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Aproveitando as eleições de 2020 para impulsionar a democracia local

As eleições de 2020 para prefeitos e vereadores podem ser mais importantes do que pensamos.

Dependendo de quem for eleito, poderemos abrir, em vários municípios, espaços comunitários de democracia como modo-de-vida, articulando redes de desenvolvimento local e configurando ambientes favoráveis à inovação social que resistam, na prática, ao avanço de ideias e práticas autoritárias na sociedade. E isso sem entrar na luta política polarizada e na guerra cultural ou ideológica travada pelos populismos que querem hegemonizar o debate público.

Ademais, essas são oportunidades excelentes de aprendizagem da democracia, de formação de novos democratas (e, como se sabe, não existe democracia sem democratas). A democracia é – geneticamente – uma invenção local, comunitária: a polis ateniense dos séculos 5 e 4 a.C. não era a cidade-Estado e sim a koinonia (comunidade) política.

Queremos dizer com isso que os democratas não devemos “nacionalizar” a disputa municipal, entrando num embate entre lulopetismo e bolsonarismo. Claro que devemos priorizar e apoiar candidatos que tomem a democracia como valor universal e como principal valor da vida pública. Mas o fundamental agora é criar zonas mais autônomas de convivência social livres de guerra, fair play areas onde as pessoas possam melhorar suas vidas do seu modo, tornando mais colaborativos seus padrões de convivência social e, assim, impulsionando o desenvolvimento de suas comunidades.

Prefeitos e vereadores sintonizados com esses objetivos de desenvolvimento humano e social sustentável, por meio de processos de rede nas suas localidades, podem ajudar bastante se estiverem dispostos a se empenhar na celebração de pactos pela democracia local.

Existe uma pauta imensa de empreendimentos governamentais, sociais e empresariais que podem ser feitos por iniciativa local e que não fiquem eternamente dependendo de verbas públicas, estaduais e federais.

No Capítulo 5, intitulado A inovação social, do livro O lugar mais desenvolvido do mundo, publicado em 2004 – uma espécie de manual para multiplicadores de processos de desenvolvimento local baseados em investimento em capital social – há várias sugestões do que pode ser feito localmente. Claro que, 15 anos depois, muitas coisas devem ser adaptadas. Mesmo assim, republicamos abaixo alguns excertos.

A inovação social

Introdução

Andando com as próprias pernas deveria ser o nome deste capítulo. Andar com as próprias pernas é uma expressão que resume, pelo menos em parte, o que queremos dizer com a palavra ‘sustentabilidade’. Por isso dizemos que o agente de desenvolvimento… deve ter como horizonte ideal a seguinte situação: a comunidade seguindo com suas próprias pernas o mapa do caminho e inventando novos passos rumo ao futuro desejado.

Se o agente for externo à localidade, ele deve abandonar a comunidade em algum momento. Aplicar uma metodologia participativa é uma coisa muito diferente de ficar conduzindo os outros pela mão o tempo todo… é um “remédio” que só começa mesmo a fazer efeito quando se deixa de tomá-lo.

Se o agente for interno à localidade, é mais ou menos a mesma coisa. Ele não pode ficar o tempo todo querendo conduzir sozinho a comunidade. Outros agentes, outras lideranças, outras iniciativas devem aparecer. Se não aparecerem depois de três, no máximo cinco anos, é sinal de que há alguma coisa errada.

Na verdade, as metodologias de indução ao desenvolvimento local aplicadas pelos agentes de desenvolvimento existem apenas como guias, como orientações. E, seja qual for a metodologia adotada, ela deve ser reinventada pelo agente de desenvolvimento em interação com a comunidade. Assim, a rigor, em cada lugar a metodologia será diferente.

Isso significa que um agente de desenvolvimento não é um papagaio, que fica repetindo o que leu ou o que aprendeu em algum curso de capacitação. Uma pessoa só poderá ser um agente de desenvolvimento se souber inventar, se souber dar respostas novas para as situações, quase sempre inéditas, que terá que enfrentar em um trabalho concreto.

Mesmo assim, o agente deve ser, antes de qualquer coisa, um multiplicador de novos agentes.

