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A transição incompleta

A tarefa principal do governo Temer – que assumiu por força do que reza a Constituição, mas que carece de legitimidade das urnas e da unção das ruas – era realizar a transição pós-PT, levando-nos até 2018. É preciso entender a natureza dessa transição. Depois do que o PT fez na última década no governo federal – tentando tomar o poder a partir do governo para nunca mais sair do governo e, com isso, enfreando o processo de democratização no Brasil -, a transição pós-PT deveria ser, necessariamente, uma transição democrática.

A julgar pelos primeiros sete meses decorridos após o impeachment de Dilma, pode-se avaliar que essa transição não vai se completar nos menos de dois anos que restam ao atual governo. Em junho de 2018 começa a campanha eleitoral e a partir desse momento o governo não governa mais. De tempo útil, portanto, restam 18 meses. Oremos!

O que o PT tentou fazer na última década foi “bolivarianizar” (ainda que à brasileira) o regime político vigente no país. O lulopetismo foi um projeto neopopulista, tal como o foi o chavismo (na Venezuela) e os demais bolivarianismos (na Bolívia, no Equador, na Nicarágua), o lugoismo (no Paraguai), o funismo (em El Salvador), o kirchnerismo (na Argentina) e, em certa medida, o mujiquismo (no Uruguai). É claro que esses governos tinham muitas diferenças entre si. Mas no fundamental, todos, cada qual à sua maneira, foram (ou ainda são) animados pelo projeto do neopopulismo ou reproduziam um comportamento político neopopulista.

O bolivarianismo, na verdade, foi uma invenção de Fidel em conluio com Chávez (inserindo um quarto elemento nativo na tríade clássica Marx-Engels-Lenin: no caso de Cuba, Marti; no caso da Venezuela, Bolívar). Em termos políticos foi um meio de capturar a Venezuela para a área de influência da ditadura castrista (assim como já havia sido feito com a Nicarágua, onde o quarto elemento nativo foi Sandino). A matriz ideológica de seus operadores era, não há como negar (basta conversar cinco minutos com quaisquer de seus expoentes – de Maduro à Mujica, de Lugo à Funes – para atestar) o marxismo-leninismo, embora sua política, em especial no caso do Brasil, tenha sido orientada por um estranho pensamento estratégico que se poderia descrever como o resultado de uma mistura grossa de neomaquiavelismo com gramscismo.

O neopopulismo não se caracteriza apenas, como os velhos populismos, pela irresponsabilidade econômica (fiscal), pelo fato do governante gastar mais do que arrecada para manter um curral cativo de eleitores. No caso do Brasil (e, em certa medida, de outros países) ele se caracteriza pela existência de um regime democrático formal parasitado por uma força autoritária e manipuladora que usa a democracia – notadamente as eleições – contra a democracia com o fito de se delongar no poder por tempo indeterminado ou pelo tempo necessário para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido.

Claro que o Brasil nunca foi um país bolivariano, mas o comando do partido que dirigiu o governo do início de 2003 ao final de 2015 queria “bolivarianizar” o regime. Há isomorfismos à farta para corroborar essa hipótese, tanto nas propostas enunciadas ou urdidas pelos dirigentes, quanto nos comportamentos dos militantes petistas. Examinemos o que fez (ou tentou fazer) o PT.

1 – Comprou representantes eleitos, falsificando a correlação de forças emanada das urnas (como foi feito no mensalão).

2 – Montou estruturas ilegais de poder para nunca mais sair do governo, realizando ações que tentam enfrear o processo de democratização como (entre muitas outras):

a) praticar espionagem,

b) fabricar dossiês contra adversários,

c) patrocinar veículos de comunicação para difundir e replicar falsas versões,

d) alugar pessoas para escrever a favor do governo e detratar as oposições,

e) pagar agentes para ganhar ou recrutar e treinar militantes para os círculos do “Partido Interno” (a direção de facto do PT, sob o comando de Lula e Dirceu) e ameaçar ou neutralizar pessoas que se tornam obstáculos à consecução dos planos criminosos ou antidemocráticos.

