forma de administração política de uma entidade estruturada pela e para a guerra (o Estado-nação). É claro que ambos os movimentos são de democratização, mas o primeiro era contra a instalação (ou melhor, a reinstalação) de um Estado como entidade privada (privatizada pelo autocrata) enquanto que o segundo era uma espécie de tentativa de convivência com uma entidade que não poderia se publicizar suficientemente pelo processo de democratização que os modernos experimentaram.

Mesmo democratizado, o Estado-nação moderno não poderia adquirir uma estrutura e uma dinâmica comunitária semelhante à da polis democrática. Essa “falha genética” da segunda invenção da democracia impediu que ela realizasse a democracia no seu sentido “forte”, como modo de vida, na base da sociedade e no cotidiano do cidadão. De sorte que o arcabouço institucional das sociedades democráticas modernas decalcou sempre, em alguma medida (e em grande medida), o modelo de uma estrutura desenhada para a guerra e, por isso, inevitavelmente, autocrática. É assim que as instituições políticas (como os governos e os partidos) e, também, muitas outras instituições da democracia dos modernos, continuaram, em grande parte, apresentando uma estrutura hierárquica e uma dinâmica autocrática.

A democracia dos modernos não pode ser mais democratizada

O que não se percebe é que autocracia e guerra estão coimplicadas. E que, portanto, movimentos de desconstituição de autocracia (isto é, movimentos de democratização), são movimentos de instalação de modos de regulação de conflitos que desconstituem a guerra por meio do pazeamento das relações. Nenhuma autocracia se sustenta sem guerra: seja a guerra propriamente dita, contra um inimigo externo ou interno configurado como grupo (organizado top down), seja a estado de guerra interno instituído a pretexto de combater um inimigo externo ou interno (ou dele se defender), seja a política praticada como arte da guerra (a política como continuação da guerra por outros meios, na formule inverse de Clausewitz-Lenin).

Ora, se o contrário da guerra não é a paz, mas a política (democrática), então nenhuma democracia pode continuar sendo democratizada enquanto prevalecer a construção de inimigos e a luta contra eles. Esta é a razão pela qual a segunda democracia (a democracia dos modernos) não pode ser mais democratizada na medida em que se instala em (e se circunscreve às) estruturas desenhadas para a guerra (lato sensu, ou seja, a guerra “quente”, fria, o estado de guerra ou a política pervertida como arte da guerra) e fortemente influenciadas por sua dinâmica.

Os modernos nunca chegaram a entender plenamente que o processo de democratização é limitado pela sua convivência com a guerra. Talvez porque, condenados a administrar estruturas desenhadas pela guerra (o Estado-nação moderno) não tenham conseguido captar, no plano conceitual, a contradição fundamental entre democracia e guerra.

Na verdade, nem os antigos democratas tiveram um entendimento adequado dessa contradição ou incompatibilidade original entre guerra e democracia. Sua compreensão de que a guerra era uma realidade apolítica se deu mais no plano factual do que conceitual.

Muito antes dos gregos, o principal movimento autocratizante foi a guerra. E depois dos gregos, a guerra foi o meio universal de acabar com a política (democrática) ou de estreitar a brecha por ela aberta nos sistemas de dominação. Guerra como modo de regular conflitos e de alterar a morfologia e a dinâmica da rede social para se preparar para o conflito externo (por meio do chamado “estado de guerra”, instalado internamente) foi o meio pelo qual a tradicionalidade política pôde se prorrogar, não apenas derrotando inimigos de modo violento, mas também construindo continuamente tais inimigos com o intuito de preservar uma morfologia e uma dinâmica social que, erigida em função da guerra, constituiu-se como um complexo cultural. Usando-se uma metáfora contemporânea, trata-se de um programa (software) que foi instalado na rede social e adquiriu capacidade de modificar essa rede (hardware) para se auto-replicar.

Quando reinventaram a democracia os modernos não perceberam que o grande problema para a política democrática não é prioritariamente a guerra propriamente dita, a guerra “quente” – conquanto ela continue sendo promovida por quistos autocráticos instalados em países democráticos contra países não-democráticos, por países não-democráticos contra países democráticos e por países não-democráticos entre si – mas o exercício da política como “arte da guerra” (esta sim, praticada universalmente como realpolitik). O que os modernos não entenderam? Os limites ao processo de democratização colocados pela sua convivência com a guerra, no caso, com a política praticada como uma espécie de continuação da guerra.

A questão de fundo é que a regulação da esfera pública (sem a qual não pode haver qualquer tipo de democracia) não pode se dar por meio de uma guerra (ou da política praticada como arte da guerra) entre grupos privados, como imaginaram os modernos. Os processos de competição política legalizados e institucionalizados pela democracia representativa não dão conta de construir uma governança democrática. Na falta desta, as suas instituições conseguem, no máximo, estabelecer uma governabilidade (em grande parte autocrática), dedicando-se a manter as regras de uma luta , de um combate permanente entre grupos privados, assegurando que o vencedor tenha o direito de privatizar a esfera pública de modo a prorrogar o seu poder sobre a sociedade (no fundo há sempre uma disputa pelo butim, na base do spoil system).

A principal instituição política não estatal da democracia dos modernos – senão a única – é o partido. Mas tal como o Estado-nação, partidos são instituições guerreiras: ainda quando não se dediquem ao conflito violento, operam a política como arte da guerra, como uma continuação da guerra por outros meios. Nesta exata medida, são organizações antidemocráticas. É difícil acreditar que o resultado desse embate constante, dessa interação adversarial permanente entre organizações privadas, conseguirá constituir um sentido público. Mas os modernos acreditaram nisso, talvez porque tenham se deixado influenciar pela autorregulação mercantil, que se dá por meio da competição entre atores privados. Mas a lógica e a racionalidade do mercado não são as mesmas da esfera pública. Sociedades competitivas, aliás, não constituem bons ambientes para mercados competitivos. Quem tem que ser competitivo é o mercado, não a sociedade.

Se não havia derramamento de sangue, pensaram os modernos: tudo bem. Mas não, não estava tudo bem para a continuidade do processo de democratização.

A confusão da segunda democracia com regime eleitoral

O processo de democratização é sempre um processo de publicização. Os modernos tiveram imensa dificuldade de entender isso, talvez porque vivessem em mundos fracamente conectados. Em mundos de alta interatividade, nos quais já estamos vivendo, outras categorias são necessárias (por exemplo, os conceitos de emergência ou complexidade) para entender o público (cujo processo de formação é cognato ao processo de democratização). O resultado é que os modernos acabaram maltratando o conceito de público (e de opinião pública).

Para a democracia representativa (sobretudo quando confundida com um processo meramente eleitoral, o que não é raro) opinião pública confunde-se com a soma das opiniões privadas da maioria da população. Ora, se a soma das opiniões privadas pudesse ser a mesma coisa que a opinião pública, não haveria necessidade do processo político. Na maioria dos países do mundo, se fôssemos organizar a sociedade com base nas opiniões da maioria da população, viveríamos provavelmente em uma ditadura ou em um tipo de regime excludente, preconceituoso, intolerante, corrupto e avesso a quaisquer dos elevados valores anunciados pelos defensores da democracia.

A democracia depende de uma chamada opinião pública, que não é o mesmo que a soma das opiniões dos habitantes que compõem a população de um país, mas que é composta a partir dos inputs fornecidos por aqueles que proferem opiniões no espaço público. Ou seja, a opinião pública não é a opinião da maioria da população, como somos induzidos a acreditar depois que apareceram os institutos de pesquisa de opinião. A opinião pública é aquela que se forma quando as opiniões são voluntariamente proferidas no espaço público e não quando são arrancadas por um entrevistador que bate à nossa porta, nos telefona ou corta o nosso caminho na via pública e depois totaliza as respostas que arrancou porque perguntou, mas que nós não estávamos dispostos a submeter ao debate público. Se existissem tais institutos na Atenas dos séculos 6 a 4, a democracia certamente não seria escolhida como forma preferível de governo. No entanto, a opinião pública em Atenas era favorável à democracia. Da mesma forma, no Brasil do auge do regime militar, os que se posicionavam contra o governo eram franca minoria e, ainda assim, expressavam a opinião pública da época.

Diz-se, com razão, que a opinião pública é um ator (ou um fator) que não pode ser desconsiderado nas sociedades contemporâneas. Ela não é exatamente o mesmo que chamamos de sociedade civil (sobretudo não é nada que se possa reduzir ao conjunto de organizações da sociedade civil). Ela é algo que se forma, por certo, a partir das opiniões privadas, porém quando tais opiniões interagem coletivamente formando configurações complexas que brotam por emergência. Nesse sentido o mecanismo de construção ou formação da opinião pública é o mesmo mecanismo de formação do que chamamos de público, como, aliás, já havia percebido John Dewey, em 1927, no seu clássico “O público e seus problemas” (10).

Dewey, é claro, não podia conceber, àquela altura, a emergência e outros processos acompanhantes da complexidade social, mas anteviu certos conceitos dos quais agora somos obrigados a lançar mão para tentar descrever a formação do público. Hoje podemos dizer que a diversidade das iniciativas da sociedade civil é capaz de gerar uma ordem bottom up. E que a partir de certo grau de complexidade, a pulverização de iniciativas privadas acaba gerando um tipo de regulação emergente. Quando milhares de micromotivos diferentes entram em interação, é possível se constituir um sentido coletivo comum que não está mais vinculado aos motivos originais dos agentes privados que contribuíram para a sua constituição.

No entanto, isso não é possível quando o número de agentes privados é muito pequeno. O que indica que o público propriamente dito só pode, portanto, se constituir por emergência. Pode até haver, provisória e intencionalmente, um pacto que reconheça alguns processos de constituição do público, assim como há, por exemplo, um pacto que reconhece como receita pública o resultado do montante de impostos pagos por agentes privados (com dinheiro privado). Não há uma mágica que transforma nossos recursos privados em recursos públicos quando pagamos impostos: há um assentimento social, que reconhece como válida a operação política pela qual esses recursos privados, pagos pelos chamados contribuintes, quando arrecadados compulsoriamente pelo Estado, passam a ser considerados como recursos públicos.

Mas há limites impostos pela racionalidade do tipo de agenciamento que estamos considerando. Querer transformar o interesse privado de um grupo em interesse público é magia negra. Seria, mal comparando, como querer chamar de receita pública os impostos pagos apenas por uma dúzia de contribuintes.

Não é um problema de quantidade. É uma questão de complexidade, em que, evidentemente, a quantidade é uma variável, mas não a única. Se somente uma dúzia de pessoas pagasse impostos, dificilmente haveria base para um pacto na sociedade reconhecendo como válido o direito de taxar esses contribuintes. Se houvesse tal pacto, ele seria um pacto privatizante e os tais contribuintes seriam considerados (e se comportariam como) donos do Estado (que, então, não poderia mais ser considerado um ente público). Por outro lado, há uma razão eloquente para afirmar que a quantidade não é a única variável nesse processo. Pois também não fica assegurada a formação do público pela simples soma – ou a totalização ex post e inorgânica – de inputs privados, mesmo que as parcelas dessa soma expressem quantitativamente a maioria de uma população.

No caso da chamada opinião pública, não basta somar (ou juntar e totalizar) as opiniões privadas. É necessário que essas opiniões se combinem, se polinizem mutuamente e se transformem nesse processo de emersão para que possamos ter uma opinião pública. Assim, poderá ocorrer que a maioria das opiniões privadas esteja em contradição com a opinião pública, mesmo quando as vertentes originalmente formadoras dessa opinião pública sejam minoritárias ou, até mesmo, francamente minoritárias (por exemplo, a opinião pública no Brasil de meados do século 19, quando, segundo algumas estimativas, apenas 1% da nossa população sabia ler e escrever – e os 99% analfabetos nem mesmo podiam usar os jornais como papel higiênico – era formada por opiniões privadas que, em sua origem, eram francamente minoritárias).

Não é que a posse de um conhecimento – como o conhecimento da língua falada e escrita, a alfabetização ou o letramento – qualifique a opinião por fora do processo político (sim, não estamos falando aqui de outra coisa senão do processo político), o que seria uma violação do pressuposto democrático básico de liberdade e valorização da opinião. É que os processos pelos quais as opiniões transitam na sociedade, basearam-se, a partir da modernidade, na palavra escrita e na interpretação do texto, escrito ou falado, criando assim uma condição de interação política que impede a participação dos que não possuem tais recursos cognitivos (ou de comunicação).

Em países em que as condições de interação política estão mais bem distribuídas, há uma tendência clara de convergência entre a opinião pública e a soma das opiniões privadas, até que ponto não se sabe. Mas isso explica por que a vitalidade da segunda democracia está sempre associada à existência de uma sociedade civil ativa ou de uma “classe média” vigorosa. Não, não é porque a posição de classe em termos clássicos, quer dizer, a posição em relação ao processo de produção ou de acumulação do capital seja determinante, como julgaram todas as vertentes economicistas do pensamento sociológico (inclusive porque a determinação de classe da chamada “classe média” é uma operação impossível para as teorias de classes sociais fundamentadas em alguma racionalidade econômica), e sim porque há um acesso diferencial ao campo onde se dá a interação das opiniões por parte dessa “classe” em relação às classes ditas subalternas (em virtude do analfabetismo estrito ou funcional destas últimas ou, hoje, de seu “analfabetismo” digital e, ainda, do seu exíguo tempo livre para poder se preocupar com assuntos que não digam respeito diretamente à sobrevivência e ao lazer terapêutico).

Tudo ou quase tudo que se diz sobre o público que não leva em conta o processo emergente pelo qual o público se constitui a partir da complexidade social não é capaz de explicar a natureza do público, nem de compreender a fenomenologia a ele associada.

De modo geral confundimos o público com o estatal, quando, originalmente, trata-se do contrário. A formação do Estado – em todas as suas formas pretéritas, desde o Estado-Palácio-Templo sumeriano, passando pelas Cidades-Estados monárquicas da antiguidade e pelos Estados reais e principescos – é o resultado de uma privatização dos assuntos comuns operada pelo autocrata. O surgimento da democracia foi o resultado de uma desprivatização, quando os assuntos privatizados pelo autocrata passaram a ser discutidos por todos (os iguais que quisessem discuti-los) na polis. Por isso tinha razão Aristóteles ao sugerir que público é o que é visível indistintamente para todos na comunidade (koinonia) política. Democracia e esfera pública são realidades coevas. Apenas ao Estado democrático pode-se atribuir um caráter público, mesmo assim dentro de certos limites bem estritos (ou estreitos).

Por exemplo, vejamos o que ocorre em relação às chamadas políticas públicas. Em geral, as políticas governamentais chamadas de políticas públicas não estão imunes à privatização (que é sempre uma desconstituição do sentido público). Um partido pode, por exemplo, alcançar o comando de um governo e, como organização privada que é, ao assumir o controle administrativo, direcionar uma determinada política segundo seus próprios interesses que não são públicos.