Neste último capítulo vamos apresentar algumas sugestões para esses novos agentes, surgidos no trabalho concreto da comunidade. São coisas factíveis, que podem ser realizadas por uma comunidade. Todas elas, entretanto, deverão ser reinventadas. Tal trabalho de reinvenção deve ser feito com a participação do maior número possível de pessoas da comunidade.

É preciso considerar que desenvolvimento é sempre inovação. No caso do desenvolvimento local, a “fórmula” seria a seguinte: ‘comunidade + rede + inovação = desenvolvimento’.

Inovação é, muitas vezes, algo surpreendente. Portanto, o leitor não deve se assustar com o que verá nas próximas sessões, que contêm muitas provocações, estímulos ao pensamento e à prática que saem um pouco fora do que é considerado normal.

Comunidade de bem-estar social

Já se falou muito do Estado de Bem-estar Social, uma experiência que floresceu em alguns países do chamado Primeiro Mundo depois da Segunda Grande Guerra. Numerosos países (como o Brasil, por exemplo) jamais conseguiram ter essa experiência de Welfare State.

Atingidos por uma crise fiscal e por outras dimensões da crise do Estado-nação, muitos países, ricos inclusive, tiveram dificuldades de atingir ou manter o tal Estado de bem-estar. Nos anos 90, no Brasil e em outras nações, surgiu a ideia de trabalhar para uma “sociedade de bem-estar social” a ser construída, entre outras coisas, por meio de uma rede de proteção social.

A ideia é interessante, mas dificilmente poderá alavancar a quantidade de recursos suficiente para atender à crescente demanda das necessidades sociais somente a partir do protagonismo estatal. É necessário que dessa rede participem muitos outros atores, pertencentes a outras formas de agenciamento, como as empresas e as organizações da sociedade civil. Mesmo nesse caso, será ainda muito difícil fazer isso funcionar sem mobilizar os atores não estatais para participar e contribuir com o processo. As empresas, as organizações da sociedade e os indivíduos não se mobilizam para aportar recursos de uma maneira genérica, a não ser em certos momentos e para certos eventos (como campanhas, por exemplo). Não se pode imaginar um sistema estável baseado em uma ação com tais características, descontinuada, intermitente.

A única maneira viável de somar recursos do Estado, do mercado e da sociedade civil de modo mais permanente, com alguma perspectiva de sustentabilidade, é enfocando o âmbito sócio-territorial a que pertencem esses governos, essas empresas e essas organizações da sociedade civil; ou seja, no âmbito local. Assim, uma comunidade de projeto que se forme em função de um processo de desenvolvimento local tem de fato condições de montar um sistema de seguridade social no seu âmbito. Teríamos, neste caso, uma comunidade de bem-estar social (ou melhor, miríades de Welfare Communities ao invés de um único Welfare State).

Isso, por certo, não resolve o problema de um sistema de proteção social capaz de abranger todas as localidades de um país. O Estado continua com a responsabilidade de prover políticas públicas universais nas áreas de educação, de saúde, de segurança alimentar e nutricional etc. Isso pode, porém, ajudar a resolver o problema daquela comunidade que resolveu assumir essa responsabilidade.

O caminho aqui é realizar em um lugar. Pode parecer muito pouco. Mas é melhor, convenhamos, do que não realizar em lugar algum. Muita gente pode pensar que isso não é relevante porque um país tem milhares de localidades. Mas quem pensa assim não entendeu nada do desenvolvimento local, o qual se realiza sempre por meio desse caminho: sempre visando a um lugar.

Sim, o caminho para a transformação do todo passa pelo um. E não porque se trate de uma estratégia cumulativa, que vise cobrir o universo inteiro de um país (ou do mundo) a partir da ação em cada localidade. E sim porque, na medida em que existam conexões e caminhos entre as localidades, uma mudança de comportamento diante de um problema ou oportunidade realizada em uma localidade tem a capacidade de contagiar outras localidades. Desde que exista a possibilidade de conexão local-global, o local conectado é o mundo todo.

