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A visão de democracia da força-tarefa da Lava Jato (3)

Quanto mais os procuradores da força-tarefa da Lava Jato de Curitiba – em especial Deltan Dallagnol e Carlos Fernando – escrevem, mais fica clara sua concepção salvacionista e sua visão pedestre de democracia. Sim, como já mostramos em dois artigos, intitulados A visão de democracia da força-tarefa da Lava Jato, (1) e (2), eles estão no limite do analfabetismo democrático. Em outro artigo, Quem quer matar a Lava Jato, também comentamos uma nota tipo chantagem de Deltan, escrita para constranger o STF, na qual ele ameaçava o tribunal dizendo que ou se aprova toda a escandalosa armação Janot-Fachin, ou seria o fim da delação premiada e da operação como um todo.

Agora Carlos Fernando comete novamente, no seu mural do Facebook, uma resposta ao excelente artigo de Demétrio Magnoli, publicado ontem (24/06/2017), na Folha de São Paulo, que também foi comentado no artigo Pouco a pouco, os analistas políticos vão acordando.

Vale a pena ler os artigos linkados acima antes de analisar a nota de Carlos Fernando, reproduzida abaixo:

A voz da verdade que ressoa nos corações corrompidos se parece com os sons que retumbam nos sepulcros sem despertar os mortos. (Georges Jacques Danton – advogado e um dos líderes da Revolução Francesa)

A única motivação que encontro nesse artigo de Demétrio Magnólia (sic) é amedrontar as pessoas com ameaças sobre o caos que virá se não nos contentarmos com o pouco, com as migalhas de mudança que foram conseguidas até agora. Os argumentos de Magnoli têm os mesmos pais daqueles que tentam amedrontar a população com o caos econômico, e são primos daqueles que atemorizam os trabalhadores com supostos prejuízos de uma reforma na legislação trabalhista. Direita e Esquerda nos querem reféns igualmente. Querem que tenhamos medo da liberdade. Querem que acreditemos que somente eles podem nos salvar. Para isso só querem que cedamos nosso suor e sangue para mantermos a indecorosa festa desses vampiros.

Liberdade sempre assusta, mas o destino está nas nossas mãos. Para honrar o espírito da Revolução Francesa, lembramos que apesar do Termidor, os seus ideais prevaleceram e são hoje o coração de todo o mundo político ocidental.

Carlos Fernando dos Santos Lima – cidadão

As alegações do procurador são injustas e falsas. A motivação do autor (que ele, Carlos Fernando, reputa como única) não é “amedrontar as pessoas” e sim chamar a atenção para os métodos que estão sendo utilizados. Os argumentos de Magnoli não “têm os mesmos pais daqueles que tentam amedrontar a população com o caos econômico” (não há uma linha sobre isso, nem no artigo em tela, nem em qualquer publicação anterior do autor) e nem “são primos daqueles que atemorizam os trabalhadores com supostos prejuízos de uma reforma na legislação trabalhista” (onde ele leu isso?). A defesa (na verdade, ataque) de Carlos Fernando não se justifica. Na nota reproduzida acima ele não está discutindo com Demétrio Magnoli e sim tentando enquadrar o autor em uma das frentes que atacam a Lava Jato, à direita ou à esquerda (o que não se aplica ao artigo). O ataque, portanto, é gratuito.

Em seguida Carlos Fernando vem com duas alegações genéricas. Na primeira ele diz: “Querem que tenhamos medo da liberdade”. Ora, quem quer? E o que a liberdade tem a ver com isso? Por acaso caracterizar a ação de alguns procuradores (sobretudo o PGR, Rodrigo Janot) de estarem adotando procedimentos jacobinos, restringe a liberdade de quem? Não há mais liberdade de crítica? Todo reparo que se possa fazer à atuação dos procuradores é um ataque à liberdade?

Na segunda, ele – Carlos Fernando – diz: “Querem que acreditemos que somente eles podem nos salvar”. De novo cabe a pergunta: quem quer? Demétrio Magnoli por acaso se apresentou como salvador de qualquer coisa? Ou criticou, justamente, os que se apresentam como salvadores (os que se deixaram embalar “pela fantasia de que corporificam um Comitê de Salvação Pública”)?

A frase “querem que acreditemos que somente eles podem nos salvar” confirma pelo avesso o juízo de Magnoli: é como se o procurador estivesse dizendo, de maneira oblíqua, que somos nós – os cruzados do bem engajados na verdadeira campanha contra toda a corrupção – que podemos salvar alguma coisa. Salvar! Eis a palavra-chave.