O fato de estar escrito em uma Constituição que uma coisa é pública, não significa que ela o seja realmente. Uma empresa dita pública tem suas contas, sua folha de pessoal e seus planos estratégicos visíveis a todos indistintamente? Nesse sentido ela seria realmente pública segundo um critério decorrente da sugestiva definição aristotélica? Tudo que é declaradamente público pode ser privatizado, quer por interesses privados econômicos, quer por interesses corporativos ou, ainda, por interesses políticos (como, por exemplo, os interesses partidários e clientelistas). É por isso que não deveríamos nos preocupar tanto em saber se uma política é formal ou nominalmente pública e sim em saber se ela é uma política democratizante. Só pode ser publicizante o que é democratizante. E isso vale também para a chamada opinião pública.

A rigor uma opinião só pode ser pública se for resultado de um processo de publicização de opiniões privadas. Esse processo de publicização é um processo de democratização, ou seja, de liberdade de proferimento e de interação de opiniões. Em uma ditadura é muito difícil falar em opinião pública a não ser quando a liberdade de proferir opiniões é exercida como um ato disruptivo, contra aquela ordem estabelecida para impedir o exercício dessa liberdade e para desvalorizá-la privatizando a esfera pública das opiniões.

A autocratização é sempre uma privatização. Em Cuba há uma privatização clara das opiniões nas mãos do autocrata: o ditador, por meio de seu partido-Estado e das instituições que lhe servem de correia de transmissão. Na Rússia de Putin e na Venezuela herdeira do chavismo estão em marcha processos de privatização das opiniões, com o objetivo de impedir que se forme uma opinião pública (e esse é o motivo da perseguição aos meios de comunicação nesses países). Em outros países da América Latina estão em curso processos de desvalorização da opinião pública em nome da opinião privada da maioria da população. Tal totalização das opiniões privadas majoritárias da população que não são proferidas no espaço público por seus atores, só pode ser feita, ex post e inorganicamente, por meio das pesquisas de opinião e das eleições.

Ora, se as opiniões privadas da imensa maioria de uma população – aquelas opiniões que são aferidas, por exemplo, por pesquisas de opinião ou pelas urnas – não indicam nenhum grau significativo de conversão à democracia, então isso coloca um enorme problema para a segunda democracia. A ponto de, em certos países, levar alguns indignados a reclamar, em termos um tanto grosseiros, que o problema é que “quem decide as eleições não é quem lê jornal, mas sim quem limpa a bunda com ele”. Antes de reprovar o chulo dístico, devemos entender a perplexidade que o motivou. Esse problema tem a ver com as relações entre o processo de formação da vontade política coletiva e o processo de composição da chamada opinião pública. Em uma democracia esses dois processos deveriam andar juntos ou, pelo menos, tender a isso.

Enfim, o que parece ser mesmo fatal para a segunda democracia é a confusão entre o processo de formação da vontade política coletiva e alguns mecanismos utilizados para captar tendências de opinião (como as pesquisas de opinião) e para escolher representantes (como as eleições). Embora guardem relações entre si, são coisas distintas. Já se disse aqui, mas não custa repetir: se a soma das opiniões privadas pudesse ser a mesma coisa que a opinião pública, não haveria necessidade do processo político. Ninguém deveria proferir opiniões na esfera pública e nem submetê-las ao debate político. Bastaria segredar no ouvido do entrevistador de um instituto de pesquisa a sua opinião. Bastaria, de tempos em tempos, depositar secretamente seu voto na urna. Mas – já havia percebido o jovem-Dewey (1888), no texto “Ética da democracia” – a democracia não é só uma mera forma organizacional de governo de Estado submetida à regra da maioria (11). Como observou Axel Honneth (1998), esse conceito instrumental de democracia reduz a idéia de formação democrática da vontade política ao princípio numérico da regra de maioria… Ora, fazer isso significa assumir o fato de a sociedade ser uma massa desorganizada de indivíduos isolados cujos fins são tão incongruentes que a intenção ou opinião adotada pela maioria deve ser descoberta aritmeticamente (12).

A segunda democracia nunca conseguiu reparar essa incompreensão do sentido de público, permitindo que a confusão entre democracia e eleições (como forma de pesquisa de opinião) conspirasse contra a essência da democracia como movimento de desconstituição de autocracia. Isso revelou outra falha “genética” da segunda democracia: a democracia representativa, ao se confundir, via de regra, com um processo meramente eleitoral, fica sem proteção eficaz contra o uso das eleições contra a democracia. Os populismos, por exemplo, se aproveitam dessa falha, usando a democracia contra a democracia.

A terceira invenção da democracia

Quando a democracia começou a ser reensaiada para valer pelos modernos, a política tornou-se palco de uma tensão permanente entre tendências de autocratização e de democratização da democracia. Nada indica que essa tensão tenha desaparecido na contemporaneidade. Ainda que este seja um esquema explicativo, pode-se escrever a história da democracia como a história de um confronto, em que, de um lado, remanesciam as atitudes míticas, sacerdotais e hierárquicas que mantinham a tradicionalidade e, de outro, surgiam atitudes utópicas, proféticas e autônomas que fundaram a modernidade.

Toda vez que a rede social é obstruída, toda vez que se introduzem centralizações na teia de conexões ou de caminhos que ligam os nodos dessa rede distribuída, gera-se uma configuração mais favorável ao crescimento e a manifestação do poder vertical que está no “DNA” da civilização patriarcal e guerreira.

A democracia, como percebeu Humberto Maturana (1993), é uma brecha nesse paradigma civilizatório (13). Mas a brecha é a rede. Toda vez que uma rede distribuída se forma surge uma brecha, introduzindo um erro no programa de controle. Portanto, independentemente de se querer chamá-la simplesmente de democracia, de democracia radical, de democracia democratizada, de holarquia ou de pluriarquia, o fundamental é que a brecha está lá.

A brecha democrática não foi aberta de uma só vez. Ela foi aberta e fechada várias vezes. E continua, nos últimos dois ou três séculos, sendo alargada e estreitada de modo intermitente. Desse ponto de vista, o que chamamos de democratização nada mais é do que o processo de alargamento dessa brecha. Mas percebe-se que há um limite estrutural ao alargamento da brecha nos marcos da segunda invenção da democracia.

É a impossibilidade de continuar democratizando a democracia dos modernos que coloca na ordem do dia a possibilidade de reinventar, pela segunda vez, a democracia. A terceira invenção da democracia nada mais é, portanto, do que a continuidade do processo de democratização nas condições da contemporaneidade.

Mas é preciso entender bem o que são as condições da contemporaneidade. Não é mais conviver em um mundo único: agora serão Highly Connected Worlds (no plural mesmo); ou seja, em termos sociais, à medida que aumentam os graus de distribuição, de conectividade e de interatividade, a ilusão do mundo único criada pelo broadcasting (pela transmissão centralizada um-muitos das estruturas hierárquicas) vai se desfazendo e miríades de mundos sociais vão surgindo, sociosferas cada vez mais tramadas por dentro e conectadas para fora, porém peculiares. Assim, não teremos um tipo ou uma forma de democracia (como fizeram os antigos em Atenas ou como pretenderam fazer os modernos: exportando-a para todo o mundo na esteira da exportação do modelo europeu de Estado-nação).

A primeira democracia foi local. A segunda democracia tentou ser global (mas mal conseguiu se realizar plenamente em três dezenas de países e nunca logrou vigorar no plano internacional – onde impera a realpolitik do equilíbrio competitivo – a despeito da promissora evidência de que países democráticos não guerreiam entre si). A terceira democracia será glocal e isso significa dizer que não será “uma” democracia, não será “a” democracia. Não teremos uma fórmula aplicável a várias circunstâncias e, portanto, não será possível exportá-la, como tentaram os modernos. Somente será possível reinventá-la em cada glocalidade. E mesmo assim será possível chamar todas essas invenções de democracia (ou de democracia radicalizada, de democracia democratizada, de democracia cooperativa, de democracia interativa, de holarquia ou de pluriarquia) a não ser enquanto – e na medida em que – estiver em curso algum movimento de democratização ou de desconstituição de autocracia como elemento essencial da constituição das formas políticas concretas que cada glocalidade inventou.

Surpreendentemente a terceira invenção da democracia é a desinvenção das formulas de democracia.

Inventando a terceira democracia

Não se trata de adivinhar como será a terceira democracia. Trata-se de inventá-la.

É claro que tal invenção se dará dentro dos horizontes de possibilidades dos novos mundos altamente conectados que estão emergindo no dealbar deste terceiro milênio.

Observando as tendências contemporâneas, alguns fenômenos, eventos, experimentos e configurações emergentes (novas formas de organização e convivência que começam a surgir em profusão por toda parte) podem estar indicando o seguinte sobre a terceira democracia:

I – Que a organização de suas instituições espelhará mais um padrão de rede (estruturas mais distribuídas do que centralizadas) do que de hierarquia (estruturas mais centralizadas do que distribuídas).

II – Que sua dinâmica será mais interativa do que participativa ou adesiva.

III – Que ela adotará procedimentos diretos mais interativistas (abertos à interação fortuita, em tempo real) do que assembleístas-participacionistas (seguindo pautas previamente estabelecidas por alguma coordenação centralizada).

IV – Que ela poderá combinar procedimentos diretos interativos com procedimentos representativos (porém transitórios, com representações revogáveis a qualquer momento).

V – Que ela se guiará mais pela lógica da abundância do que pela lógica da escassez (ou seja, utilizará cada vez menos modos de regulação de conflitos que introduzam artificialmente escassez: como a votação, a construção administrada de consenso, o rodízio e o sorteio).

VI – Que seus atores serão mais pessoas interagindo em multidões consteladas e em comunidades configuradas para a convivência do que indivíduos figurando em massas arrebanhadas ou sendo chamados periodicamente a influir na vida política como eleitores solitários.

VII – Que a formação democrática da vontade política terá mais como fonte originária a cooperação voluntária, com a convergência comunal de desejos pessoais para contender com um problema ou realizar um projeto, do que a liberdade individual de opinar protegida da interferência do Estado (segundo a visão liberal) ou do que o reino público constituído pela argumentação discursiva (segundo as visões do republicanismo político e do procedimentalismo democrático).

VIII – Que ela terá diversas “fórmulas” glocais e não mais uma única fórmula pretensamente global (ou internacional, como ocorreu com a segunda democracia).

IX – Que ela será realizada em miríades de sociosferas e não em apenas menos de duas centenas das unidades político-territoriais centralizadas (chamadas de países ou Estados-nações).

X – Que ela coexistirá marginalmente e por tempo indeterminado com as democracias realmente existentes (incluindo as democracias plenas, as democracias parasitadas por regimes manipuladores e as democracias em processo de autocratização) e também com protoditaduras florescentes e ditaduras remanescentes.

Para teorizar sobre essas tendências e experimentá-las em ensaios concretos de novos modos de convivência social, vários campos de livre-invenção – ou de cocriação – estão sendo abertos neste momento. Ora, isso já faz parte da terceira invenção da democracia.

 

CAPÍTULO 1

DEMOCRACIA DISTRIBUÍDA

Que a organização de suas instituições espelhará mais um padrão de rede (estruturas mais distribuídas do que centralizadas) do que de hierarquia (estruturas mais centralizadas do que distribuídas).

Ninguém pode entender o que é rede se não entender a diferença entre descentralização e distribuição. O melhor caminho para entender tal diferença é ler o velho artigo On distributed communications, de Paul Baran (Santa Mônica: Rand Corporation, 1964) (14). No mencionado paper sugiro espiar diretamente a figura abaixo:

Entre a monocentralização (o grau máximo de centralização, que no diagrama de Baran aparece como rede centralizada) e a distribuição máxima (todos os caminhos possíveis, correspondendo ao número máximo de conexões para um dado número de nodos – que não aparece no terceiro grafo do diagrama de Paul Baran, por razões de clareza de visualização), existem muitos graus de distribuição. É entre esses dois limites que se realiza a maioria das redes realmente existentes.

Os diagramas de Baran são autoexplicativos. Mas as consequências que podemos deles tirar não são. O primeiro corolário relevante é que a conectividade acompanha a distribuição. Inversamente, quanto mais centralizada for uma rede, menos conectividade ela possui. O segundo corolário relevante é que a interatividade acompanha a conectividade e a distributividade. Inversamente, quanto mais centralizada é uma rede, menos interatividade ela possui.

Pois bem. Ainda que o modo de regulação não seja uma consequência automática do padrão de organização e sim fruto de invenção política, pode-se afirmar que a democracia expressa um metabolismo de redes mais distribuídas do que centralizadas. Na Atenas do século 5 tal aconteceu: configurou-se uma rede de conversações na praça do mercado com significativo grau de distribuição: sem isso a democracia não poderia ter sido inventada e não teria perdurado por dois séculos (entre 509 e 322 a. E. C., conquanto que só por isso ela não surgiria, já que foi uma invenção mesmo, uma “obra de arte” como observou Humberto Maturana em 1993) (15).

No entanto, após a experiência fundante dos atenienses tivemos um interregno autocrático de praticamente dois milênios. Quando a democracia começa a ser reinventada pelos modernos, a partir de meados do século 17, o ambiente social estava configurado de forma muito diferente. A Europa vinha de séculos de guerra contínua ou intermitente e os fluxos da convivência social tinham sido obstruídos, capturados, deformados e verticalizados a tal ponto que os graus de distribuição da rede social eram baixíssimos em quase todo lugar. O movimento de desconstituição de autocracia que pode florescer teve que se conformar às estruturas fortemente centralizadas de então, sobretudo à estrutura que já era, há milênios, o principal tronco de programas verticalizadores: o Estado. A nova forma do Estado-nação, que surgiu na Europa como fruto da paz de Westfália (1648-1659), não pode escapar dessa contingência genética: era um Estado, mais uma forma de Estado que sucedia às formas pretéritas homólogas do ponto de vista do padrão de organização e dos modos de regulação (o Estado-Palácio-Templo mesopotâmico, proto-Estados e Estados erigidos por hordas de predadores e senhores e por impérios do chamado despotismo oriental, as cidades-Estado monárquicas da antiguidade, os Estados feudais antigos e modernos, os Estados reais e principescos).

Mais do que isso, porem: toda a realidade política era o Estado, a tal ponto que política era praticamente sinônimo de Estado e quando Spinoza quis falar propriamente da política, no final do seu célebre Tratado Teológico-Político (1670), ou seja quando quis afirmar que o fim (ou o sentido) da política não é a ordem, mas a liberdade (ao contrário do que pensava Hobbes), teve que falar de Estado para se fazer entender (só com o tempo surgiria uma politics relativamente independente da policy na percepção dos atores políticos) (16).

Não havia algo como uma koinonia política (como na Atenas do século 5), composta por pessoas livres (ainda que só algumas pessoas o fossem) e livres o suficiente para estabelecer relacionamentos horizontais e conversar num espaço público quando lhes desse na telha (e… para fazer politics). A política não era o metabolismo de uma comunidade e sim apenas o catabolismo e a exsudação de uma estrutura que extraía sua energia das pessoas nela inseridas como peças de uma máquina e em seguida as descartava.