Até hoje as políticas públicas foram pensadas para o país, quer dizer, para o âmbito do Estado-nação. No máximo pensou-se em focalizar determinadas políticas em setores mais excluídos, visando corrigir ou compensar suas defasagens de inserção ou de inclusão. Pois bem, agora chegou a hora de começar a pensar nas localidades.

Uma comunidade de projeto pode e deve pensar no bem-estar de seus membros. Mas é preciso ver o que significa bem-estar do ponto de vista social. Não basta ter melhores condições ou melhor qualidade de vida do ponto de vista de cada indivíduo e da soma dos indivíduos. É preciso ter também melhores condições ou melhor qualidade de convivência social.

Nas duas próximas seções vamos apresentar sugestões sobre o que pode ser feito por uma comunidade para melhorar o seu bem-estar nas áreas da educação, da saúde, do cuidado com suas crianças, idosos e pessoas com necessidades especiais.

Educação e saúde comunitárias

Educação e saúde são vistas, em geral, como direito do cidadão e dever do Estado. Já é um avanço reconhecer direitos de cidadania. No entanto, é pouco.

Para uma concepção mais ampliada de cidadania, não pode haver direito sem responsabilidade. Assim, educação e saúde devem ser também responsabilidade do cidadão, não para desresponsabilizar o Estado de seus deveres constitucionais e sim para acrescentar novos olhares e novas razões de sociedade, agregar novas competências e alavancar novos recursos. E, além disso, para inovar.

Em primeiro lugar é preciso ver que o que chamamos de educação é o resultado de uma interação social. Uma educação para o desenvolvimento é uma interação capaz de fazer emergir novas competências e habilidades, aumentando a capacidade de dinamizar potencialidades. A conformação de ambientes sociais favoráveis à ocorrência e à reprodução desse tipo de interação (educativa para o desenvolvimento) constitui, portanto, uma prioridade do ponto de vista da comunidade de bem-estar.

É sempre a sociedade que educa, para além de seus aparelhos educativos, como a escola. A vida social no campo ou na cidade, com seus ritmos, repetições e regularidades, vai transmitindo comportamentos.

Existe por certo a educação familiar que, agora, está reflorescendo e tentando, em parte, substituir inclusive a educação escolar. Nos USA, por exemplo, está havendo um certo boom de homeschooling (alunos recebendo aulas em casa, tendo como professores os próprios pais). “Mais de 850 mil crianças e adolescentes recebem aulas em casa. Isso representa 1,7% do total de alunos. No fim dos anos 80, esse número era de apenas 360 mil crianças. São estudantes que não vão à escola…

Pois bem. Por que não communityschooling (educação comunitária)? Educação comunitária tem muitas vantagens sobre a educação doméstica. Sobretudo a educação comunitária para o desenvolvimento (ou a educação para o desenvolvimento comunitário) poderia e deveria ser assumida pela própria comunidade.

Paralelamente, a comunidade em processo de desenvolvimento deveria incluir o desenvolvimento comunitário como uma nova disciplina no currículo de suas escolas. Isso pode ser feito no âmbito municipal ou, mesmo, nas escolas situadas em um distrito, povoado ou bairro engajado no desenvolvimento local.

A educação comunitária, entretanto, vai muito além dessas medidas. Processos educativos escolares e, principalmente, não-escolares podem e devem ser ensaiados em localidades envolvidas com a estratégia de desenvolvimento local, com currículos sintonizados com os sonhos de futuro elaborados coletivamente pelas comunidades.

Jogos, representações teatrais, gincanas, mutirões, campanhas, artes, agricultura ecossistêmica, artesanato, experimentações científicas e uma grande variedade de outras manifestações culturais e ofícios podem ser utilizados em formas não-escolares de educação comunitária: sem muros, sem portas e sem a figura autoritária do diretor ou diretora da escola.

É um milagre que existam tantas crianças na escola. A maior parte dos alunos a frequenta resignada, porque é obrigada. A escola é chata. A escola é um “saco”. A escola desliga o aluno (o paciente) da realidade viva e vibrante que está “lá fora” (e o fato de existir um “lá fora” já é um sintoma de uma coisa meio insustentável, quer dizer, de um arranjo mal feito, que não muda com a mudança das circunstâncias, que não dança conforme a música).