3 – Aproveitou a corrupção endêmica no sistema político (ambiente favorável à prática de crimes comuns) para implantar uma estratégia de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido, executando ações (criminosas do ponto de vista político) que visavam:

a) estabelecer o controle partidário-governamental (disfarçado de social ou civil) dos meios de comunicação e da internet,

b) instaurar forças de segurança militarizadas (guardas nacionais) sob o controle do governo e não como entes de Estado,

c) instituir a partidocracia (voto em lista pré-ordenada, fidelidade partidária e financiamento exclusivamente estatal de campanhas),

d) criar novas instâncias participativas, dirigidas pelo partido do governo (via movimentos sociais que atuam como correias de transmissão partidária), para cercar a institucionalidade vigente e subordinar a dinâmica social à lógica do estado aparelhado,

e) promover alianças internacionais por meio de uma política externa ideológica, de alinhamento com regimes antidemocráticos, ditatoriais e protoditatoriais.

4 – Apoiou com recursos públicos nacionais (de origem lícita ou ilícita) regimes antidemocráticos (como Angola e Cuba) e financiou candidaturas de autocratas em outros países (como Venezuela e El Salvador) contra as sociedades democráticas desses países.

5 – Apoiou e se associou a organizações que tinham ou têm como propósito instalar ditaduras em outros países, seja pela via armada, seja pela via eleitoral (como as FARC, a Frente Farabundo Marti, a Frente Sandinista etc).

Tudo isso significa usar a democracia contra a democracia, vencendo eleições na base do vale-tudo a fim de obter um aval para não governar democraticamente. E tudo isso exigiu a montagem de uma espécie de Estado paralelo, financiado com recursos públicos desviados pelo maior esquema de corrupção sistêmica já visto em toda a história humana.

Ora, um partido que fez isso – e que não renegou, antes reafirmou e continua reafirmando o que pretendia – não poderá permitir jamais uma transição democrática que inviabilize a consecução de sua estratégia, mesmo estando fora do governo.

Enquanto o PT existir não haverá transição democrática. Alguns imaginam que estando fora do governo federal e tendo sido amplamente rejeitado pelas ruas e reprovado pelas urnas, o PT perdeu as condições de retomar o seu projeto neopopulista. Mas isso é um engano. E é um suicídio do ponto de vista da democracia.

Deixar funcionando uma organização criminosa, urdida para cometer crimes políticos contra a democracia, com centenas de agentes encrustados no aparelho de Estado e enraizados na sociedade – governadores, prefeitos, senadores, deputados e vereadores, servidores estatais, reitores e professores universitários e do ensino médio e fundamental, donos ou empregados de meios de comunicação, dirigentes sindicais, de movimentos sociais e ONGs, funcionários de organismos internacionais com sede no país, destacados representantes dos setores artísticos e culturais e criminal minds aboletadas em grandes e pequenas bancas de advocacia, para não falar de donos de grandes empresas (como as empreiteiras bandidas que assinaram acordos de conivência que as autoriza a permanecer estruturadas para delinquir) – é um verdadeiro suicídio político.

É suplicar para colocar em posição vulnerável o processo de democratização.

É pedir para ter problema. Sim, mais cedo ou mais tarde, sobrevirão problemas gravíssimos, mesmo que o PT permaneça fora do governo federal e da imensa maioria dos governos estaduais (e até de 90% das prefeituras).

Não se poderá refundar a República enquanto o PT – com esse contingente imenso de mandatários, funcionários, dirigentes e militantes – continuar tendo autorização legal para privatizar partidariamente a esfera pública, perverter a política e manter uma  imensa organização criminosa em atividade subterrânea.