A máquina que funcionava para a guerra foi (parcialmente) domesticada, por certo, quando se tentou regular seu funcionamento para proteger os “de dentro” (os arrebanhados no Estado-nação) dos seus próprios chefes (a realeza e a nobreza e, depois, os príncipes plebeus: presidentes e primeiros-ministros). A essa proteção se chamou direitos (dos “de dentro”), preservando-se entretanto a sua capacidade letal (para a guerra contra os “de fora”: os outros Estados-nações).

Parece óbvio que num ambiente assim configurado a democracia não poderia fazer muito mais do que fez. E ela fez muito, se considerarmos que, nos séculos 18, 19 e 20, aumentou consideravelmente o número de países que adotaram a democracia reinventada pelos modernos. Um de seus principais feitos, além do chamado Estado democrático de direito, foi desativar as guerras, ao menos entre os países que a adotaram. Ora, desativar guerras é desconstituir autocracia, ou seja, é fazer democracia no sentido forte do conceito, ainda que – na ausência de guerras “quentes” ou “frias” – modos de regulação autocráticos (e compatíveis padrões de organização hierárquicos) tenham remanescido na política praticada como “arte da guerra” (a política como continuação da guerra por outros meios, na formule-inverse de Clausewitz-Lenin) entre os “de dentro”.

Aqui então chegamos ao ponto. Em virtude dos condicionamentos presentes em sua origem, a democracia reinventada pelos modernos baseou-se em instituições com estrutura mais centralizada do que distribuída. O Estado, mesmo a nova forma Estado-nação mitigada por todos as normas e procedimentos que a habilitam a ser reconhecida como Estado democrático de direito, continuou sendo uma pirâmide, um tipo de estrutura que não se pode regular a não ser com o auxílio de modelos de gestão baseados em comando-e-controle. Mas como o novo modo de regulação (a democracia) deveria se exercer na “comunidade política” válida na época (o Estado-nação), ela virou um modo de administração política dessa nova forma de Estado emergente (em grande parte, remanescente e persistente).

Poder-se-ia retrucar que com os gregos deu-se a mesma coisa. Após a primeira invenção da democracia, a cidade-Estado de Atenas continuou sendo um Estado e se comportando autocraticamente em relação aos outros Estados ao travar guerras contra eles, mas a diferença está no fato de que – como percebeu Hannah Arendt (c. 1950) (17) – os gregos sabiam que se comportavam de forma apolítica (ou não-democrática) quando guerreavam e, talvez por saberem disso, estabeleciam uma separação mais ou menos clara entre – para evocar dois conceitos de Platão em As Leis – o governo para dentro (a “arte do tecelão”) e a conquista de hegemonia para fora (a “ciência do estrategista”). A comunidade política ateniense (uma comunidade concreta) podia zelar por tal distinção de modo mais efetivo do que as instituições inauguradas pela democracia dos modernos.

O governo na democracia dos modernos adotou, em relação aos próprios cidadãos, uma postura autocrática, quer dizer, não se armou apenas para se proteger dos “de fora”, mas também contra os “de dentro” (não raro em nome da ordem e da paz social). Porque não havia e não podia haver, na grande “comunidade política” do século 17, uma regulação efetiva do poder para dentro capaz de alterar a forma vertical como ele se exercia. A grande comunidade política dos modernos era uma comunidade abstrata, um arrebanhamento – não raro artificial, quer dizer, demarcado manu militari e não socialmente configurado – de diversas comunidades concretas, clusters sem muitos atalhos entre si e, portanto, com baixos graus de interatividade. A relação política do Estado com a nação passou a ser feita com os (ou através dos) indivíduos (eleitores) e essa atomização do ator político social retirou parte da sua capacidade de interferir a qualquer tempo na vida do ator político institucional (que, por sua vez, exacerbou o seu papel de “estrategista” em detrimento do seu papel de “tecelão”).

Há diferenças, portanto. A democracia inventada pela primeira vez pelos atenienses surgiu, de certo modo, contra a privatização dos assuntos comuns pelo autocrata; isto é, surgiu contra o Estado (a cidade-Estado monárquica de então); embora fosse obrigada a conviver com ele, alterou radicalmente a estrutura e o funcionamento de suas instituições (a partir da reformas de Clístenes e Efialtes). A democracia reinventada pelos modernos surgiu para mitigar o poder do Estado para dentro (protegendo os cidadãos do seu Leviatã: o Estado-nação) mas não questionou fundamentalmente a estrutura e a dinâmica das instituições que exerciam esse poder. Eis o ponto!

Em consequência, as instituições da democracia dos modernos foram estruturadas hierarquicamente e continuaram apresentando padrões de organização bem semelhantes às instituições pré-democráticas (e não-democráticas). Para citar os exemplos mais óbvios: os tribunais continuaram muito parecidos com o que eram antes (e prosseguiram sendo chamados de “cortes” até hoje), os exércitos sobreviveram intocáveis e os órgãos executivos de governo também (escapando da reprodução quase que apenas os parlamentos).

Novas experiências de democracia deverão se exercer em ambientes mais distribuídos do que centralizados. Acompanhando a transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede, as instituições de uma nova política também deverão ser cada vez mais em rede. Ou seja, mais democratização do modo de regulação (o que se chama hodiernamente de radicalização ou democratização da democracia) deve significar mais distribuição do padrão de organização. Não porque o modo de regulação seja função (ou dependa) do padrão de organização (no sentido de ser por este último determinado), mas porque modos de regulação não compatíveis com padrões de organização não podem perdurar. É como uma relação entre software e hardware: programas de rede não podem rodar bem em hierarquias: mais cedo do que mais tarde a máquina acaba travando.

Não se pode saber como serão as instituições de uma terceira invenção da democracia. Como serão múltiplas as experimentações na transição – muitos modelos emergentes de democracia – surgirão também miríades de instituições diferentes. Transição não é substituição. Não há um formato novo para colocar no lugar do velho. Não se trata de substituição de um modelo de gestão por outro, de um modo político de administração do Estado ou de regime político por outro. Trata-se de um processo de… democratização!

O que se pode afirmar é que a democratização dos modos de regulação será acompanhada da distribuição dos padrões de organização (de qualquer estrutura ou instituição, seja ela qual for). E que, portanto, a organização das instituições da terceira democracia espelhará mais um padrão de rede (estruturas mais distribuídas do que centralizadas) do que de hierarquia (estruturas mais centralizadas do que distribuídas).

É meio inútil – e até certo ponto prejudicial, na medida em que a previsão de caminhos reduz a imaginação de caminhos – encontrar exemplos viáveis ou factíveis de instituições mais distribuídas do que centralizadas acordes a modos de regulação mais democratizados. Mas bastaria examinar algumas tendências emergentes nas diversas propostas que têm surgido de democracia digital por meio de mídias sociais (transitivas e em tempo real) que se deslocam de dinâmicas adesivas e participativas para dinâmicas mais interativas, como veremos nos próximos capítulos.

 

CAPÍTULO 2

DEMOCRACIA INTERATIVA

Que sua dinâmica será mais interativa do que participativa ou adesiva.

Interação é um gradiente: adesão-participação-interação. Na verdade, tudo é interação, mas quando predominam a adesão ou a participação a livre-interação diminui. Tanto a adesão quanto a participação impõem restrições à interação (obstruindo, condicionando, direcionando ou capturando fluxos). Redes sociais acontecem quando as pessoas interagem, mas quanto mais distribuídas forem as redes mais livre-interação haverá (18).

Autocracias apresentam pouca interatividade em razão dos altos graus de centralização de suas instituições (e procedimentos, entendidos como metabolismos acordes à estrutura ou ao corpo dessas instituições). Democracias são sempre mais interativas pela razão inversa (suas instituições e procedimentos são mais distribuídos). Mas mesmo nas democracias a interatividade varia. A democracia dos atenienses era mais participativa do que a dos modernos. O sistema representativo funciona por adesão, não raro compulsória (por exemplo, quando o voto passa de direito à dever).

Não houve nada como uma evolução na passagem da democracia dos antigos para a democracia dos modernos. Aliás, não houve nem uma passagem. A democracia foi simplesmente reinventada em outro mundo. Reapareceu, sob outra forma, dois milênios depois.

Sim, foram mundos diferentes (em termos sociais). A experiência da democracia grega, ensaiada entre 509 e 322 a. E. C., foi um mundo que se abriu e fechou e só a análise posterior pode encontrar um liame entre aquela experiência e a da sua reinvenção pelos modernos, dois mil anos depois. Não houve continuidade, não houve qualquer evolução; pelo contrário, o que tivemos depois do ensaio fundante da democracia foi retrocesso. Por dois mil anos foi – para todos os efeitos – como se aquele mundo que atingiu seu apogeu no chamado “século de Péricles” não tivesse existido. No entanto… após milênios, eis que surge um modo de regulação de conflitos baseado no mesmo fundamento básico: a liberdade de opinião. Só podemos chamar as duas invenções com o mesmo nome (democracia) porque foram ambas movimentos de desconstituição de autocracia (não importa se representada pelo filho restante de Psístrato ou por Carlos I).

Da mesma forma, não haverá propriamente uma passagem (que expresse continuidade) entre a segunda democracia e a terceira. A terceira invenção da democracia não será um aperfeiçoamento da democracia dos modernos. Antes de qualquer coisa porque ela só existirá se for inventada (não há qualquer imanência histórica nos levando à ela). Mas se não quisermos viver um longo interregno autocrático (que se imporá com a falência da segunda democracia) é melhor reinventá-la dentro do ambiente de relativa liberdade por ela oferecido. Em democracias em processo de autocratização, protoditaduras e ditaduras, será muito mais difícil reunir as condições favoráveis à uma nova reinvenção da democracia (inclusive porque a experimentação de novas formas de democracia será proibida ou restringida nesses regimes).

O ambiente social da sociedade-em-rede é favorável à uma nova invenção da democracia. Mas isso não significa que ela ocorrerá de qualquer modo, por força dos graus maiores de distribuição das redes que estão se configurando. Significa apenas que ela pode ocorrer: se for experimentada!

Novas experiências de democracia, nas circunstâncias de uma sociedade em rede, poderão ser mais interativas do que as experiências anteriores. Por isso se diz que a dinâmica de uma terceira invenção da democracia será mais interativa do que participativa ou adesiva.

Quanto mais livre for a interação, mais fortuita ela será e menos baseada em coletivos conformados antes da interação ela será (ou seja, com base na exigência de pertencimento a um cluster configurado por razões extra-políticas, que tenha poderes regulatórios aumentativos em relação aos demais; por exemplo, com direitos exclusivos ou mais direitos de decidir do que os que não pertencem ao coletivo). Portanto, uma democracia interativa não poderá ser assembleísta. De uma democracia interativa não poderão participar apenas os que se tornarem partícipes de uma estrutura já erigida e que aceitarem se submeter a um modo de funcionamento pré-estabelecido (ou estabelecido antes da interação).

A terceira invenção da democracia não pode ser uma volta ao caráter participativo da primeira invenção da democracia. Não podemos – e não devemos, se não quisermos retrogradar em termos de interatividade – reeditar as instituições da velha Grécia do século 5, simulando a Ecclesia (assembléia) ateniense, muito menos a Boulé (uma espécie de conselho que pautava a assembléia) ou o sistema de Prutaneis (comissões de administradores ou executivos de governo). Várias propostas de democracia que têm surgido nos últimos vinte anos tentam fazer isso ao mostrar que podemos voltar a uma democracia tão direta quanto a dos gregos com o auxílio das ferramentas digitais que, agora afinal, viabilizariam a participação geral (antes impedida pela falta de instrumentos eficazes para reunir grandes contingentes de pessoas – o que é, note-se, uma falsa razão). A questão não é o número de pessoas a reunir: a questão é que não precisamos re-unir o que já está conectado: como escreveu Frank Herbert (1969) em O Messias de Duna, “não reunir é a derradeira ordenação” (19). Pois não se trata de voltar ao participacionismo (ou nele estacionar, como se fosse a maior maravilha do mundo) e sim de caminhar para o interativismo.

As experiências ocorridas na segunda metade do século 20, consideradas de radicalização ou democratização da democracia, foram mais participativas do que interativas. Foram – quase todas – experiências assembleístas, baseadas em estruturas e procedimentos mais descentralizados do que distribuídos (e, portanto, hierárquicas). Alguém (os bouleutas modernos) fazia previamente (quer dizer, antes da interação) a pauta das assembléias. Alguém (os oradores conhecidos como “os políticos”, os hoi politeuomenoi modernos) monopolizava a palavra nas reuniões. Formavam-se, em todas elas, oligarquias participativas compostas pelos profissionais de reunião, muitas vezes por “pescadores de aquário” (“fishers in the barrel“): militantes cuja função era recrutar nas assembléias populares novos membros para suas organizações hierárquicas. Os procedimentos adotados nesses ensaios de democracia participativa geravam artificialmente escassez – e, com isso, verticalizavam o campo social limitando o processo de democratização – como veremos no próximo capítulo.

 

CAPÍTULO 3

DEMOCRACIA DIRETA

Que ela adotará procedimentos diretos mais interativistas (abertos à interação fortuita, em tempo real) do que assembleístas-participacionistas (seguindo pautas previamente estabelecidas por alguma coordenação centralizada).

Os defensores da democracia representativa argumentaram ad nauseam nos últimos séculos sobre a impossibilidade da democracia direta nas sociedades modernas. Sua justificativa era baseada na impossibilidade de reunir presencialmente as pessoas em sociedades muito populosas para compor uma instância deliberativa direta (numa espécie de assembléia, como aquela dos antigos gregos). Dever-se-ia, portanto, eleger representantes (em número factível) para poder caber em uma assembléia presencial. É claro que apareceram também outras justificativas mais sofisticadas, avançando para fora do âmbito da democracia (por exemplo, aquelas baseadas em alguma teoria das elites, de necessária especialização para tratar de assuntos complexos como a administração do Estado – todas, porém, meritocráticas, de fundo platônico e, portanto, anti-democrático).

Mas a justificativa principal mesmo, da qual se vem lançando mão há pelo menos dois séculos, é de natureza técnica, não política; em uma expressão: não cabe! Todavia, como já foi dito na Apresentação deste livro, o problema não está no número de pessoas: as poleis gregas também não eram tão pequenas assim. Segundo Finley (1981), “ao eclodir a Guerra do Peloponeso, em 431, a população ateniense, então no seu auge, era da ordem de 250 mil a 275 mil habitantes, incluindo-se livres e escravos, homens, mulheres e crianças… Corinto talvez tenha atingido 90 mil; Tebas, Argos, Corcira (Corfu) e Acraga, na Sicília, 40 mil a 60 mil cada uma, seguindo-se de perto o resto, em escala decrescente…” (20) – ou seja, o tamanho dos nossos atuais municípios. O problema está nas características da clusterização havida, que têm a ver com a unidade política escolhida: o Estado-nação, que aglomerou vários clusters de modo apolítico, em geral em razão de guerras que demarcaram fronteiras artificiais (no sentido de não resultantes de processos sociais). Em consequência, não haviam atalhos e meios de comunicação suficientes e adequados para permitir a interação em tempo real ou sem distância entre esses vários clusters (de parentesco, vizinhança, trabalho, lazer, aprendizagem, prática, projeto etc.). Parece óbvio que essas condições precárias de conectividade e interatividade impediam procedimentos diretos de regulação como os adotados pelos antigos gregos.