É claro que, nas circunstâncias atuais, considerando o quadro institucional e o padrão predominante das políticas públicas, precisamos da escola. Precisamos colocar todas as crianças na escola e ter escolas de qualidade, sem o que haverá mais exclusão em uma sociedade escolarizada. No entanto, isso não significa que não possamos, simultaneamente, inovar.

Assim, a comunidade em processo de desenvolvimento, mesmo que se esforce para colocar todas as crianças na escola e contribua para o aumento da qualidade da escola, não precisa ter nenhum compromisso com ideologias escolarizantes e pode trabalhar para a desescolarização da sociedade local, superando – por meio de experiências alternativas – a estrutura e a dinâmica desses centros reprodutores de costumes, normas de moralidade e crenças cujo objetivo geral é adaptar o ser humano a um tipo de sociedade em que não há muito espaço para a imaginação criadora e, conseqüentemente, para a inovação.

Na área da saúde, a primeira medida que pode ser adotada por uma comunidade em processo de desenvolvimento local é romper com a visão curativa, que aponta para a medicalização. Isso pode ser feito na medida em que se priorize a formação de agentes comunitários de saúde. Saber cuidar da saúde é, antes de qualquer coisa, estimular hábitos saudáveis de vida e adotar práticas preventivas. Essa é uma tarefa que pode ser feita por pessoas da própria comunidade que se dediquem ao assunto, que gostem de fazer isso e que sejam capazes de estudar e de exercitar essa vocação.

Os médicos e demais agentes de saúde deveriam ser recompensados com base no número de pessoas que não ficam doentes e não pelo número de pessoas que ficam doentes e são por eles tratadas. Se recebem pelo número de doentes, acabam se transformando em agentes de doença e não de saúde. Parece óbvio, mas os ideólogos dos sistemas de saúde ainda não conseguiram montar um esquema viável que não viva da exploração da doença e da venda de serviços médico-hospitalares especializados e de remédios. Pois bem, tal esquema, difícil de ser implantado no plano nacional, é viável em âmbito local se a saúde for uma preocupação sempre presente nos processos de desenvolvimento comunitário.

Para tanto, médicos de família e agentes comunitários – e não hospitais – são o fundamental. Os doentes devem ser encaminhados para hospitais maiores e centros de referência, dependendo da gravidade do seu estado e quando for o caso. Mas as estatísticas dos atendimentos ambulatoriais comprova que a imensa maioria dos problemas podem ser resolvidos em casa ou em um posto de saúde. Grande parte desses problemas, ademais, podem ser resolvidos sem tratamentos caros, com o emprego de recursos fitoterápicos e terapias alternativas. E boa parte deles podem ser prevenidos.

A saúde comunitária, entretanto, vai muito além disso. Ela pode avançar a partir da compreensão de que a saúde e a doença são processos sociais. No que tange à prevenção isso é mais óbvio. Mas, por incrível que pareça, a cura também. E ainda, por incrível que pareça, do ponto de vista do desenvolvimento sustentável, a saúde não é o contrário da doença. Saúde e doença, em termos coletivos, são variações no padrão de adaptação. Mas não é necessário que os ideólogos dos sistemas de saúde pública compreendam e aceitem isso para introduzir inovações no modo como uma comunidade trata da sua saúde.

Incorporando as crianças e os idosos e integrando as pessoas com necessidades especiais

Ao contrário dos processos de desenvolvimento que, mitificando o papel da dimensão econômica, consideram apenas a chamada população economicamente ativa e os potenciais empreendedores empresariais, para estratégias de desenvolvimento local baseadas no investimento em capital social… as crianças, os idosos e as pessoas com necessidades especiais são muito importantes.

Em geral esses setores da população são considerados “peso morto” pelo olhar pouco humano e pouco social dos agentes obcecados com o crescimento econômico. São tidos como fontes de despesa por parte dos formuladores de políticas governamentais. E são desprezados pelos estrategistas econômicos, que não reconhecem neles nenhuma potencialidade, nenhuma fonte de ativos para o desenvolvimento.

