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Apostando na inovação democrática

“A crise que há cento e cinquenta anos clamava por inventividade social e política está conosco em uma forma que apresenta uma forte demanda por criatividade humana. Em todo caso, isso é o que tenho em mente quando digo que temos agora que recriar através de um empenho deliberado e determinado o tipo de democracia que em sua origem há cento e cinqüenta anos era em grande parte produto de uma combinação afortunada de homens e circunstâncias. Vivemos por um longo tempo com o legado que chegou até nós a partir da feliz conjunção de homens e eventos numa época mais antiga. O atual estado do mundo é mais do que um lembrete que temos agora de pôr em ação toda a energia que possuímos para nos provarmos dignos de nosso legado. É um desafio fazer com as condições críticas e complexas de hoje o que os homens de outrora fizeram com condições mais simples. Se enfatizo que a tarefa pode ser cumprida somente por esforço inventivo e atividade criativa, é em parte porque a profundidade da crise atual deve-se em parte considerável ao fato de que por um longo período agimos como se nossa democracia fosse algo que se perpetuasse automaticamente; como se nossos ancestrais tivessem sido bem-sucedidos em instalar uma máquina que resolvia o problema do movimento perpétuo na política…

A democracia, comparada com outros modos de vida, é o único modo de vida que acredita sinceramente no processo de experiência como fim e como meio; como aquilo que é capaz de gerar a ciência que é a única autoridade confiável para a condução de uma experiência maior que libera emoções, necessidades e desejos de modo a tornar existentes coisas que não existiram no passado. Pois todo modo de vida que falha em sua democracia limita os contatos, as trocas, as comunicações, as interações pelas quais a experiência é firmada enquanto é também ampliada e enriquecida. A tarefa dessa liberação e enriquecimento é uma tarefa que precisa ser realizada dia a dia. Visto que se trata de uma tarefa que não pode terminar até que a própria experiência termine, a tarefa da democracia será sempre criar uma experiência mais livre e mais humana na qual todos compartilham e para a qual todos contribuem”.

John Dewey (1939) em “Democracia criativa: a tarefa diante de nós” (*).

A democracia foi a maior inovação social (sim, social, não apenas política) já surgida na história. No entanto, nem todos que aceitam a democracia e convivem bem com ela são inovadores.

No artigo Uma classificação dos liberais (e dos i-liberais) na atualidade, dissemos que democratas inovadores, ainda que defendam as instituições da democracia que temos e queiram conservá-las, apostam, fundamentalmente, na continuidade do processo de democratização. Dissemos também que os democratas inovadores sempre foram minoria e que seu papel precípuo não é o de virar maioria (fermento não é massa) e sim o de ser agentes fermentadores da formação de uma opinião pública democrática que apostem na continuidade do processo de democratização do Estado, da sociedade e do padrão de relação Estado-sociedade.

Claro que os democratas inovadores não são os únicos agentes democráticos, ou seja, os únicos liberais-políticos. Temos ainda, entre os liberais-políticos, os democratas formais e os democratas conservadores (também chamados de liberais-conservadores).

É bom não confundir liberais-políticos com liberais-econômicos. Do ponto de vista da democracia é preferível um liberal-conservador (quer dizer, um liberal-político de direita que preza a democracia como um valor universal) do que um liberal-econômico (que acha que tanto faz viver sob uma democracia ou sob um regime i-liberal desde que possa aplicar suas fórmulas econômicas). As crenças do liberalismo-econômico atrasaram, em pelo menos dois séculos, nosso entendimento do valor universal da democracia.

A palavra liberal – no sentido estritamente político do termo – designa aqueles que tomam a liberdade como sentido da política (o que não abarca todos os conservadores, posto que alguns acham que a ordem é o sentido da política, mas apenas os liberais-conservadores).

Não é difícil identificar liberais-políticos inovadores, ou seja, democratas radicais. Basta ver em que medida uma pessoa concorda ou discorda (total ou parcialmente) de afirmações como as que seguem, por exemplo, na lista abaixo:

01 – Que a democracia é “natural” ou um estado “normal” do mundo;

02 – Que a democracia é sinônimo de regime eleitoral;

03 – Que a democracia é a prevalência da vontade da maioria;

04 – Que o objetivo da democracia é dar “casa, comida e roupa lavada” para o povo (ou para os pobres) ou melhorar a qualidade de vida e o bem-estar material das populações;

05 – Que a democracia vai automaticamente junto com a sociedade de mercado ou com o capitalismo (e que modernização é incompatível com autoritarismo);

06 – Que a democracia é uma utopia ou um modelo de sociedade ideal;

07 – Que a democracia é a utopia da política (e não o contrário);

08 – Que a democracia é mais um tipo de doutrina ou ideologia;

09 – Que a democracia, em razão das diferentes culturais existentes, não pode ser um valor universal (mas, no máximo, apenas ocidental);

10 – Que democracia é o poder do povo ou o poder da maioria da população;

11 – Que a democracia é a escolha dos mais capazes e que estes são os que têm mais conhecimentos;

12 – Que a democracia se reduz à manutenção ou conservação de um Estado de direito;