A primeira democracia era um projeto local, comunitário. A segunda democracia foi um projeto nacional (quer dizer, estatal, posto que é o Estado que representa a nação e fala por ela: ele é o sujeito político válido, em grande medida porque invalidou todos os demais). Ora, como o Estado era autocrático, tudo continuaria como antes se ele fosse representado apenas pelo príncipe ou pela aristocracia. Então foi preciso eleger a nova aristocracia (política) a partir do povo. Mas quem é o povo (um conceito, ademais, muito problemático do ponto de vista da democracia, já que a palavra populus, no contexto europeu onde foi inventada a segunda democracia, designava originalmente “contingente de tropas”)? Ora, o povo é a soma dos indivíduos que compõem a população do país, ou melhor, a parte desses indivíduos que, segundo critérios que foram sendo modificados ao longo do tempo, poderia ter o direito de escolha pelo voto (inicialmente e por muito tempo – tal como em Atenas – excluía-se desse contingente os estrangeiros e as mulheres e os escravos; e depois, no lugar dos antigos escravos, os que não tinham posses suficientes).

Quando o povo arrebanhado no Estado-nação deixou de ser as comunidades ou os clusters convivenciais emergentes da interação social e passou a ser a soma dos (de alguns dos) indivíduos, a única maneira de regular politicamente a sua soberania para se governar (já que democracia é o governo do povo) foi lançar mão de meios indiretos: através de seus representantes. O resultado foi que o indivíduo ficou indefeso diante do Estado e então foi necessário instituir um conjunto de proteções destinadas a salvaguardar seus direitos contra seu próprio Estado. É assim que o instituído virou constituído e surgiram as constituições e o chamado Estado democrático de direito na democracia indireta, representativa, dos modernos.

Mas indivíduos isolados, chamados periodicamente a opinar, tiveram alguma dificuldade de constituir um sentido público (por várias razões, dentre as quais a mais óbvia é que a opinião pública não é a soma das opiniões privadas da maioria da população). Encarar o indivíduo como átomo do processo democrático, como o player em primeira instância do jogo democrático, é problemático porquanto o indivíduo é uma abstração: os seres humanos concretos são pessoas, quer dizer, são entroncamentos de fluxos, emaranhados de relacionamentos. E somente nesses relacionamentos pode ser construído o commons (que consubstancia a esfera pública). Como não pode existir democracia sem esfera pública (são realidades coetâneas e emergiram coevamente), o player da democracia é sempre molecular, não atômico.

Com tudo isso, agora já se sabe que a justificativa (técnica) dos defensores da democracia representativa para a impossibilidade de uma democracia direta não se aplica mais às sociedades contemporâneas, nas quais estão disponíveis meios (técnicos) de interação em tempo real ou sem distância. Se não se pode fazer uma assembléia presencial de milhões, porque não cabe nem no maior estádio de futebol do mundo, isso não importa mais: pode-se fazer tal assembléia virtualmente.

Entretanto, novamente, a questão não é a tecnologia (a mídia), nem a tecnologia social (assembléia). A questão é o padrão de interação.

Uma terceira invenção da democracia, se não quiser ser uma reforma da segunda ou uma tentativa de volta à primeira (com mais tecnologia), não poderá adotar procedimentos assembleístas-participacionistas. Ela poderá sim, adotar procedimentos diretos, porém mais interavistas do que participacionistas, ou seja, abertos à interação fortuita em tempo real. Não há uma relação necessária entre procedimentos diretos e participação em assembléias: nem em termos presenciais, nem em termos virtuais. Procedimento direto é, simplesmente, o que não é indireto, aquele em que não há delegação de “poder” a outrem (o que é sempre uma denegação do próprio “poder”). Qualquer pessoa pode opinar em tempo real sobre os assuntos que lhe dizem respeito ou dizem respeito às comunidades às quais está conectada: quando não for possível presencialmente, então virtualmente, mas sem que se conforme uma instância válida antes da interação (que invalide as demais instâncias formadas na interação). Opina ou não opina se quiser (o que refuga qualquer obrigatoriedade). Opina quando lhe aprouver (o que dispensa os calendários político-jurídicos fechados, estabelecidos antes da interação pelos bouletas modernos). E opina de onde puder (o que dinamita a exigência de base territorial fixa).

Como um sistema assim poderá admitir governança? Não sabemos, sobretudo porque não haverá um sistema assim que exija governança entendida como governabilidade estatal (diga-se o que se quiser dizer, a governabilidade é sempre uma remanescência autocrática nas democracias). Enquanto as novas experiências da terceira democracia se realizarem no âmbito de Estados-nações elas não poderão ter a pretensão de servir como modo político substituto para a administração do Estado ou para o regime de governo (do Estado).

O governo na polis ateniense era a Ecclesia. Não que houvesse um governo exterior à assembléia, um governo que usasse a assembléia. Não: ele, o governo (kibernesis) era um atributo da assembléia, os fluxos interativos – embora de média intensidade – que a percorriam, o seu “humor” variável, as tendências que a conversação apontava e as decisões que reverberavam (ou não), cujas consequências retroagiam gerando não raro novas decisões, inclusive opostas às anteriores, o comportamento adaptativo que era obrigada a desempenhar nessas circunstâncias fluidas, um pouco semelhante mesmo ao metabolismo de um organismo. A assembléia detinha todos os poderes de governação: relativos à legislação, às questões judiciais e executivas, inclusive no que tange à política externa. Podia destituir magistrados e fiscalizar todos os cargos que nomeasse. E tudo isso não era feito por pouca gente: estima-se que, no século 5, 43 mil pessoas participavam da Ecclesia que, em alguns períodos, chegou a se reunir semanalmente.

O governo no Estado-nação europeu moderno, após a segunda invenção da democracia, já não era nada disso e sim uma delegação, uma espécie de Boulé estável com muito mais autonomia em relação aos seus constituintes, que não existiam mais como organização social, como instância concreta e sim apenas como derivação –  e totalização aritmética – das opiniões dos cidadãos e que não podia, portanto, captar o fluxo da convivência social, quer dizer, a rede = o que estava entre-eles. A democracia dos modernos perdeu substância social em comparação com a dos antigos.

Entraram em cena então os representantes, que se comportavam, para todos os efeitos práticos, como uma espécie de aristocracia política. Em alguns casos, quando não cabia a tais representantes (legislativos) eleger os chefes (executivos) do Estado ou do governo – quando estes passaram a receber a delegação diretamente dos indivíduos (eleitores) – a figura do príncipe (não dinástico, com mandato temporário e submetido às leis) foi re-entronizada. O que trouxe um sem-número de novos problemas.

De qualquer modo, já havia problemas semelhantes com a assembléia dos gregos. O primeiro deles é que a Ecclesia era vulnerável ao discurso inverídico. Um orador jactante, por exemplo, podia levá-la a tomar medidas inconsistentes com as possibilidades reais de ação da polis. Ademais, os próprios oradores – os hoi politeuomenoi – eram um problema quando se perpetuavam, adquirindo a condição de políticos profissionais. A retórica, neste caso, para além da lógica discursiva e de qualquer razão comunicativa, influenciava decisivamente a formação da vontade política coletiva: os que possuíam o “dom” (como se acreditava e, em parte, ainda se acredita) ou os que estavam mais treinados na arte de conduzir assembléias, acabavam tendo um papel desproporcional em relação aos demais. Foi em parte por isso, pode-se presumir, que Péricles conseguiu manter seu protagonismo por tanto tempo. Tudo isso, porém, não pode ser explicado adequadamente pela vontade deliberada de alguns agentes de praticar a demagogia ou de conduzir a assembléia. Pois nada disso poderia acontecer se… não houvesse a assembléia e os seus procedimentos participativos dirigistas. Como se sabe, a pauta da Ecclesia era feita pela Boulé (um conselho menor, mais facilmente controlável, que acabava tendo grande influência nos resultados da assembléia).

O processo era bem parecido com o das assembléias ensaiadas hodiernamente sob o nome de democracia participativa, no qual direções de instituições centralizadas elaboram a ordem do dia dos debates que ocorrerão, estabelecem as regras desse debate, concedem e cassam a palavra, abrem e fecham os trabalhos e privilegiam os participantes alinhados à sua orientação política. Tais procedimentos manipuladores acabam se transformando em estratégias de conquista de hegemonia, de “ganhar” a assembléia, de impedir que outros participantes alinhados a orientações políticas concorrentes adquiram notoriedade ou sejam escolhidos para as direções. Toda assembléia é manipulável porque a participação reflete graus baixos de interação: na participação a interação não é livre o suficiente para evitar o controle de uma oligarquia (ainda que seja uma oligarquia participativa e, no caso, trata-se disso mesmo). Como na Wikipedia, quem participa mais, tem mais chances de conduzir (porque tem poderes ou privilégios regulatórios aumentativos em relação aos demais).

A terceira democracia pode ser mais direta sem ser assembleísta. Basta que os sistemas admitam a interação fortuita, ou seja, que não conformem colégios decisórios válidos antes da interação; ou melhor: basta que o colégio válido seja composto por todos aqueles que se conectam e interagem e sejam validados pela interação. Ferramentas virtuais com funcionalidades semelhantes às do BetterMeans podem ser desenvolvidas. Não há uma fórmula, porém. Até porque a terceira democracia não é um modelo de democracia, como já foi mencionado e ainda veremos mais adiante e sim miríades de experimentações.

Em uma democracia interativa mais direta, nada impede, entretanto, que se combinem procedimentos diretos e procedimentos indiretos, não sendo necessário que a instância que delega (em alguns casos o colégio eleitoral) seja conformado previamente com base em critérios extra-políticos (como, por exemplo, as bases territoriais ou setoriais fixas), como veremos no próximo capítulo.

 

CAPÍTULO 4

DEMOCRACIA COM REVOCABILIDADE

Que ela poderá combinar procedimentos diretos interativos com procedimentos representativos (porém transitórios, com representações revogáveis a qualquer momento).

A questão é saber o peso da renúncia ou até que ponto a alienação do próprio “poder” – nos processos indiretos de democracia – predominará em relação ao exercício direto desse “poder”.

Antes de qualquer coisa é bom assinalar que a palavra poder (empregada entre aspas acima) pode levar a graves equívocos. Do ponto de vista social – que caracteriza a presente abordagem (como foi assinalado na Apresentação deste livro) – poder é uma relação, não uma coisa que se possa possuir e transferir. Neste sentido só há poder na medida em que há centralização e todo poder é uma medida de não-rede (distribuída). Uma relação de poder (stricto sensu) se realiza quando há obstrução (seleção ou filtragem, direcionamento ou captura) de fluxos (o que corresponde à eliminação de conexões ou caminhos), separação (ou desatalhamento) de clusters ou exclusão (desconectação) de nodos. Isso só pode ser feito em função da centralização da rede.

A questão da chamada “alienação do poder” foi um problema maior para a democracia dos modernos do que para a democracia dos antigos. Como a fórmula dos modernos baseou-se no indivíduo, ao não exercer diretamente seu “poder” o indivíduo alienava esse “poder” a terceiros: os representantes. Para os antigos, o problema era menor porque a fonte originária do governo confundia-se de certo modo com o próprio governo: era a assembleia formada pela participação das pessoas livres. O lugar do governo propriamente dito era a assembleia (de todos) e não um colégio de (alguns) representantes ou uma instância formada por delegação pelo representante eleito (no caso da eleição direta de chefes executivos de governo ou de Estado). Em certa medida, como vimos, na primeira democracia havia também delegação (ou alguma forma de representação); por exemplo, para a formação da Boulé (o conselho que pautava a assembleia), ou para a designação dos prítanes (os administradores ou executivos, ainda que os presidentes das Pritanias fossem escolhidos por sorteio e apenas formalmente nomeados pelo Epistata).

Em redes distribuídas (mais distribuídas do que centralizadas) as pessoas em geral assumem funções sem necessidade de delegação ou representação. A questão é que nem todo processo direto é participativo. Por exemplo, se um ator assume determinada função com o assentimento (ou o não questionamento) dos demais membros da comunidade política, isso também é um processo direto. Na assumpção as pessoas se oferecem voluntariamente para desempenhar determinadas funções contando com o assentimento dos demais sem a necessidade de uma designação expressa (enquanto não houver questionamento). Não se poderia qualificar a assumpção como um processo indireto (de vez que a pessoa assume diretamente a função que pretende e, portanto, não delega nada a ninguém), a menos se considerássemos que os que não assumem a função, ao assentirem que ela seja exercida por outrem, estariam conferindo uma espécie de delegação implícita ou representação passiva; mas este é um sentido fraco dos conceitos de delegação e representação.

Em geral a assumpção reflete um processo emergente da rede, ainda quando apareça como desejo de um indivíduo de assumir uma função. Tal se dá, por exemplo, com o novo papel social – próprio de redes distribuídas – do “guardião do kernel” (quando alguém assume a função de zelar pela integridade do coração de um sistema operacional, sem indicação de ninguém). Mas existem outros processos emergentes de indicação informal de alguém para desempenhar determinado papel. Um caso bem conhecido é quando o nome de uma pessoa surge como candidato “natural” para realizar alguma atividade e há prontamente a concordância de todos, sem a necessidade de administrar a construção do consenso. Processos emergentes em redes mais distribuídas do que centralizadas são mais interativos do que participativos.

Por outro lado, não há – do ponto de vista do sentido forte da democracia (como desconstituição de autocracia) – nada de errado com processos indiretos eventuais. A questão é saber se o kernel do modo de regulação será predominantemente baseado em (ou constituído por) procedimentos indiretos (como fizeram os modernos). Não há, nem mesmo, nenhum problema com a representação (desde que ela não predomine no conjunto de procedimentos; ou, é claro, não se torne o único procedimento válido).

Em uma democracia interativa mais direta, nada impede que se combinem procedimentos diretos e procedimentos indiretos, não sendo necessário que o sujeito (o emaranhado que compõe a comunidade política configurada pela interação, não o indivíduo) que delega (ou se faz representar) seja conformado previamente com base em critérios extra-políticos (como, por exemplo, as bases territoriais ou setoriais fixas). A base é sempre a comunidade política que interage, não importa se radicada em um mesmo território ou demarcada a partir das atividades semelhantes de seus membros. Pessoas que habitam um mesmo território não constituem necessariamente comunidades políticas. Moradores de uma localidade e trabalhadores de um mesmo ramo ou categoria profissional são redes tão abstratas quanto o conjunto de pensionistas da previdência social. Este é um dos principais problemas da democracia dos modernos: o Estado-nação é uma rede abstrata que, como tal, não pode conformar uma comunidade política concreta. Redes sociais concretas acontecem quando (ou enquanto) as pessoas interagem. O que faz a rede é a interação e não o pertencimento a alguma classe (no sentido matemático do termo, equivalente, no caso, ao de coleção) definida antes ou independentemente da interação.

Uma democracia interativa privilegiará procedimentos diretos em relação aos indiretos simplesmente porque a interação é direta. Uma democracia mais interativa do que delegativa ou representativa, portanto, diminuirá o peso dos processos de designação (nomeação) e de representação (eleição). O que não significa que não possa haver também algum processo indireto.