No entanto, tais setores constituem elementos importantes da vida social, “vida” sem a qual não pode ocorrer o fenômeno que interpretamos como desenvolvimento.

As crianças são importantes não porque, como tanto se repete, são o futuro e devem ser sustentadas e preparadas para, algum dia, substituírem os adultos nos papéis decisivos que hoje representam.

As crianças não são projetos de adultos, nem são adultos em miniatura. As crianças não são importantes apenas do ponto de vista biológico, da sobrevivência da espécie. As crianças são importantes no presente, justamente porque são diferentes dos adultos no presente.

Sem elas não haveria isso que chamamos de sociedade humana, no presente. É preciso cuidar delas, mas, sobretudo, é preciso contar com elas, incorporar a sua espontaneidade, o seu entusiasmo, a sua forma de se emocionar, a sua capacidade de desconcertar, de quebrar a rigidez dos códigos de conduta que servem a objetivos (muitas vezes pueris, no sentido de imaturos) dos adultos quando praticam todo tipo de abusos contra os semelhantes e se deixam levar por tolas disputas para alcançar riqueza, fama, poder ou glória.

Sobretudo, é preciso assimilar a capacidade das crianças de viver a vida como um jogo.

Quem já fez alguma campanha eleitoral certamente teve a oportunidade de presenciar o incrível papel das crianças. Quando um candidato consegue estabelecer alguma empatia com as crianças, é meio caminho andado para a vitória.

Essa “sabedoria emocional” das crianças constitui um insumo importante para o desenvolvimento. Os processos de desenvolvimento local devem, portanto, incorporar as crianças, envolvê-las nas ações, sem cair na tentação de transformá-las em mão-de-obra. Por exemplo, as crianças devem participar do exercício coletivo de visão de futuro e de visão de passado que é feito pela comunidade. Elas verão coisas que os adultos não vêem. E conseguirão ver os problemas de outras maneiras, que não são captadas pelas pessoas muito ocupadas e enquadradas.

As crianças podem ser incorporadas de muitas formas em dinâmicas verdadeiramente sociais. Não há receita. Mas, desde que se respeite e se leve em conta as crianças, elas assumirão os seus papéis.

Crianças não deveriam ser intoxicadas com ideologias particularistas, nem mesmo ideologias de desenvolvimento, não deveriam ser doutrinadas por reformadores do mundo e não deveriam receber aquele tipo de formação intensiva que tem como objetivo imprimir indelevelmente certos padrões de comportamento, ao estilo do que fizeram algumas ordens religiosas, como os jesuítas, ou como ainda fazem certas correntes islâmicas fundamentalistas. Mas crianças educadas pela comunidade em processos democráticos interativos, participando livremente das redes de desenvolvimento comunitário, serão crianças diferentes no presente e adultos diferentes no futuro e isso pode, sim, contribuir e muito para alterar o modo de vida e de convivência social da comunidade onde crescerão.

Os idosos são a outra borda da rede social que começa com as crianças. Na verdade eles estão mais próximos das crianças do que os adultos, fechando o ciclo da vida humana.

Mais do que as crianças (que, pelo menos, são vistas como o futuro), os idosos são vistos como o passado e considerados um passivo do ponto de vista econômico e um fardo do ponto de vista social. Um peso a carregar pelos governos (inviabilizando os sistemas de previdência social) e uma fonte constante de preocupação para as famílias (que não sabem o que fazer com eles).

Tudo isso acontece porque não se vê que os idosos, considerados improdutivos em termos econômicos, podem ser, sim, muito produtivos do ponto de vista social. Quando uma pessoa deixa de ser produtiva do ponto de vista econômico, isso não significa que ela se torne improdutiva do ponto de vista social e sócio-produtivo, inclusive.

O ócio do idoso, remunerado pelos sistemas de aposentadoria atuais, não é, em geral, um ócio criativo. O idoso é desempoderado pela sociedade e não tem coragem para empreender, para inovar.