13 – Que a democracia é o regime sem corrupção ou que a corrupção é capaz de acabar com a democracia;

14 – Que um senhor honesto, mesmo que não adote a democracia, apoiado pela maioria do seu povo e dedicado ao seu bem-estar, pode ser melhor do que chefes de governos democraticamente eleitos, porém manietados por parlamentos cheios de políticos fisiológicos ou corruptos;

15 – Que uma democracia verdadeira (ou para valer) só triunfará quando a maioria da população for composta por agentes democráticos convictos;

16 – Que a democracia pode ser alcançada por meios não-democráticos (como a guerra: quente, fria ou política como continuação da guerra por outros meios) ou que é possível tomar um atalho autocrático para uma sociedade democrática;

17 – Que existem sociedades que ainda não estão preparadas para a democracia (e que devem, primeiro, adquirir níveis maiores de bem-estar, educação, prosperidade ou abundância para depois pensar na democracia);

18 – Que muitas vezes é preciso sacrificar a liberdade presente para alcançar a verdadeira (ou a plena) liberdade no futuro (um reino da liberdade);

19 – Que a democracia é um artifício para eliminar os conflitos e chegar a algum tipo de harmonia social;

20 – Que coletividades humanas não podem se auto-conduzir ou se auto-organizar a partir da livre interação das opiniões de seus integrantes;

21 – Que o sentido da política é a ordem e não a liberdade;

22 – Que a igualdade é uma pré-condição para a liberdade (ou que a igualdade sócio-econômica é o mesmo que a igualdade política);

23 – Que a política (democrática) é apenas um modo político de administração do Estado e que ela não se aplica às outras atividades e organizações humanas (como um modo-de-vida ou de convivência social);

24 – Que a democracia é necessária para alcançarmos qualquer objetivo extra-político.

Lamentavelmente, a maioria das pessoas, mesmo entre as que se dizem favoráveis à democracia, acaba concordando com uma (ou várias) das afirmações acima. Mas qual é mesmo o problema?

O problema é que enquanto as pessoas continuarem concordando com ideias como essas elas terão dificuldade de agir como agentes fermentadores da formação de uma opinião pública democrática e, pior, não contribuirão para caminhar da democracia que temos em direção às democracias que queremos (isto é o que significa apostar na continuidade do processo de democratização e não apenas defender e conservar um modelo, uma forma particular de governança).

Tal constatação justifica o surgimento de iniciativas, mais robustas e sistemáticas, voltadas à aprendizagem democrática que tenham como referência a inovação política e social.

Nos posts seguintes desta série vamos comentar cada uma das afirmações acima.


Uma nota sobre inovação democrática

Democratas inovadores, como liberais que são no sentido político do termo, também são, por definição, anti-estatistas (tomando o estatismo também no sentido político do termo e não apenas no seu sentido econômico). Além de repisar os temas óbvios: livre mercado, redução da participação do Estado na economia, reformas, responsabilidade fiscal, corte de impostos e privatização – que deveriam constar da pauta obrigatória de qualquer liberal (não exclusivamente dos liberais-políticos), os democratas inovadores estão preocupados, principalmente, com a defesa da democracia e com a continuidade do processo de democratização (da sociedade, do Estado e do padrão de relação Estado-sociedade). Por causa disso estão focados em uma série de temas inovadores que ainda não entraram na pauta dos demais liberais como, por exemplo:

a crise e os limites da democracia representativa e a experimentação de novas formas mais interativas de democracia numa emergente sociedade-em-rede;

o federalismo e a crise do Estado-nação;

a superação da contraposição localismo não-cosmopolita (tipo America First) x globalismo e a realidade emergente da glocalização;

a superação da contraposição estiolante monoculturalismo x multiculturalismo: rumo à inevitável (e desejável) miscigenação cultural;

a inadequação da classificação e da divisão das forças políticas em esquerda x direita; e

o envelhecimento da divisão entre visões mercadocêntricas e estadocêntricas do mundo: a sociedade como forma autônoma (subsistente por si mesma) de agenciamento, além (ou ao lado) do mercado e do Estado.

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(*) Democracia criativa: a tarefa diante de nós (1939). Publicado inicialmente em John Dewey and the Promise of America, Progressive Education Booklet n° 14 (Columbus, Ohio: American Education Press, 1939), pp. 12-17, de um discurso lido por Horace M. Kallen no jantar de homenagem a Dewey em Nova Iorque em 20 de outubro de 1939. Cf. Hickman, Larry A. & Alexander, Thomas. The Essential Dewey, vol. 1: Pragmatism, Education, Democracy. Bloomington: Indiana University Press, 1998: pp. 340-343. A menção, contida no livro acima, à obra de Dewey [LW 14: 224-30] se refere ao volume e às páginas das Later Works: 1925-1953 in Boydston, Jo Ann (ed.). The Collected Works of John Dewey, 1882-1953. Carbondale and Edwardsville: Southern Illinois University Press, 1969-1991.

Uma classificação dos liberais (e dos i-liberais) na atualidade

Uma iniciativa de aprendizagem da democracia voltada para a inovação