Para uma terceira invenção da democracia, o que realmente importa é que, além de transitórias, todas as funções sejam revogáveis a qualquer momento pela comunidade política, tanto as funções assumidas em processos emergentes (ainda que apareçam como ato de vontade de sujeitos individuais), quanto as funções delegadas por designação (nomeação) ou constituídas por representação (eleição). E que isso não seja feito, predominantemente, por processos que gerem artificialmente escassez, como veremos no próximo capítulo.

 

CAPÍTULO 5

DEMOCRACIA COM LÓGICA DA ABUNDÂNCIA

Que ela se guiará mais pela lógica da abundância do que pela lógica da escassez (ou seja, utilizará cada vez menos modos de regulação de conflitos que introduzam artificialmente escassez: como a votação, a construção administrada de consenso, o rodízio e o sorteio).

Redes (mais distribuídas do que centralizadas) podem ser definidas como múltiplos caminhos. Em geral ambientes sociais são caracterizados por abundância de caminhos (e, consequentemente, de opções) a menos quando há obstrução ou eliminação de caminhos (conexões) introduzidas de modo artificial. De modo artificial, sim, porque a obstrução (ou a eliminação) não emerge da dinâmica própria da rede (distribuída): ela é operada top down por alguma hierarquia que deforma (verticaliza) o campo social. Essa é, aliás, a forma pela qual a hierarquia se reproduz, transformando tudo que toca em ambiente hierárquico ou centralizando a rede. Se não produzimos artificialmente escassez quando nos pomos a regular qualquer conflito, “produzimos” rede (distribuída); do contrário, “produzimos” hierarquia (centralização).

Todo processo delegativo ou participativo gera artificialmente escassez. A designação (nomeação), assim como a votação, a construção administrada de consenso, o rodízio e até mesmo o sorteio, não são procedimentos adequados a ambientes onde há abundância de caminhos. Ou melhor, quando aplicados, tais procedimentos reduzem o número de caminhos e são, portanto, geradores de escassez.

Quanto mais distribuída for uma rede, mais a regulação que nela se estabelece pode ser pluriárquica. Maiorias que não aderem a uma proposta não poderão evitar a sua realização (ao contrário do que prevê a forma de verificação da formação da vontade política coletiva por meio de processos aritméticos de contagem de votos, que obriga a coletividade a escolher entre uma coisa e outra, entre uma proposta e outra, entre um representante e outro, entre um delegado e outro).

Na pluriarquia (que é apenas um nome para a democracia democratizada em redes distribuídas), o que está em jogo é a funcionalidade do organismo coletivo e não o poder de mandar nos outros (a capacidade de exigir obediência ou de comandar e controlar os semelhantes) a partir da regulação majoritária da inimizade política. Assim, se uma pessoa propõe alguma coisa, aderirão a essa proposta os que concordarem com ela. Os que não concordarem não devem aderir e podem sempre propor outra coisa; os que concordarem com a nova proposta aderirão a ela e assim por diante.

Tanto os antigos quanto os modernos democratas adotaram modos de regulação de conflitos geradores de escassez. Mas os que questionam a democracia representativa porque querem que ela seja mais participativa, podem introduzir ainda mais escassez do que os adeptos do liberalismo político.

O participacionismo dos contemporâneos é tão vulnerável à manipulação quanto o representacionismo dos modernos e o assembleísmo dos antigos. Quando tudo termina no voto, é tão fácil manipular assembléias quanto manipular eleições para obter decisões favoráveis a uma instância centralizada (e não há como evitar o empobrecimento político pela redução da abundância de caminhos e opções). O que há de comum a todos esses procedimentos é a regulação majoritária da inimizade política. Ou seja, a votação para tomada de decisões e a capacidade de maiorias verificadas aritmeticamente de impedir a realização de propostas minoritárias (ou invalidá-las) – o que é um absurdo.

Na participação em assembléia, por certo, pode haver mais discussão ou debate, mas nem todo debate é democratizante, nem sempre ele é capaz de facilitar a consumação do commons ou a constituição de um sentido público. Quando o debate vira uma guerra entre lados, tendências ou facções, por exemplo, dificilmente o seu resultado contemplará a diversidade dos desejos, dos projetos, das ênfases dos atores políticos arrebanhados (na assembleia). Além disso, o debate, em geral, não é criativo: convoca das pessoas o passado, não o futuro. Então aparece sempre alguém levantando a mão (como já acontecia na Ecclesia) para dizer que concorda ou discorda de alguma opinião proferida por outro (com base em suas convicções pretéritas), mas não para polinizar a ideia do outro ensejando a construção de novas propostas.

Todavia, nem mesmo os demais procedimentos introduzidos já pelos antigos (como o rodízio e o sorteio) ou acrescentados pelos contemporâneos (como a construção administrada de consenso) conseguiram evitar a produção artificial de escassez. O centro da questão é que, em todos eles, obriga-se sempre alguns (via de regra, as minorias) a aceitar o resultado de um processo cujas regras já foram determinadas antes da interação (e são melhor usadas por alguns, a seu favor).

Ademais, em alguns desses procedimentos – como a busca do consenso – exige-se a condução centralizada: há sempre uma oligarquia que administra a construção do consenso, impondo a todos uma metodologia, um conjunto de passos obrigatórios para se alcançar determinado resultado esperado. E o consenso administrado – a não ser quando haja espontânea unanimidade (o que dispensa administração) – é sempre um consenso majoritário (quem não concorda com o consenso produzido deve acatar o resultado obtido pela… maioria!). Ao fim e ao cabo, mesmo quando todos pareçam dedicados à construção do consenso, o ethos é competitivo. Compete-se, quando menos, pela maior habilidade de extrair o consenso, pela capacidade de melhor expressar os desejos da maioria, pelo domínio de uma técnica mais aperfeiçoada de prorrogar determinada liderança (como ocorreu com Péricles, como ocorreu com Lula). Grande parte das pessoas ainda pensa que a isso se reduz o fazer político (politics).

Os modernos resolveram achar que a competição – em si – é uma boa coisa: em parte com razão, pois em autocracias não há competição, prevalecendo a vontade do soberano (ou da oligarquia) e a democracia é mesmo um movimento de desconstituição de autocracia; mas em parte não, pois os modernos se deixaram seduzir pela competição do mercado como modo de autorregulação de um sistema complexo, operando um deslizamento indevido de procedimentos adotados em âmbitos de diferente natureza e confundindo racionalidades distintas. Como os liberais não acreditavam que pudesse existir qualquer coisa como uma sociedade (a rede social) – a qual seria, para eles, no máximo, um epifenômeno – e sim apenas conjuntos de indivíduos, então, pensaram: por que não aplicar também à política um modo de regulação que funciona tão bem quando se trata de coordenar (sem autoritarismo) o entrechoque de uma multiplicidade de interesses de agentes (ofertantes e demandantes) privados de produtos e serviços?

É claro que não é a mesma coisa. O funcionamento do mercado a partir da interação de agentes privados (e existe de fato autorregulação mercantil, a ponto de causar terrível incômodo nos estatistas) não pretende constituir um sentido público, nem quer estabelecer resultados gerais para os que entram (ou não entram) no jogo. Uma sociedade não é uma economia (e, como já se disse, é a economia que tem que ser de mercado, não a sociedade).

O rodízio (para a ocupação de cargos ou para delegação de representações) e o sorteio (para os mesmos fins ou para tomada de decisões sobre a implementação de qualquer proposta) são melhores do que a votação e o consenso pois não admitem manipulação (a não ser em caso de fraude) ou condução por uma instância centralizada (ou oligarquia). De todos os procedimentos introduzidos pelos antigos e pelos modernos, o sorteio é o que melhor respeita a natureza da comunidade política democrática (isológica, isegórica e isonômica). Se o player (molecular) é a própria comunidade política, então é irrelevante (e, a rigor, antidemocrático) decidir quem é o melhor: todos os membros da comunidade política têm, em princípio, o mesmo valor; ou – como iguais que são, como seres igualmente capazes de conceber e proferir uma opinião (doxa) e não de deter ou saber aplicar um conhecimento específico (techné ou episteme) – devem ser (todos) igualmente valorizados (em princípio) para qualquer função coletiva.

De qualquer modo, ambos (rodízio e sorteio) introduzem escassez onde não seria necessário. Quando se remove um sujeito político de determinado lugar ou função para obedecer a regra do rodízio obrigatório ou quando se pretere alguém que queria ocupar um lugar ou desempenhar uma função porque não foi sorteado, estamos reduzindo a abundância. Mais atores no jogo significa mais possibilidades de realização de novas realidades políticas.

Em todo caso, o procedimento padrão na democracia realmente existente é o votação: a imposição da vontade da maioria às minorias (a tal ponto que a democracia acabou sendo definida como o regime da maioria quando deveria ser o regime das múltiplas minorias). E a votação estabelece como estado natural a concorrência quando a competição pelo voto (e pela formação da maioria) acaba se tornando o centro do fazer político (inclusive nos modelos de democracia participativa propostos pelos novos teóricos contemporâneos da autocracia, tudo sempre começa e acaba em alguma votação para escolha de direções ou delegações (sendo que os eleitos são, a despeito de qualquer justificativa, representantes – o que, curiosamente, é um processo indireto e não mais-direto como proclamam).

Em vez de regular majoritariamente a inimizade política, procedimentos democratizantes deveriam ensejar a conversão de inimizade em amizade política. Isso não pode ser feito pela disputa baseada na força, nem pela disputa oratória, nem pela disputa pelo voto (que são formas de guerra: quente, fria ou de política praticada como continuação da guerra por outros meios) e sim na conversação amistosa (e toda conversação só se realiza a partir de uma emoção amistosa e pressupõe cooperação). De qualquer modo, somente a livre interação pode constituir (por emergência) um sentido comum à todos os envolvidos, como veremos nos próximos capítulos.

 

CAPÍTULO 6

DEMOCRACIA DE MULTIDÕES E COMUNIDADES

Que seus atores serão mais pessoas interagindo em multidões consteladas e em comunidades configuradas para a convivência do que indivíduos figurando em massas arrebanhadas ou sendo chamados periodicamente a influir na vida política como eleitores solitários.

Nos sistemas representativos dos modernos os atores (informais) coletivos da democracia eram as massas arrebanhadas em comícios e concentrações pré-eleitorais. Depois que esses coletivos se desfaziam, entrava então em cena o ator (formal) individual – o eleitor solitário – com a cabeça feita pelo magnetismo dos líderes que do alto dos seus palanques mesmerizavam as massas (além, é claro, pelos contatos pessoais dos cabos eleitorais locais ou setoriais e pela propaganda política massiva e intrusiva via broadcasting). Era massa e indivíduo.

É claro que havia a mediação das instituições hierárquicas, como as instâncias do Estado e os partidos (organizações privadas, formadas na sociedade mas com padrões organizativos decalcados do Estado e finalidades proto-estatais). Neste texto, porém, pelas razões que já foram expostas na Apresentação, na Introdução e no Capítulo 1, estamos considerando apenas aquelas conformações sociais compatíveis com a democracia (no seu sentido “forte” de desconstituição de autocracia) – seja na antiga Grécia, seja na Europa moderna, seja no mundo contemporâneo – e não as remanescências ou revivescências autocráticas que interpõem obstáculos ao processo de democratização. Neste sentido social, stricto sensu, atores coletivos cuja topologia é mais centralizada do que distribuída (como as instituições hierárquicas) não são, a rigor, atores democráticos (porque a dinâmica ou o “metabolismo” compatíveis com sua estrutura ou “corpo” não são democratizantes). Este é um pressuposto conceitual sem o qual tornar-se-ia inútil a presente abordagem.

Sim, havia atores coletivos hierárquicos mas, no que concerne aos atores em rede (mais distribuída do que centralizada), não contava para quase nada a convivência política das pessoas em suas diversas comunidades de vizinhança, de prática, de aprendizagem, de projeto. E também não contava para quase nada – inclusive porque não eram percebidos – os fenômenos que se manifestavam espontaneamente quando essas pessoas interagiam em multidões que se constelavam por emergência.

Todavia, nos grandes swarmings deste século percebemos a diferença entre multidões (consteladas) e massas (arrebanhadas). O indivíduo que comparece a um comício convocado pelo seu candidato ou pelo seu partido não está na mesma condição daquela pessoa que resolve ser, ela mesma, a sua própria manifestação numa multidão sem palanque, sem líder e sem coordenação centralizada. A multidão, embora possa juntar muita gente, não é um rebanho: podem ser milhões de pessoas, porém não acarreadas e sim convergidas uma-a-uma, cada qual caminhando no seu próprio passo e com seus próprios pés. Como disse James Hillman (1993) – no insight talvez de todos o mais luminoso, como jamais surgiu na história da chamada ciência política – cada pessoa acha a si mesma “ao entrar na multidão — o que é o significado básico da palavra polis: fluxo e muitos” (21).

As maiores multidões já reunidas em toda a história humana constelaram-se no dia 30 de junho de 2013 no Egito. É claro que havia um objetivo geral (conter a marcha fundamentalista para uma insensata subordinação do país à Sharia, sob o comando da Irmandade Muçulmana), mas os motivos pelos quais as pessoas não queriam a continuidade do governo de Morsi eram muito diversos. Foram milhares de micromotivos diferentes que, de repente, se combinaram e não um único motivo diretor que se difundiu a partir de um centro. Assim ocorreu com todos os grandes swarmings do terceiro milênio.

Também estamos percebendo nos últimos anos a proliferação de comunidades de muitos tipos. Na democracia dos modernos só se levava em conta a “comunidade” desenhada pela geografia política (a região eleitoral), baseada, ao fim e ao cabo, na velha comunidade territorial de herança. Também era assim na democracia dos atenienses, mas porque a primeira democracia era um projeto local mesmo e, naquele caso, a comunidade política – a polis – confundia-se com o território (conquanto a polis não fosse Atenas e sim os atenienses).

No dealbar de uma sociedade em rede, entretanto, surgem múltiplas comunidades (de aprendizagem, de prática, de projeto etc.) que não têm necessariamente uma base territorial previamente delimitada. O local passa a ser o cluster, produto de uma fenomenologia da interação (clustering): tudo que interage clusteriza. E agora?

Ah! Agora se constata que democracia dos modernos não tem mecanismos para incorporar os novos atores políticos compostos por pessoas interagindo em multidões ou convivendo em comunidades. Os participantes e organizadores de comícios (e de outros atos pró ou proto-eleitorais assemelhados) assim como os integrantes de qualquer audiência (expectadores de palestras, leitores de folhetos e panfletos, ouvintes e telespectadores de propaganda eleitoral em rádio e televisão) eram pré-atores: os candidatos e os eleitores propriamente ditos eram os atores válidos. E nem podiam ser mesmo válidos esses outros participantes ou interferentes, de vez que tais eventos, ocorridos em torno do fugaz e assistêmico processo eleitoral, não constituíam qualquer tipo de ator coletivo com organicidade suficiente para ser um player do jogo dentro das regras adotadas (que exigiam alguma estabilidade ou duração do sujeito, identidade inequívoca para evitar fraudes et coetera).