Se fosse considerado, pela sua experiência, pela sua sabedoria, pela sua paciência, pela sua tolerância, um ativo importante do desenvolvimento e um elemento insubstituível da vida social, o idoso deixaria de ser um problema e passaria a ser uma solução para muitos problemas. Por exemplo, o idoso pode cuidar das crianças (e isso, em determinadas circunstâncias, pode ser um casamento perfeito). O idoso pode participar dos processos de educação comunitária, contando “causos”, transferindo experiência e conhecimentos mesmo. O idoso pode ser guia turístico. O idoso pode ser conselheiro. E muitas outras coisas.

O idoso, na verdade, pode fazer quase tudo o que faz um adulto, milhares de atividades que não exigem plena vitalidade física. Se não o faz é porque, na maioria dos casos, é vítima de preconceito. Ou porque introjetou o preconceito e acha que seu tempo já passou, que não é mais capaz. Um idoso aposentado na frente da televisão é um passageiro na fila do ônibus que leva ao outro mundo.

As pessoas duram mais quando estão amando, quando estão desempenhando atividades socialmente reconhecidas, quando estão engajadas em um projeto, quando são animadas por um ideal, quando acham que seu tempo não se esgotou e que ainda têm uma missão a cumprir.

Idosos que compartilham os sonhos de futuro de uma comunidade de projeto são incorporados ao processo de desenvolvimento em pé de igualdade a todos os outros membros.

Para incorporar os idosos também não há receita. E, como no caso das crianças, desde que se respeite e se leve em conta os idosos, eles assumirão os seus papéis.

A rigor, todos nós somos pessoas com necessidades especiais, todos nós portamos diferenças – muitas vezes chamadas de deficiências. Isso depende do que imaginamos que deva ser o padrão de normalidade. As pessoas com necessidades especiais são, antes de qualquer coisa, uma manifestação da diversidade humana e social. Não devem ser objeto de visões ideológicas perversas, de eugenia, como as que vigoravam, por exemplo, em Esparta.

As pessoas com necessidades especiais devem, por certo, receber cuidados especiais. Esses cuidados podem e devem ser assumidos pela comunidade em processo de desenvolvimento.

Muitas vezes tais cuidados podem ter o seu efeito potencializado por meio da convivência com crianças e com idosos, seres livres do produtivismo e que não vão ficar olhando o relógio e pensando quanta coisa mais importante estão deixando de fazer quando, por algum motivo, têm que perder tempo visitando ou tratando de um “deficiente”.

Sempre haverá alguma atividade que possa ser desempenhada – e reconhecida socialmente – por uma pessoa com necessidades especiais.

Mais do que isso: sempre haverá alguma atividade que poderá ser realizada de uma maneira melhor por uma pessoa julgada deficiente. Trata-se de encontrar a tarefa adequada, casar a necessidade com a possibilidade e a potencialidade, com a vocação, com aquele dom particular que todas as pessoas têm.

Mas para encontrar isso, as pessoas com necessidades especiais devem ser reconhecidas e a comunidade deve contar com elas na caminhada em direção ao seu futuro desejado.

Uma pauta social

Do ponto de vista do desenvolvimento comunitário, existem alguns problemas no que, em geral, se chama de ‘pauta social’.

O primeiro problema é o seguinte: o que comumente se denomina de pauta (ou agenda) social refere-se quase sempre a uma pauta de políticas sociais compensatórias e de assistência social. O problema é que isso está longe, muito longe, de configurar uma pauta social.

Uma pauta social deveria dizer respeito às múltiplas dimensões da vida em sociedade, englobando não apenas aqueles itens que são necessários para proporcionar boas condições de vida aos indivíduos, mas também aqueles itens responsáveis por boas condições de convivência social à coletividade. Assim, deveriam fazer parte de uma pauta social os fatores que entram na composição do capital humano (e que se referem à capacidade de criar e recriar as condições para uma adequada existência individual – o que envolve a educação, a saúde, a alimentação e a nutrição, a cultura e a pesquisa, e várias outras áreas, sobretudo, o empreendedorismo) e do capital social (que se referem aos padrões de organização, de conexão em rede e de regulação democrática de uma sociedade, envolvendo os graus de associacionismo, confiança e cooperação atingidos por uma sociedade democrática organizada do ponto de vista cívico e cidadão e as suas relações com a boa governança e a prosperidade econômica).