Carlos Fernando termina sua nota com um parágrafo estranho:

“Liberdade sempre assusta, mas o destino está nas nossas mãos. Para honrar o espírito da Revolução Francesa, lembramos que apesar do Termidor, os seus ideais prevaleceram e são hoje o coração de todo o mundo político ocidental”.

Eis aí uma cabeça que não foi violada pela ideia de democracia. Ora, isso só confirma que Magnoli escolheu bem a comparação histórica. Eles – os procuradores salvacionistas – se acham mesmo missionários jacobinos (“o destino está em nossas mãos”). Os jacobinos, como se sabe, eram estatistas, assim como seus sucessores em linha direta: os bolcheviques. Ambos queriam usar o Estado para promover a mudança social que limparia o velho mundo por meio de grandes vassouradas.

É preciso informar a Carlos Fernando e aos seus pares que a democracia não foi reinventada na chamada revolução francesa e sim, mais de um século antes, na resistência à tirania de Carlos I na Inglaterra. E que não foram as ações de cortar cabeças que “são hoje o coração de todo o mundo político ocidental” e sim a vontade de viver sem um senhor, que está enraizada nos Bill of Rights do parlamento inglês na resistência ao poder despótico de Carlos I (o primeiro deles ainda em 1625). Sim, a democracia é, geneticamente, um processo de desconstituição de autocracia: foi assim com os democratas atenienses que resistiram à tirania dos psistrátidas, na passagem do século 6 para o século 5 AEC e foi assim quando os modernos reinventaram a democracia no século 17 na Inglaterra.

Os democratas atenienses e os membros do parlamento inglês não eram livres de toda corrupção. A democracia não é o regime sem corrupção e sim o regime sem um senhor (por certo os procuradores da Lava Jato não tiveram tempo nem de ler Os Persas, de Esquilo (472 AEC), onde aparece, pela primeira vez de forma escrita, o genos da democracia: referindo-se aos atenienses, em resposta à Atossa (viúva de Dario), ele escreve: “não são escravos nem súditos de ninguém”).

Se Carlos Fernando vivesse no século 5 antes de Cristo, em Atenas, Péricles, o principal expoente da democracia nascente, não escaparia da sua sanha persecutória, posto que ele foi acusado várias vezes de quebra de decoro e prevaricação (casou com uma mulher estrangeira, tida por prostituta, Aspásia, que não podia interferir como o fez na vida da Polis – que não era a cidade-Estado, como se julga e sim a koinonia política), corrupção (desvio de dinheiro de obras públicas, como o Partenon) e nepotismo (nomeou um filho ilegítimo para um cargo público). Um Comitê de Salvação Pública na Atenas daquela época, varreria tudo em nome da limpeza, inclusive a democracia.

Os democratas atenienses não eram estatistas, não eram um corpo meritocrático querendo limpar a sociedade. A democracia tem uma raiz social, nasce das livres conversações na praça do mercado, não nos gabinetes de burocratas constituídos como um enclave estatal, que – a partir desse lugar – quisessem propor ao povo uma cruzada para limpar a cidade.

Os jovens procuradores têm muito que aprender sobre democracia. Mas eles não têm – ao que tudo indica – a necessária humildade para tanto. Infelizmente, eles parecem possuídos por um espírito vingador, como se fossem “agentes kármicos” que estão chegando para punir os maus e recompensar os bons. Os bons, é claro, são os que estão do seu lado, enquanto que os maus são todos aqueles que ousam criticar seu comportamento e suas concepções.

Ora, os democratas não reconhecemos nenhum Comitê de Salvação Pública. Sobretudo um comitê eleito por ninguém, mas aprovado por concurso estatal, como se o saber específico de alguma matéria jurídica, política, sociológica, histórica ou antropológica, conferisse a alguém (a algum ator organizado corporativamente: sim, o MP é uma corporação) poderes regulatórios aumentativos em relação aos demais. Isto é, não há como negar, um enclave autocrático na democracia dos modernos (a democracia realmente existente hoje, nos países que a adotam), pois a matéria prima da democracia é a opinião (doxa), não o saber (seja techné ou episteme). Rigorosamente falando, eles são funcionários do Estado que cumprem uma função no establishment, aceitável no arranjo institucional dos poderes vigente (embora nunca se saiba bem que Poder da República realmente são: se judiciário ou executivo); mas não, stricto sensu, não nos representam.

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