Na democracia dos antigos o problema estava resolvido pela presença física das pessoas em um local e tempo determinados, ainda que o ator propriamente dito fosse coletivo (a Ecclesia) e não individual, de vez que o processo participativo – abrindo um campo para a argumentação discursiva – fazia parte organicamente do resultado, que não se resumia à contagem de votos, à liturgia formal dos rodízios ou à loteria dos sorteios.

Numa terceira invenção da democracia, entretanto, deverão ser incorporados os novos atores compostos por pessoas interagindo em multidões consteladas e em comunidades configuradas para a convivência. E esses atores deverão ser incorporados simplesmente porque passaram a existir como tais, com organicidade suficiente para tanto, conferida pelos altos níveis de interatividade alcançados por suas performances. Não se trata de especular como seria. Eles já existem, só não são levados em conta.

Mas como não levar em conta as vontades expressas pelas multidões? É necessário notar que isso nada tem a ver com reivindicações de massas arrebanhadas ou arregimentadas para defender uma pauta de propostas e nem com a chamada democracia plebiscitária e sim com a combinação emergente ou a composição fractal – e não unitária, verificada por qualquer mecanismo de referendo ou plebiscito – de miríades de desejos.

E como não levar em conta os resultados das cocriações de uma variedade de comunidades configuradas para a convivência? Desprezada essa parte – da democracia criativa, prenunciada por John Dewey (1939), já no ocaso da vida, como a principal “tarefa diante de nós” (22) – não poderá ter continuidade o processo de democratização nas condições de uma sociedade em rede: a democracia na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos, a democracia como expressão da vida comunitária. Para quem quer democratizar a democracia, eis o ponto.

Poderá uma nova democracia (uma democracia mais democratizada) não ser mais responsiva às manifestações das multidões e aos projetos comunitários?

Parece que não, assim como também parece óbvio que isso exigirá novas regras e, mais do que isso, novos procedimentos de verificação das vontades políticas coletivas (no plural).

É inútil tentar estabelecer de antemão qualquer conjunto de regras e procedimentos capazes de dar conta desse enorme desafio de captação – de modo mais criativo (como queria Dewey) – de vontades políticas coletivas. A terceira democracia não é um modelo para colocar no lugar da segunda. É apenas – não custa repetir – a continuidade do processo de democratização nas condições da sociedade em rede. Os novos desenhos (no plural) de democracia surgirão a partir da cocriatividade dos seus reinventores. Em rede.

De qualquer modo, uma democracia mais criativa será, necessariamente, uma democracia mais cooperativa, como veremos no próximo capítulo.

 

CAPÍTULO 7

DEMOCRACIA COOPERATIVA

Que a formação democrática da vontade política terá mais como fonte originária a cooperação voluntária, com a convergência comunal de desejos pessoais para contender com um problema ou realizar um projeto, do que a liberdade individual de opinar protegida da interferência do Estado (segundo a visão liberal) ou do que o reino público constituído pela argumentação discursiva (segundo as visões do republicanismo político e do procedimentalismo democrático).

A segunda democracia (reinventada pelos modernos) só pode ser chamada de democracia porque se constituiu para desconstituir autocracia. Surgida a forma Estado-nação (como qualquer outra forma de Estado: uma formidável estrutura desenhada para a guerra, um tronco gerador de programas verticalizadores da rede social, com terrível capacidade coercitiva e cujo poder não podia ser contrabalançado por nenhum outro tipo de organização) era preciso proteger as pessoas desse monstro (o “seu” Leviatã). A visão liberal que visava proteger um conjunto básico de direitos dos cidadãos – em especial a sua liberdade de opinar – da interferência desse Estado foi o modo pelo qual o processo de democratização pode ter continuidade nas condições da modernidade.

O liberalismo político não deve ser desvalorizado porque, uma vez existindo o Estado-nação, a democracia liberal torna-se condição necessária (e indispensável) para a continuidade do processo de democratização e, inclusive, para qualquer reinvenção da democracia; embora ela mesma – eis um quase-paradoxo – seja incapaz de levar a isso (quer dizer, continuamente à mais-democracia nos seus próprios marcos ou à uma outra-democracia mais-democratizada) e, a partir de certo momento – como o que já vivemos agora – torne-se um obstáculo à democratização.

De qualquer modo, a liberdade de opinar protegida (modus in rebus) do poder estatal que foi instituída – e depois constituída – como fonte originária da formação da vontade política na democracia dos modernos, representou toda democracia possível nas condições em que surgiu.

Logo se viu, porém, que tal fundamento não era suficiente no que tange às condições para a formação da vontade política coletiva, dado o mecanismo de verificação que foi acoplado pelo sistema representativo. Se se tratasse apenas de recolher e totalizar opiniões individuais o processo político poderia ser substituído por uma pesquisa de opinião (ou por qualquer consulta censitária). E não se constituiria a esfera pública sem a qual, como se sabe, não pode haver democracia.

Teóricos como Hannah Arendt e Jurgen Habermas evidenciaram que esse reino público só poderia ser constituído pela argumentação discursiva, evocando talvez o velho processo da Ecclesia ateniense. Lá havia de fato um campo da argumentação discursiva (conquanto de baixa intensidade porque a interação foi limitada pelo participacionismo assembleísta). Na democracia representativa, porém, a república propriamente dita (em termos políticos) ou os processos intersubjetivos envolvidos ou refratados pelos procedimentos políticos (presididos por uma razão comunicativa) garantiriam que a formação da vontade política coletiva se desse sob um modo de regulação que fosse mais ex parte populis (tudo que não é Estado) do que ex parte principis (tudo que é Estado).

Havia porém um outro problema que não poderia ser resolvido pelo tal reino público constituído pela argumentação discursiva, quer na visão do republicanismo político de Arendt, quer na visão do procedimentalismo democrático de Habermas: será realmente possível constituir um reino público a partir da competição entre organizações privadas?

Para responder essa questão é preciso, antes de qualquer coisa, reconhecer que as formas de democracia liberal, que tentam materializar a democracia no sentido “fraco” do conceito (como modo político de administração do Estado ou regime de governo), não estimulam a cooperatividade e sim a competitividade. Talvez se encontre aqui uma razão para explicar por que a democracia (representativa) foi frequentemente associada ao capitalismo ou, pelo menos, a uma visão mercadocêntrica do mundo.

No sistema representativo moderno, constituído com base na competição entre partidos, imagina-se que a esfera pública possa ser regulada pela competição entre organizações privadas (como os partidos). É difícil engolir todos os pressupostos dessa convicção, que vêm juntos no pacote. Quando explicitados, tais pressupostos revelam certa confusão entre tipos diferentes de agenciamento.

É possível conceber formas de autorregulação econômica a partir da concorrência entre empresas ou, mais genericamente, entre agentes econômicos, porquanto a racionalidade do mercado é constituída com base na competição entre entes privados e não há aqui nenhuma pretensão de gerar um sentido público. Também é possível admitir que a diversidade das iniciativas da sociedade civil acabe gerando uma ordem bottom up. A partir de certo grau de complexidade, a pulverização de iniciativas privadas acabará gerando um tipo de regulação emergente.

Quando milhares de micromotivos diferentes entram em interação, pode se constituir um sentido coletivo comum que não está mais vinculado aos motivos originais dos agentes privados que contribuíram para a sua constituição. No entanto, isso não é possível quando o número de agentes privados é muito pequeno e, menos ainda, quando eles detêm em suas mãos – como ocorre no caso dos partidos – o monopólio legal das vias de acesso à esfera pública (no caso, confundida com o Estado). Nestas circunstâncias, não há como concluir – em sã consciência – que a competição entre uma dúzia de organizações privadas possa ter o condão de gerar um sentido público.

Estabelece-se então, na democracia dos modernos, um dilema que poderia ser descrito assim:

Não podemos ajudar um governo dirigido por um partido adversário a melhorar seu desempenho porque se assim fizermos diminuiremos nossas chances de conquistar o governo para o nosso partido. Logo (mesmo declarando publicamente o contrário), temos que torcer e até contribuir para piorar o desempenho do governo dirigido pelo partido adversário. Porque quanto pior for o desempenho desse governo “dos outros”, maiores serão as chances de substituí-lo por um governo “nosso”. Ocorre que um governo, seja ele qual for, é uma instituição pública e seus problemas, portanto, dizem respeito a todos nós. Como um bem comum da nação, o governo, de certo modo, nos pertence. Se o seu desempenho for ruim, as consequências serão ruins para todos. Contribuir para o seu fracasso significa, em alguma medida, prejudicar o país. Por outro lado, contribuir para o seu sucesso pode significar mantê-lo no poder e, ao fazermos isso, estaremos trabalhando, portanto, objetivamente, para o insucesso do nosso partido.

Para sair desse dilema seria preciso desconstituir a lógica competitiva entre os partidos – ou, pelo menos, não conferir a essa lógica um papel tão central e exclusivo na regulação da política institucional – ou seja, seria preciso desconstruir o sistema de partidos tal como se conforma na atualidade (inclusive desfazendo a confusão entre democracia e partidocracia). Ao que tudo indica essa proposta, se quiséssemos incorporá-la em um programa de reforma da democracia representativa, para usar uma expressão de Bobbio, ainda estaria “na categoria dos futuríveis” (23).

Uma alternativa seria aumentar a participação política dos cidadãos, incluindo novos atores no sistema político em uma quantidade tal que os liames entre seus motivos privados originais e o resultado final da interação de todos os motivos acabassem se perdendo ou não podendo mais se constituir. De um modo ou de outro, isso vai acabar acontecendo na medida em que a sociedade adquire a morfologia e a dinâmica de rede cada vez mais distribuída. Mas, quando acontecer, será sinal de que nosso sistema representativo, tal como existe hoje, também já terá sido aposentado por obsolescência e o será pela dinâmica social e não em virtude de uma reforma política feita pelos próprios interessados (que não a farão, com a profundidade desejada, pois sabem exatamente o que está em jogo e o que têm a perder). Ainda estamos aqui na categoria dos futuríveis, mas de um futuro que está chegando bem depressa. E que, quando chegar, será surpreendente (e até certo ponto decepcionante) para seus promotores, uma vez que a participação estimulada a tal grau não é mais participação e sim interação (já que o público propriamente dito só pode ser constituído a partir da emergência e não como plano ou desiderato de qualquer grupo participativo).

O fato, muitas vezes pouco percebido, é que o sistema concorrencial de partidos não é essencial para a democracia, nem mesmo no seu pleno sentido “fraco”. No entanto, como as coisas funcionam assim na totalidade das democracias realmente existentes, tem-se a impressão de que tal mecanismo é, de alguma forma, necessário para realizar a democracia como sistema de governo nos países contemporâneos.

Todavia, quanto mais competitiva for a democracia, menos democratizada (ou mais autocratizada) ela estará (inclusive na base da sociedade e no cotidiano do cidadão). Mais uma vez (é quase impossível não repetir): quem tem de ser competitivo é o mercado (e a economia é que deve ser de mercado), não a sociedade. Mercados competitivos, ao que tudo indica, exigem como base uma sociedade cooperativa (por razões econômicas mesmo, como a diminuição das incertezas no tocante aos investimentos produtivos de longo prazo, com a redução dos custos de transação e, inclusive, da insegurança jurídica).

Associado à visão mercadocêntrica de uma sociedade competitiva parece estar um novo tipo de fundamentalismo de mercado, que pode até ser democratizante em relação ao estadocentrismo que, em geral, acompanha as autocracias, mas, se for, manifesta-se apenas no tocante à democracia como sistema de governo e não à democracia na sociedade. É claro que é melhor ter vários partidos – legal e legitimamente – disputando o poder de Estado do que apenas um partido (em geral confundido com o Estado) autorizado a empalmá-lo (em uma espécie de regime de monopólio político). No entanto, vários partidos também podem constituir um oligopólio político, como, aliás, ocorre frequentemente, expropriando a cidadania política, sendo que, nesse caso, não há nenhuma instância “acima” capaz de regular a competição (de vez que o Estado, nessas circunstâncias, já teria sido ocupado e dividido ou loteado pelo oligopólio partidário).

Por outro lado, o Estado autocrático também não pratica uma democracia cooperativa, mas se organiza, de certo modo, contra a sociedade para controlá-la. O seu padrão de relação com a sociedade é competitivo (mesmo na ausência de concorrentes políticos autorizados) e adversarial. É um Estado que compete com a sociedade pela regulação das atividades e que, assim, não permite, sequer, a autonomia associativa.

Tal como ainda se estrutura e funciona, o Estado, autocrático ou declaradamente democrático, não é capaz de assumir uma democracia cooperativa. A razão básica é que uma democracia cooperativa não pode mesmo funcionar em estruturas piramidais, verdadeiros mainframes, como são o Estado, suas instituições hierárquicas e seus procedimentos verticais, baseados no fluxo comando-execução. Do ponto de vista da democracia no sentido “forte” do conceito, a diferença está em que um Estado democrático de direito permite ou enseja o processo de democratização da sociedade, enquanto que o Estado autocrático não. Essa é a razão pela qual a democracia no sentido “forte” do conceito, a democracia radicalizada (no sentido de mais democratizada) na base da sociedade e no cotidiano do cidadão, depende da democracia no sentido “fraco” do conceito, da democracia como sistema de governo ou modo político de administração do Estado.

Uma democracia cooperativa (que é sempre uma democracia radicalizada) exige um padrão de organização em rede. E poderá ser tão mais cooperativa quanto maior for a interatividade, quer dizer, quanto maior for a conectividade dessa rede e quanto mais ela apresentar uma topologia distribuída (ou quanto menos centralizada ela for).

Isso significa que a democracia em seu sentido “forte” não é um projeto destinado ao Estado-nação, às suas formas de administração política (tal como até hoje as conhecemos), e sim à sociedade mesmo, ou melhor, às comunidades que se formam por livre pactuação entre iguais, caracterizadas por múltiplas relações horizontais entre seus membros. E que, portanto, não se pode pretender simplesmente substituir os procedimentos e as regras dos sistemas políticos democráticos representativos formais pelas inovações políticas inspiradas por concepções democráticas radicais.

Por outro lado, a emergência de inovações políticas na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos, inspiradas por concepções radicais de democracia cooperativa, pode exercer uma influência no sistema político, de fora para dentro e de baixo para cima, capaz de mudar a estrutura e o funcionamento dos regimes democráticos formais. Ou seja, por essa via, a democracia no sentido “forte” acaba democratizando a democracia no sentido “fraco”, mas não exatamente para tomar seu lugar e sim para democratizar cada vez mais a política que se pratica no âmbito do Estado e das suas relações com a sociedade. Parece claro que isso implica uma nova reinvenção da democracia (e não apenas uma reforma da democracia atual). Não podemos saber – e seria inútil tentar adivinhar agora – como serão os novos regimes políticos mais democratizados aos quais caberá administrar as novas formas de Estado que surgirão no futuro (quem sabe o “Estado-rede”, como Castells propôs em 1999) (24). Mas já podemos saber o que fazer, a partir da sociedade, para democratizar mais tais regimes, sejam eles quais forem ou vierem a ser.

