Egolatria, preconceito, ressentimento e besteira
No artigo Um surto reacionário na política brasileira tratei do papel de pessoas que estão instrumentalizando o sentimento generalizado da população, de revolta com o PT e com a esquerda e de indignação com a corrupção, para se afirmar como líderes, condutores ou mestres (como é o caso de Olavo de Carvalho), ou apenas para fazer carreira, se eleger e eleger seus parentes para qualquer posto no Estado (como é o caso da famiglia Bolsonaro).
Observei também que o caso de Olavo é bem mais grave do que o do capitão boçal e oportunista Bolsonaro, pois se trata de alguém querendo reeditar e espalhar uma visão retrógrada, baseada na reafirmação das ideias-implante da civilização patriarcal: ordem, hierarquia, disciplina, obediência, comando-e-controle e fidelidade impostas top down. E é bem fácil mostrar isso, a partir dos livros, textos e notas que ele mesmo publica diariamente.
Mas não vale a pena empreender um esforço exegético na opera omnia de Olavo de Carvalho. Este é um velho truque que ele utiliza quando é criticado: alega que só podem fazer observações sobre o seu pensamento os que leram tudo que ele escreveu. E sua obra não merece tal dedicação, antes de tudo porque é pouco relevante como ciência ou filosofia. É um blá-blá-blá produzido por uma pessoa pouco inteligente. Não se pode confundir inteligência com erudição livresca. Uma pessoa pode ter lido uma biblioteca inteira ou mesmo ter escrito dezenas de livros e continuar burra, do ponto de vista da inteligência tipicamente humana, que é criativa. Não há uma miserável ideia original, nenhum laivo de criatividade, nos escritos de Olavo.
Olavo é um codificador de doutrina, que escreve meio que para se vingar das rejeições que sofreu e ao mesmo tempo para forjar uma persona de perseguido. Algum ressentimento recende de seus escritos, mas também algum cálculo marqueteiro. Quer se vender como uma espécie de gênio incompreendido ou maltratado pelo ciúme e pela inveja de intelectuais menores.
Basta, para quem captou o núcleo do seu pensamento repetitivo, recolher aqui e ali exemplos dos seus preconceitos. E isso nem precisa ser feito de modo sistemático. Pode-se colher ao acaso, nos posts de sua página do Facebook, pérolas de um pensamento que, por justiça com escritores como Michael Oakeshott, Roger Scruton, Theodore Dalrymple, John Gray, Gertrude Himmelfarb, Thomas Sowell, Phyllis Schafler e tantos outros, não deve ser chamado sequer de conservador ou de liberal-conservador. Não. É um pensamento retrógrado mesmo, ou melhor, retrogradador.
Não carece de seleção. Qualquer critério serve para coletar tais exemplos. Vamos adotar o critério ‘último decanato de agosto de 2017’ (e a palavra decanato não deve ser estranha ao autor). Vejam a seguinte sequência de posts:
Sim, não há ordem alguma na seleção desses posts de Olavo. E não há porque não precisa. Fosse qual fosse o critério, qualquer seleção só revelaria a mesma coisa: egolatria, preconceito, ressentimento e besteira.
Vejamos. Sem ele, Olavo, não haveria a direita brasileira. Seus alunos (e mais ninguém) são a única esperança. Adultos não devem brincar com crianças (mas montar guarda sobre elas). Mulheres devem subordinar seus desejos pessoais aos dos maridos que as sustentam. A natureza (ele quer se referir à espécies de um reino de seres vivos: animalia) é machista.
Assim, ele teria sido o único jornalista brasileiro realmente perseguido pela grande imprensa, que não lhe deu lugar de destaque nas páginas nobres dos jornais impressos (ou, quem sabe, algum programa de TV). Ele também teria sido perseguido pela academia que, na sua mediocridade, não suportou aceitar alguém com tanto talento.