Ao contrário do que imaginam tolamente os crentes nos mecanismos eleitorais de correção da democracia representativa, o PT não será desativado pelas urnas. Pode continuar 100 anos sem elas. Assim como a máfia não precisava das urnas para existir, o PT – a rigor e no limite – também não precisa. Enquanto tiver as universidades, sindicatos, ONGs, advogados… enfim, todo o contingente já nomeado acima, cujas posições são infensas aos resultados eleitorais, o PT prosseguirá. A vitória de Dória por ampla maioria no primeiro turno na cidade de São Paulo não abalou as convicções, nem deslocou em 1 milímetro sequer as posições, dos professores da USP; pelo contrário: armou-os ainda mais contra a democracia.

Se não fossem as ruas e a oposição popular que delas emergiu, mas apenas a oposição formal do PSDB, o PT continuaria eternamente no poder. Só alguém muito tolo – como um tucano – pode achar que o PT é um partido normal, um player válido da democracia. Não é. É uma organização criminosa internacional.

Quem ainda duvida deveria ler o artigo Cosa Nostra, de José Casado, em O Globo da última terça-feira, 27 de dezembro de 2016, com exemplos de “líderes políticos que se diziam revolucionários e que começam a ser expostos como sócios da rede internacional de corrupção mantida pela Odebrecht”. Vale a pena reproduzir o texto:

COSA NOSTRA

Por José Casado, O Globo, 27/12/2016

Na terça-feira 17 de janeiro começa o julgamento do ex-presidente de El Salvador Mauricio Funes. Acusado de corrupção, ele foi intimado na véspera do Natal na Nicarágua, onde vive em autoexílio. O processo inclui sua ex-mulher, Vanda, e um de seus filhos, Diego.

Funes chegou ao poder em 2009 pela Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, nascida da fusão de cinco organizações guerrilheiras que protagonizaram a guerra civil de El Salvador, no final do século passado.

Vanda Pignato, ex-primeira-dama, é brasileira, antiga militante do PT. Ela garantiu o apoio do governo Lula ao marido desde a campanha eleitoral, paga pelo grupo Odebrecht, cujos contratos somaram US$ 50 milhões no mandato de Funes.

Desde a semana passada, ele e outros 14 líderes políticos nas Américas e na África estão no centro das investigações em seus países sobre propinas pagas pela empreiteira brasileira.

É o caso do ex-presidente do Panamá Ricardo Martinelli, que embolsou um dólar para cada três que a Odebrecht lucrou durante seu governo. Guardou US$ 59 milhões.

Na vizinha República Dominicana quem está em apuros é o presidente Danilo Medina, reeleito em maio. No primeiro mandato, Medina fez contratos que proporcionaram à empreiteira lucros de US$ 163 milhões. Ela retribuiu com generosos US$ 92 milhões em subornos, o equivalente a 56% dos ganhos acumulados desde 2012. A taxa paga ao lado, na Guatemala, foi um pouco menor: 52%, isto é, US$ 18 milhões para US$ 34 milhões em contratos.

Em Quito, no Equador, a polícia apreendeu na sexta-feira arquivos eletrônicos na sede local da Odebrecht. Rafael Correa, no poder há nove anos, demonstra temor com a revelação de que a Odebrecht pagou US$ 35 milhões em subornos, 28% dos seus lucros equatorianos. Em 2008, Correa expulsou a empreiteira, acusando-a de corrupção. Acertaram-se, sob as bençãos de Lula em 2010.

Em Bogotá, Colômbia, investiga-se a rota da propina de US$ 11 milhões, pagos entre 2009 e 2014, no governo Álvaro Uribe. Rápido no gatilho, ele ontem se lembrou de uma reunião “suspeita” entre o atual presidente Juan Manuel dos Santos e diretores da Odebrecht no Panamá.