O caminho é mais democracia na sociedade, mais interação cooperativa dos cidadãos, o que, obviamente, só é viável na dimensão local (entendido o local como cluster) e sob regimes políticos que não proíbam nem restrinjam seriamente tal experimentação inovadora: daí a necessidade da democracia liberal.

É bom ver o que os pioneiros da democracia cooperativa, como John Dewey, pensavam sobre isso. Comecemos resgatando a sua percepção de que toda democracia é local, no sentido de que a democracia é um projeto comunitário; ou, como ele próprio escreveu, de que “a democracia há de começar em casa, e sua casa é a comunidade vicinal” (25).

A formação democrática da vontade política não pode se dar apenas por meio da afirmação da liberdade do indivíduo perante o Estado, mas envolve um processo social. A atividade política dos cidadãos não pode se restringir ao controle regular sobre o aparato estatal (com o fito de assegurar que o Estado garanta as liberdades individuais).

A liberdade do indivíduo depende de relações comunicativas (cada cidadão só pode atingir autonomia pessoal em associação com outros), mas o indivíduo só atinge liberdade quando atua comunitariamente para resolver um problema coletivo, o que exige – necessariamente – cooperação voluntária. Há, portanto, uma conexão interna entre liberdade, democracia e cooperação. Isso evoca outro conceito (deweyano) de esfera pública, como instância em que a sociedade tenta, experimentalmente, explorar, processar e resolver seus problemas de coordenação da ação social. Assim, é somente a experiência de interagir voluntária e cooperativamente em grupos para resolver problemas e aproveitar oportunidades, que pode apontar para o indivíduo a necessidade de um espaço público democrático. A pessoa como interagente ativo em empreendimentos comunitários – tendo ou não consciência da responsabilidade compartilhada e da cooperação – é o agente político democrático (no sentido “forte” do conceito).

A concepção de esfera pública democrática como meio pelo qual a sociedade tenta processar e resolver seus problemas (como Dewey já havia proposto no final da década de 1920) permite a descoberta de uma conexão intrínseca entre democracia e cooperação.

Dewey elabora uma idéia normativa de democracia como um ideal social. Se quisermos inferir consequências dessa concepção, devemos explorar a conexão entre esse seu conceito de democrático-social e o papel regulador da rede social.

Rede social (distribuída) é um meio pelo qual (ou no qual) a cooperação pode se ampliar socialmente (inclusive, em certas circunstâncias especiais, convertendo competição em cooperação). A democracia que casa com a idéia de rede social é a democracia cooperativa ou comunitária. Logo, a democracia pode então ser vista como uma espécie de “metabolismo” próprio de redes sociais (e será uma democracia democratizada na razão direta do grau de distribuição dessas redes). Pelo que se pode inferir das tendências atuais, essa é a democracia radical – desejável e possível – e não o retorno às concepções assembleístas, sovietistas, conselhistas, praticadas como “arte da guerra”, segundo as quais caberia a um destacamento organizado, um partido de intervenção, “acarrear” gente para vencer os inimigos de classe e para “acumular forças” em prol da tomada (legal ou ilegal) do poder e instaurar o paraíso na Terra depois de ter conquistado hegemonia sobre (ou destruído) as elites supostamente responsáveis por todo o mal que assola a humanidade. É à isso – infelizmente – que tem nos levado as reflexões dos chamados novos teóricos da democracia que são, na verdade, novos teóricos da autocracia.

Deixando de lado, porém, esses teóricos contemporâneos da autocracia, a terceira invenção da democracia, assim como não poderá se basear em von Humbolt (para não ficar aprisionada na fórmula dos modernos), também deverá se apoiar menos em Arendt ou Habermas e mais em Dewey. Porque para Dewey uma prática democrática radicalizada – tomando-se a democracia no sentido “forte” do conceito – deveria ser, necessariamente, cooperativa (26).

Aqui se diz que uma terceira invenção da democracia caminhará necessariamente para uma democracia mais cooperativa, na qual a formação democrática da vontade política terá mais como fonte originária a cooperação voluntária, com a convergência comunal de desejos pessoais para contender com um problema ou realizar um projeto, do que a liberdade individual de opinar protegida da interferência do Estado (segundo a visão liberal) ou do que o reino público constituído pela argumentação discursiva (segundo as visões do republicanismo político e do procedimentalismo democrático).

Cabe notar que o esforço de Dewey para buscar uma nova noção de público desemboca no comunitário. Não importa o que se diga para tentar reinterpretar as ideias deweyanas à luz de qualquer visão particular hodierna centrada na legitimação ou na negação dos sistemas representativos açambarcados pelo Estado. Acrescente-se que não se trata daquele grande e talvez demasiadamente vago conceito de comunidade dos alemães (com o qual, aliás, já trabalhava Althusius, desde o dealbar do século 17) (27) – da grande comunidade – e sim da pequena comunidade mesmo (em termos sociais e não necessariamente geográfico-populacionais).

Sim, Dewey percebeu que toda democracia é local, no sentido de que a democracia é um projeto comunitário (28). Ele não tinha, como é óbvio, as palavras atuais para descrever o que pensava, mas farejou os conceitos – como se ouvisse ecos do futuro – de rede comunitária e de rede social distribuída, antevendo talvez os processos de disseminação viral que só podem se efetivar pelos meios próprios de redes  P2P  (peer-to-peer). E não poderia ter também, como é óbvio, a visão do glocal, como veremos no próximo capítulo.

 

CAPÍTULO 8

DEMOCRACIAS GLOCAIS

Que ela terá diversas “fórmulas” glocais e não mais uma única fórmula pretensamente global (ou internacional, como ocorreu com a segunda democracia).

A democracia dos antigos foi um projeto local (no sentido de ter sido uma realidade configurada por um comunidade local: a polis). Os outros locais não estavam nem aí para a inusitada experiência dos atenienses (que foi uma espécie de ilha num mar de cidades-Estado autocráticas). Dois mil anos depois os modernos pretenderam chegar a uma fórmula global de democracia, tendo conseguido, entretanto, apenas ensaiar algumas experiências nacionais. Não conseguiram nem fazer valer a democracia no plano internacional (que continuou sendo regido pelo realismo político e, como se sabe, toda realpolitik é autocrática). Não podia mesmo haver – e nunca haverá – uma única fórmula global de democracia (até porque o global não existe a não ser como abstração para designar o que não é local). Agora porém abre-se a possibilidade de reinventar a democracia novamente em localidades (no plural) do mundo globalizado (ou melhor: glocalizado). Nos novos mundos altamente conectados que estão emergindo o local conectado é o mundo todo e pode passar então a se chamar glocal. O glocal se constela quando a globalização do local encontra a localização do global, como está ocorrendo.

Tal reinvenção dará origem a várias “fórmulas” de democracia. Tantas quantas forem as experimentações. Chama-se reinvenção (no singular) porque todas elas – as novas “fórmulas” de democracia – tendem a apresentar certas características comuns: serão mais distribuídas, mais interativas, mais diretas, com mandatos revogáveis (quando for o caso, quer dizer, quando houver representação ou delegação – porque em muitos casos não haverá), regidas mais pela lógica da abundância do que da escassez, mais vulneráveis ao metabolismo das multidões e mais responsivas aos projetos comunitários, mais cooperativas, mais diversas e plurais (não admitindo apenas uma única fórmula internacional mas múltiplas experimentações glocais). E chama-se ainda de democracia porque todas elas poderão ser olhadas como fazendo parte de uma mesma corrente ou movimento de desconstituição de autocracia (ou então não serão democracias).

Assim, a terceira invenção da democracia é uma desinvenção da fórmula (única) ou uma abertura para múltiplas experimentações. Por isso se diz que ela terá diversas “fórmulas” glocais e não mais uma única fórmula pretensamente global (ou internacional, como ocorreu com a segunda democracia).

Isso significa que teremos zilhões de sociosferas democráticas, como veremos no próximo capítulo.

 

CAPÍTULO 9

ZILHÕES DE SOCIOSFERAS DEMOCRÁTICAS

Que ela será realizada em miríades de sociosferas e não em apenas menos de duas centenas das unidades político-territoriais centralizadas (chamadas de países ou Estados-nações).

A democracia inventada pela segunda vez pelos modernos, conquanto tivesse sua origem na desconstituição das monarquias absolutistas (a autocracia européia do século 17), acabou virando um modo político de administração da nascente estrutura do Estado-nação e de mitigação de seu poder em defesa do cidadão (impedindo que esse poder avançasse sobre ele de modo a restringir sua liberdade individual básica, daí o seu caráter liberal). Surgiram então os Estados democráticos de direito. Mas a estrutura desses Estados não se deixou alterar, ela mesma, por padrões de organização mais distribuídos do que centralizados e, como resultado dessa resiliência hierárquica, tivemos modos de regulação democráticos de baixa intensidade (porque de baixa interatividade).

Ora, a forma Estado-nação se reproduziu em quase duas centenas de nações, constituindo os 193 países atuais e foi tentada (ainda que sem sucesso em muitos casos) a carregar consigo o seu modo de regulação democrático formal. Mas a democracia não tem a ver com as exigências de governança desse novo modelo de dominação sobre as sociedades que se espalhou pelo mundo (o Estado-nação). As unidades político-territoriais centralizadas chamadas de países continuaram, não obstante as tentativas de democratização ensaiadas no seu interior, em grande parte infensas (e avessas) à democracia. Além disso a segunda democracia não conseguiu atingir, ao final da primeira década do século 21, cerca de 57 países, que remanescem como autocracias (ou ditaduras, regimes autoritários ou países não-livres, como Cuba, China ou Coréia do Norte). Além disso, remanescem também: regimes em transição autocratizante ou protoditaduras (como Venezuela e Rússia); regimes em transição democratizante ou protodemocracias (como a Tunísia e, quem sabe, o Egito e outros países atingidos pela chamada Primavera Árabe, mas tudo isso ainda é muito incerto); democracias formais parasitadas por governos manipuladores (como Argentina ou Brasil); democracias formais representativas não-plenas ou flaweds (como Grécia ou Índia); e democracias formais representativas plenas (como Noruega, Finlândia ou Japão). No grupo destas últimas – que representaria a democracia dos modernos em sua plenitude – não temos mais do que 30 países (se tanto).

O fato é que, mais de três séculos depois de ter sido reinventada, a democracia – em todas as suas formas (plenas e não plenas, aperfeiçoadas ou defeituosas) – não atinge a maior parte da população do planeta: 3,9 bilhões de pessoas que vivem sob cerca de 60 regimes não-livres. As tentativas de democratização dos regimes políticos não foram assim tão bem-sucedidas como se propaga e o número de regimes democráticos não está crescendo no mundo: em dados de 2011, entre 51 e 57% da população mundial não vivem em regimes livres e esta porcentagem já foi menor!

Isso para não falar de democracias mais substantivas e interativas. Não há nenhum país que apresente essas formas de democracia democratizada porque elas não se aplicam às estruturas centralizadas do Estado-nação, conquanto já possam ser ensaiadas em comunidades que apresentem topologia mais distribuída do que centralizada, desde – é claro – que as pessoas que compõem tais comunidades queiram experimentá-las.

Mas essa democracia na sociedade também não poderá ser experimentada se imaginarmos a sociedade como dominium do Estado. Sociedades nacionais, além de serem redes abstratas (compostas pela população de um país), são campos conformados artificialmente (inclusive cercados por fronteiras) pelo poder estatal.

Concretamente não existe “a sociedade”, nem “as sociedades” configuradas pelo Estado e sim uma diversidade de sociosferas. As novas formas democráticas emergentes (as novas Atenas do terceiro milênio) serão zilhões de comunidades políticas. Por isso se diz, sobre à terceira invenção da democracia, que ela se realizará em miríades de sociosferas e não em apenas menos de duas centenas das unidades político-territoriais centralizadas (chamadas de países ou Estados-nações). Essas sociosferas serão glocais, ou seja, locais (no sentido de cluster) altamente tramados por dentro e conectados para fora. E não serão exclusivamente de base territorial. Serão comunidades de vizinhança, sim, mas também de aprendizagem, de prática, de projeto etc.

As diversas formas da terceira democracia serão experimentadas – já estão sendo, aliás – nesses diversos mundos glocais em rede, que tendem a surgir em profusão com o estilhaçamento do mundo único hierárquico. Serão modos de regulação (mais democráticos) compatíveis com padrões de organização em rede (mais distribuída). Não poderão vicejar em hierarquias (ou redes mais centralizadas do que distribuídas) de nenhum tipo: estatais, mercantis ou sociais. E não serão, portanto, substitutos para a democracia realmente existente nos países (a democracia representativa dos modernos) nem para qualquer outro tipo de regime. Elas coexistirão com o amplo espectro de regimes democráticos ou não-democráticos que existem hoje e que tendem a perdurar ainda por tempo indeterminado, como veremos no próximo capítulo.

 

CAPÍTULO 10

ILHAS DEMOCRÁTICAS NA REDE

Que ela coexistirá marginalmente e por tempo indeterminado com as democracias realmente existentes (incluindo as democracias plenas, as democracias parasitadas por regimes manipuladores e as democracias em processo de autocratização) e também com protoditaduras florescentes e ditaduras remanescentes.

Todo esforço para gerar um novo modelo de democracia é inútil. Em primeiro lugar porque democracia é uma dinâmica, um modo de regulação e não um modelo de gestão, uma fórmula de regime político (apesar das tentativas dos modernos de exportar o sistema representativo no plano internacional dos Estados-nações). Em segundo lugar porque, com a emergência de uma sociedade em rede, os lugares onde se pode experimentar processos de democratização vão se multiplicando rapidamente e inumeravelmente.

A terceira invenção da democracia não é a substituição da segunda democracia por outra fórmula qualquer, nem uma volta à democracia participativo-assembleísta dos atenienses, nem a aplicação de um novo arranjo urdido por alguém antes da interação. Porque não há nada para colocar no lugar da democracia dos modernos (assim como os modernos não colocaram nada no lugar da democracia dos antigos). Ela continuará aí por algum tempo e esse tempo é indeterminável nas circunstâncias atuais. Só não terá mais o poder de impedir que aconteçam novos processos de democratização que passem ao largo de suas regras. E, ao que tudo indica, não terá mais a relevância que teve nos últimos dois séculos.

Novas experimentações democráticas acontecerão por três motivos básicos: porque a democracia representativa não atende mais a variedade sociopolítica e ao metabolismo interativo das sociedades contemporâneas (como vêm revelando todas as pesquisas sobre a credibilidade das instituições políticas e as manifestações deste século, nas quais as pessoas, invariavelmente, declaram que o sistema político não mais as representa); porque ela não pode mais ser reformada nos seus próprios termos ou dentro do âmbito conformado por suas regras (e começou a obstruir a continuidade do processo de democratização); e porque, simplesmente, elas já podem acontecer (desde que existam pessoas – novos atores políticos emergentes – dispostas a fazer-acontecer tais experiências).