Deve haver, porém, um sentimento de rejeição maior, talvez a única verdadeira: por que ele não está entre os dirigentes das castas sacerdotais, pelos verdadeiros hierarcas da tradição esotérica à qual queria pertencer (sim, ele acredita que a hierarquia é social, que a sociedade é e sempre foi uma sociedade de castas)? Será que ele também teria sido rejeitado (ou nem sequer notado) pelas sociedades e fraternidades onde – segundo suas próprias crenças – alguns atores políticos ocultos planejam os destinos das nações? Se sim, isso talvez explique muita coisa: uma vez excluído desses sodalícios, não lhe coube senão espalhar uma vulgata oposta: a da grande conspiração contra a civilização judaico-cristã que estaria sendo financiada pela vanguarda do capitalismo, por George Soros, os Clinton e Obama, o clube de Bilderberg (ou a Trilateral) e, quem sabe, pelos Illuminati em conluio (paradoxalmente) com a esquerda internacional.
Tudo isso parece, é claro, uma maluquice, mas não na cabeça de um maluco: quem ministra cursos sobre o papel do esoterismo na história é Olavo de Carvalho, não o autor deste texto. Não nego que existam organizações que tenham a pretensão de influenciar os destinos das nações e a política no plano mundial. Não nego que haja sabedoria em muitas ordens esotéricas e iniciáticas da chamada tradição. O que afirmo é que sabedoria não tem a ver necessariamente com democracia e que essa tal tradição é apenas uma trajetória construída pela repetição de matrizes (ideias-implante) da cultura patriarcal. Mas não deixa de ser irônico que seja eu, um navegador outsider, um desqualificado neo-sofista, hehe, que agora venha dizer isso a alguém que pensa que sabe, mas que na verdade não sabe exatamente o que está falando.
Você gosta de hierarquia? Então abaixe a cabeça, filho da mãe. Mas o pior para quem quer obedecer é não encontrar alguém a quem obedecer… Eu desobedeço.
Por que perco tempo com tudo isso? Porque não superestimo, mas também não subestimo o papel de pessoas como Olavo. Codificadores de doutrinas – por mais inconsistentes e retrógradas que sejam suas formulações – são sempre perigosos para a democracia. Sobretudo quando militam abertamente contra a democracia.
Não, não estou inventando nada para detratar o professor que – segundo seus seguidores – sempre “tem razão”. Vejam o que ele publicou no final de maio deste ano, na sua página no Facebook:
Ora, se não há democracia no céu, a utopia dos religiosos, por que deveria haver na terra? Faria sentido qualquer esforço para praticar modos democráticos de regulação de conflitos se, no mundo perfeito e bom, planejado por nosso senhor, eles não são adotados? Sim, e ele ainda afirma – pasme-se – que uma monarquia absoluta (note-se bem: absoluta, desde que o senhor seja bom) é preferível a uma democracia (operada por pessoas más, ou seja, pelas pessoas realmente existentes, que não são anjos, com todas as suas falhas). Ora, a democracia não é um regime angélico, não é um regime de santos, não é um regime sem criminosos e sem corrupção e sim o regime sem um senhor. Como escreveu Ésquilo (472 a. E. C.), em Os Persas, referindo-se aos atenienses da sua época (no primeiro registro escrito sobre a democracia): “Não são súditos, nem escravos de ninguém”, ou seja, não tinham um senhor.
O que deve nos alarmar não é que um autocrata religioso tenha dito isto (hierarcas como Josemaría Escrivá de Balaguer, fundador da Opus Dei, também disseram) e sim que quase três mil pessoas tenham tido a coragem de curtir tal perversão. Imaginem o grau de impregnação ideológica autocrática – ou de analfabetismo democrático – necessário para tanto.
Não há nenhum anti-olavismo aqui, porquanto Olavo não pode ser referência para nada. É apenas mais um falsário intelectual (e talvez espiritual), querendo fundar uma “filosofologia”, uma espécie de cientologia, baseada no atulhamento das cabeças alheias com conteúdos de leitura filosófica escolhida (por ele), até que essas cabeças fiquem tão cheias que não consigam mais aprender (quer dizer, não apreender o mundo e sim mudar com o mundo). Como disse Jiddu Krishnamurti (1964) – em A mente sem medo – “o homem que está carregado de conhecimentos, de instrução, que está curvado sob o peso das coisas que aprendeu [no sentido de apreendeu], nunca é livre. Poderá ser um homem altamente erudito, mas sua acumulação de conhecimentos o impede de ser livre, e, por conseguinte, ele é incapaz de aprender”.
Olavo não pode ser superestimado, mas deve ser criticado pelos democratas porque é mais um colonizador de consciências – na verdade, um dementador – que contribui para tornar as pessoas menos livres.
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