No Peru a confusão é grande: acusam-se os ex-presidentes Alejandro Toledo (2001-2006), Alan García (2006-2011), Ollanta Humala e a ex-primeira dama Nadine (2011-2016). Eles apontam para o atual presidente Pedro Pablo Kuczynski, primeiro-ministro na época em que a Odebrecht começou a distribuir US$ 29 milhões — 20% dos lucros no país em 11 anos.

Nada disso, porém, se compara aos lucros e ao propinoduto em Angola e Venezuela. As relações com os governos do angolano José Eduardo Santos e do venezuelano Hugo Chávez (sucedido por Nicolás Maduro) chegaram a proporcionar US$ 1 bilhão em lucros anuais. Sustentaram o caixa no exterior, estimado em US$ 500 milhões, voltado para pagamentos a políticos, principalmente brasileiros.

Capturados pelos bolsos, líderes que se apresentavam como revolucionários nos anos 80 começam a ser expostos como sócios de uma rede internacional de corrupção, operada a partir do Brasil pela Odebrecht. Fizeram da coisa pública uma cosa nostra.

Casado não explica – apenas relata. Como não tenta explicar, ele imagina que a Odebrecht seja a mantenedora da “rede internacional de corrupção”. Mas a Odebrecht era apenas uma das operadoras. Essa rede foi articulada pelos partidos de esquerda da América Latina e do Caribe, sobretudo pelo PT e pelo Foro de São Paulo, que foi fundado por iniciativa de Lula e Fidel em 1990. Foi uma resposta autocrática à queda do muro de Berlim, ocorrida no ano anterior.

Há que se reconhecer que a resposta foi engenhosa. Ela pode ser traduzida pela pergunta-conselho de Lula aos comandantes da FARC: “Por que vocês não depõem as armas e disputam as eleições?”. Ou seja, por que vocês não agem com mais inteligência e viram uma espécie de PT colombiano para poder aplicar a estratégia neopopulista de usar as eleições contra a democracia? Atenção! A proposta não era abandonar o crime, nem dissolver a organização criminosa e sim a de atuar por outras vias, mantendo – e até fortalecendo – a organização criminosa. Pelo visto, as FARC, embora tardiamente, aceitaram a diretriz lulopetista, com a ajuda providencial dos ditadores cubanos, aproveitando-se da pusilanimidade do governo de Juan Manuel Santos, louco por holofotes (contra a opinião pública colombiana, registre-se).

Quando se descobrirem as contas no exterior em nome de laranjas e de offshores (inclusive as abertas pela Odebrecht, mas inconfessadas nas dezenas de delações industriadas de seus donos e executivos) se poderá fazer uma ideia melhor da dimensão dessa organização criminosa internacional que é o PT. E aí, talvez, alguns finalmente compreendam a ameaça à democracia que representa a existência desse partido, ao perceberem que ele tem combustível suficiente para continuar rodando por muito tempo, a despeito de resultados eleitorais desfavoráveis na próxima década e mesmo que Lula, se antecipando à condenação judicial, venha a se exilar em outro país.

Seria fundamental, para a democracia, não permitir isso. A principal tarefa da transição democrática seria impedir, por todos os meios legais, que o PT se salve agora para retomar mais adiante o seu projeto. Para tanto, o processo de desaparelhamento do Estado precisaria continuar (apenas começou: até no comando de Furnas remanesce um agente petista). Seria preciso cortar todas as fontes de financiamento público e privado que ainda estão funcionando (entre outras coisas identificando as contas fantasmas no Brasil e no exterior e sequestrando seus recursos). Seria preciso, enfim, não permitir que Lula se candidate à presidência, homiziando-se prematuramente no palanque de 2018.

As medidas de longo prazo demandarão o tempo de mais de uma geração, pois têm a ver com o desenraizamento do PT da sociedade. No curto prazo, porém, a prisão de Lula e a extinção do registro partidário do PT são medidas necessárias – conquanto não suficientes – para concluir a transição democrática no Brasil. Sem isso, a transição ficará incompleta.

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