Não é, portanto, de substituição que se fala aqui e sim de esgotamento da segunda democracia e de superação (da segunda democracia e, inclusive, da primeira). Fala-se de abundância de processos e ensaios de democracia mais democratizada. Uma nova fórmula, mesmo que fosse possível concebê-la antes da interação, geraria artificialmente escassez. E por que precisaríamos disso?

É claro que os Estados-nações continuarão com suas velhas fórmulas (de democracia e autocracia). Mas o mundo não é feito de Estados-nações, como os governos querem que acreditemos.

Com o estilhaçamento do mundo único hierárquico tendem também a se pulverizar os padrões de organização e os modos políticos de regulação congruentes com esses padrões. Teremos muitos mundos sociopolíticos, não apenas os atuais, que não chegam a duas centenas de Estados-nações onde cerca de 140 sistemas representativos (dos quais 25 ou, num juízo menos rigoroso, não mais do que 30, podem ser considerados democracias formais plenas) coexistem com mais de 50 regimes francamente autoritários (29).

Qualquer pessoa inteligente pode perceber que não é mais possível manter por muito tempo a situação atual, na qual 7 bilhões de pessoas, crescentemente conectadas entre si, continuem arrebanhadas e dominadas por apenas 193 unidades políticas centralizadas remanescentes, com fundamentos que ainda permanecem em algum lugar do passado.

Essas formas pretéritas – que são, todas, sem exceção, sistemas de privatização da política – cujas estruturas e dinâmicas seguem princípios organizativos fundeados no velho mundo hierárquico, persistirão por muito tempo ainda, mas acabarão se tornando obsoletas diante das infinitas possibilidades de interação – e, por conseguinte, de regulação – que estão emergindo. Ocorrerá simplesmente que as pessoas se importarão cada vez menos com elas. Porque cada vez menos precisarão delas para viver sua vida, regular sua convivência social, tocar seus negócios e desenvolver seus projetos.

Os novos caminhos, porém, serão os da inovação, os da emersão e multiplicação de novos mundos políticos glocais e não o da abolição dos poucos regimes democrático-formais que remanescem nos Estados-nações por efeito de uma mega-explosão das massas, de um evento épico universal ou uma de revolução global.

Quem está acreditando nisso, pode esperar sentado. Não vai acontecer. E, se acontecesse, seria ruim, regressivo, tenebroso, tão tenebroso quanto seria um governo mundial (já pensaram o que seria viver sob uma burocracia global única?) e outras fantasias autoritárias arcaicas, heranças de uma tradição hierárquica que, como um pesadelo, continua oprimindo nossas mentes e assombrando nossas consciências.

Teremos, portanto, cada vez mais ilhas democráticas na rede. Os resultados da terceira invenção da democracia coexistirão – em princípio marginalmente – por tempo indeterminado com as democracias realmente existentes (incluindo as democracias plenas, as democracias parasitadas por regimes manipuladores e as democracias em processo de autocratização) e também com protoditaduras florescentes e ditaduras remanescentes.

Essas ilhas não serão países (a não ser, talvez, em alguns casos especialíssimos). Poderão ser cidades inovadoras que se libertam do jugo do poder central dos Estados-nações que as satelizam (retirando-lhes a governança dos seus processos de desenvolvimento), subordinam (como instâncias subnacionais) e espoliam (devolvendo a elas apenas migalhas dos impostos arrecadados), mas isso também deve ser raro. Serão, outrossim, comunidades de todo tipo, inclusive territoriais, mas não somente. Onde houver rede (mais distribuída do que centralizada) pode haver democracia (mais democratizada do que autocratizada), desde que haja ação política nessa direção. Teremos, assim, muitas experimentações democráticas: em comunidades de vizinhança, em ambientes de livre-aprendizagem, em empresas não-hierárquicas ou em empreendimentos em rede; enfim, onde houver pessoas interagindo na ausência de obstruções significativas de fluxos que verticalizem o tecido social, poderá acontecer a terceira invenção da democracia. Isto é disrupção por irrupção. Isto é revolução, quer dizer, não a substituição de uma ordem por outra ordem (top down) e sim abertura para novas ordens emergentes (bottom up).

É claro que muitos chamados revolucionários, ensinados e dirigidos por organizações hierárquicas e autocráticas, não concordarão com isso. Mas apenas porque – a despeito do que declaram sobre si e sobre o mundo – eles não são realmente revolucionários e sim o oposto. Os que acham que revolução significa instaurar uma nova ordem análoga (em termos de estrutura e dinâmica) à velha ordem, substituindo os ocupantes dos velhos cargos (que sempre são mantidos, às vezes com outros nomes) por novos ocupantes; ou seja, competindo para tomar o lugar de quem está no poder (mas não querendo mexer na topologia centralizada que permite que esse poder se exerça verticalmente, nem no modo de regulação autocrático que viabiliza sua reprodução) constituem forças da manutenção da ordem, não da mudança e são, portanto, reacionários, não revolucionários.

Pessoas possuídas por aquilo que se chama de “espírito prático” ficarão decepcionadas com a conclusão de que uma nova invenção da democracia não terá um novo modelo para colocar no lugar do antigo. Elas querem saber como vão salvar as estruturas que atualmente são mal-geridas politicamente pelos arranjos da democracia realmente existente. Elas estão buscando uma resposta para dar às multidões que não acreditam mais no sistema representativo. Elas estão preocupadas com a governabilidade das estruturas e não com a governança das novas configurações sociais emergentes. Mas o fato é que essas estruturas envelheceram e o sistema político que permitia o seu controle apodreceu, vítima das consequencias acumuladas das falhas “genéticas” da segunda democracia.

Novas estruturas surgirão e novos modos de regulação compatíveis com tais estruturas se multiplicarão. Se essas novas estruturas forem organizadas segundo um padrão de rede (mais distribuída do que centralizada) os modos de regulação serão mais democráticos (em várias experiências de democracia mais distribuída, mais interativa, mais direta, regida mais pela lógica da abundância do que da escassez, mais vulnerável ao metabolismo das multidões e mais responsiva aos projetos comunitários, mais cooperativa, mais diversa e plural).

Enquanto isso, porém, a tarefa fundamental dos democratas é impedir retrocessos na democracia realmente existente nos países que a adotam: conquanto limitada, essa democracia é o único tipo de regime político que permite que surjam na sociedade experiências publicizantes e democratizantes. Em ditaduras, protoditaduras e regimes democráticos em franco processo de autocratização isso não pode acontecer. Portanto, o obstáculo a ser removido não é a democracia representativa e sim a não-democracia. Ademais, tais experiências – a despeito de não ser este seu objetivo – serão capazes de exercer uma pressão ambiental sobre a própria democracia representativa de sorte a permitir o surgimento de mais experiências semelhantes, multiplicando ambientes favoráveis à continuidade do processo de democratização.

É isso, nada mais do que isso. Pois aqui se disse, o tempo todo, que a terceira invenção da democracia nada mais era do que a continuidade do processo de democratização nas condições da contemporaneidade.

 

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) LÉVY, Pierre (1998). “Uma ramada de neurônios” in Folha de São Paulo: 15/11/1998. Cf. ainda Caderno Mais da Folha de S. Paulo: 15/11/2002 (p. 5-3). O texto está disponível em:

http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/uma-ramada-de-neuronios

(2) Cf. John Dewey: “Democracia criativa: a tarefa diante de nós” (1939) que pode ser encontrado no original “Creative Democracy: the task before usin The Essential Dewey: Vol. 1 – Pragmatism, Education, Democracy (existe edição em espanhol in Liberalismo y Acción Social y otros ensayos. Valência: Alfons El Magnànim, 1996); e existe também tradução brasileira com o título “Democracia criativa: a tarefa diante de nós”, no livro de FRANCO, Augusto e POGREBINSCHI, Thamy (orgs.) (2008). Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre: ediPUCRS, 2008.

(3) Cf. SEN, Amartya (1999). A democracia como um valor universal. Disponível em:

http://pt.slideshare.net/augustodefranco/democracia-como-um-valor-universal

(4) DAHL, Robert (1998). Sobre a democracia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001.

(5) von HUMBOLT, Alexander (1792). Ensaio sobre os limites da atividade do Estado.

(6) SAINT-EXUPERY, Antoine (1929). Correio Sul. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

(7) Cf. ALTHUSIUS (1603). Política; SPINOZA (1670). Tratado Teológico-Político; e ROUSSEAU (1762). O Contrato Social. Cf. ainda: BURKE (1790). Reflexões sobre a Revolução Francesa.

(8) DEWEY, John (1927). The Public and its Problems. Chicago: Gataway Books, 1946 (existe edição em espanhol: La opinión pública y sus problemas. Madrid: Morata, 2004). Existem alguns excertos traduzidos deste livro no livro de FRANCO, Augusto e POGREBINSCHI, Thamy (orgs.) (2008). Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre: ediPUCRS, 2008.

(9) ARENDT, Hannah (1958). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

(10) DEWEY; op. cit.

(11) DEWEY, John (1888). Ética da Democracia; apud Honneth, Axel (1998).“Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria democrática hoje”, (publicado originalmente em “Political Theory”, v. 26, dezembro 1998) traduzido na coletânea: Souza, Jessé (org.) (2001). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

(12) Idem.

(13) MATURANA, Humberto & VERDEN-ZÖLLER, Gerda (1993). Amor y Juego: fundamentos olvidados de lo humano – desde el Patriarcado a la Democracia. Santiago: Editorial Instituto de Terapia Cognitiva, 1997. Cf. também MATURANA, Humberto (1993). La democracia es una obra de arte. Bogotá: Cooperativa Editorial Magistério, 1993.

(14) BARAN, Paul (1964). “On distributed communications: I. Introduction to distributed communications networks” (Memorandum RM-3420-PR August 1964). Santa Monica: The Rand Corporation, 1964.

(15) MATURANA; op. cit.

(16) SPINOZA; op. cit.

(17) ARENDT, Hannah (1959). “A questão da guerra” in O que é política? (Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

(18) Cf. FRANCO, Augusto (2011). É o social, estúpido: três confusões que dificultam o entendimento das redes sociais. Disponível em:

http://pt.slideshare.net/augustodefranco/o-social-estpido

(19) HERBERT, Frank (1976). Os filhos de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

(20) FINLEY, M. I (org.) (1998). O Legado da Grécia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

(21) HILLMAN, James (1993). Psicologia, Self e Comunidade. Discurso proferido durante o jantar do Prêmio Cambridge em 17 de novembro de 1993. Disponível em:

http://pt.slideshare.net/augustodefranco/psicologia-self-e-comunidade

(22) DEWEY; op. cit.

(23) BOBBIO, Norberto (1985). Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

(24) CASTELLS, Manuel (1999). “Para o Estado-rede: globalização econômica e instituições políticas na era da informação” in Bresser Pereira, L. C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e Estado em transformação. Brasília: ENAP, 1999.

(25) DEWEY, John (1927). The Public and its Problems; ed. cit.

(26) De John Dewey pode-se talvez inferir uma democracia cooperativa; ou uma “democracia como cooperação reflexiva”, como sugeriu Axel Honneth (1998) – ed. cit – , professor da Universidade de Frankfurt; ou, ainda, uma democracia valorizada em seu aspecto comunitário, como já havia proposto Hans Joas (1994) em “O comunitarismo: uma perspectiva alemã”, traduzido na coletânea: Souza, Jessé (org.) (2001). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

(27) ALTHUSIUS; op. cit.

(28) DEWEY, John (1937). “Democracy is radicalin The Essential Dewey: Vol. 1 – Pragmatism, Education, Democracy. Indianapolis: Indiana University Press, 1998. Com o título “A democracia é radical”, há uma tradução desse texto no livro de FRANCO, Augusto e POGREBINSCHI, Thamy (orgs.) (2008). Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre: ediPUCRS, 2008.

(29) Em dados de 2011: entre 51% (Democracy Index 2011 Economist Intelligence Unit) e 57% (Freedom in the World 2012) da população mundial (quase 4 bilhões de pessoas) não vivem em regimes free. O que é mais assustador? Esta porcentagem já foi menor! Segundo o Democracy index 2011: a report from the Economist Intelligence Unit, temos: 25 full democracies – 15% dos países – 11,3% da população mundial; 53 flawed democracies – 31,7% dos países – 37,1% da população mundial; 37 hybrid regimes – 22,2% dos países – 14,0% da população mundial; 52 authoritarian regimes – 31,1% dos países – 37,6% da população mundial. Segundo o Freedom in the World 2012 da Freedom House, temos: 87 Free Countries – 45% dos países; 60 Partly Free Countries – 31% dos países; 48 Not Free Countries – 24% dos países. Os critérios são diferentes, mas os resultados são semelhantes. O mais assustador é que se observa um declínio da democracia. Segundo dados da Freedom House, comparando 2006 com 2011 temos: Países Livres: 2006 = 90 – 47% / 2011 = 87 – 45%. Países Parcialmente Livres: 2006 = 58 – 30% / 2011 = 60 – 31%; Países Não Livres: 2006 = 45 – 23% / 2011 = 48 – 24%; Democracias Eleitorais: 2006 = 123 – 64% / 2011 = 117 – 60%. Segundo dados da Economist Intelligence Unit , comparando 2008 com 2011 temos (para o mesmo total de 167 países e, assim, as porcentagens são as mesmas): Full Democracies: 2008 = 30 / 2011 = 25 – 15% dos países – 11,3% da população mundial; Flawed Democracies: 2008 = 50 / 2011 = 53 – 31,7% dos países – 37,1% (Idem); Hybrid Regimes: 2008 = 36 / 2011 = 37 – 22,2% – 14,0%; Authoritarian Regimes: 2008 = 51 / 2011 = 52 – 31,1% – 37,6%. O fato é que – em 2011 – segundo dados da Economist Intelligence Unit, 51% da população mundial não vive em democracias (nem full, nem flawed); e segundo dados da Freedom House 57% da população mundial não vive em regimes free (o que perfaz um total de 3,95 bilhões de pessoas). Os dados da Freedom House para 2008 (universo de 193 países) mostram também a queda (comparada com 2011): Free Countries = 89 – 46% / Partly Free Countries = 62 – 32% / Not Free Countries = 42 – 22%. Cf. Democracy índex 2011. Democracy under stress. A report from The Economist Intelligence Unit http://goo.gl/11FjX. Cf. também Freedom in the World 2012. Freedom House http://goo.gl/Pd4MY. Em suma, quase quatro milhões de seres humanos (a maioria da humanidade) não têm plena liberdade para criar, para inventar, para inovar, para se desenvolver e para promover, com alguma autonomia, o desenvolvimento das localidades onde vivem e trabalham. E não há qualquer processo “natural”, de “evolução”, sempre ‘para frente e para o alto’, como imaginam alguns crédulos. Em 1975, 30 nações tinham governos eleitos pela população. Em 2005, esse número tinha subido para 119. Mas nos últimos anos o crescimento da democracia e da liberdade política está sofrendo forte desaceleração e isso não tem a ver somente com o requisito democrático da eletividade, mas, sobretudo, com o da rotatividade (ou alternância), para não falar dos outros princípios (como a liberdade, a publicidade, a legalidade e a institucionalidade e, como consequência de todos esses, a legitimidade).

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