O segundo problema é a maneira como, em geral, se quer enfrentar essa pauta “social” ou de assistência social. Em geral imagina-se que tal pauta “social” possa ser enfrentada por políticas compensatórias ou assistenciais ofertadas pelo Estado. Evidentemente, não se pode. Os recursos necessários para fazer isso a partir dos orçamentos públicos não estão disponíveis aos governos da imensa maioria das nações na atualidade. E mesmo que estivessem, políticas baseadas em um padrão de oferta não dão conta de alavancar o desenvolvimento social se não estiverem combinadas com políticas de investimento em ativos humanos e sociais.

Os incluídos nas listas de beneficiários de programas estatais de oferta são excluídos pelo simples fato da sua inclusão nessas listas. Ao serem incluídos em tais listas (ou cadastros) passam a fazer parte do “estoque de pobres” assistidos compensatoriamente, estoque que é funcional para a manutenção de um sistema político que extrai sua legitimidade e suga sua energia vital dessas formas – em geral centralistas, assistencialistas e clientelistas – de relação entre Estado e sociedade.

A dependência desses programas é uma forma de não inclusão; ou melhor, enquanto continuarem dependentes desses programas – enquanto não forem encorajadas a caminhar com suas próprias pernas, enfrentando da sua maneira os seus problemas e aproveitando do seu jeito as oportunidades que lhes aparecem – as populações não estarão de fato incluídas no processo de desenvolvimento.

Assim, o terceiro problema é a ideia de inclusão (e de exclusão) apresentada, que, em geral, não se refere à inclusão em uma comunidade de projeto, nem mesmo ao acesso ao crédito e à propriedade produtiva, e sim ao consumo, aos serviços do Estado e às listas dos beneficiários dos seus programas de oferta, à cidadania (uma expressão cada vez mais vaga e que cada vez diz menos) e, enfim, aos recursos da vida civilizada moderna (via mercado)…

A tudo isso, deve-se acrescentar a famosa inclusão dos excluídos: dos miseráveis e dos pobres de maneira geral, mas também (para além das crianças, dos idosos e das pessoas com necessidades especiais) dos jovens, dos enfermos, das mulheres vítimas de violência (sobretudo doméstica) e das chamadas minorias sociais que sofrem algum tipo de discriminação ou preconceito em virtude de cor, credo, gênero, grau de instrução, nacionalidade, cultura, crença etc., dos índios, dos acampados e assentados, dos remanescentes de quilombos, dos alcoólatras e drogados etc.

Quando a comunidade assume a responsabilidade por uma pauta mínima como essa, isso é bem diferente de quando tudo vira dever do Estado, desresponsabilizando a comunidade. Ao assumir tal responsabilidade a comunidade está incluindo no seu projeto de futuro os seus excluídos, que são excluídos, antes de qualquer coisa, porque, até então, não faziam parte de nenhum projeto que se importasse com eles. Quando passa a fazer parte do projeto de futuro da comunidade, esse excluído se torna incluído. Porque só comunidades humanas podem, realmente, incluir seres humanos.

Essa é uma ideia diferente de inclusão (e de exclusão). Inclusão é comunhão. Ninguém se torna incluído porque recebeu uma esmola, mesmo que essa esmola seja praticada por agentes públicos e com recursos públicos. Ninguém se torna incluído porque se tornou paciente de um programa de oferta para o qual não passa de um número em uma estatística. Inclusão é conexão na rede do desenvolvimento comunitário, é se tornar mais um nodo, com nome e sobrenome, com características próprias distintivas, com habilidades e competências, com capacidade de receber e de emitir estímulos, de imitar e de ser imitado, de participar, enfim, de um processo de mudança da sua própria vida e da vida coletiva.

Como argumenta Humberto Maturana, “um conjunto humano que não incorpora a conservação da vida de seus membros como parte de sua definição operatória como sistema, não constitui um sistema social”. Em outras palavras, um sistema social conserva a vida de seus membros e não existem membros supérfluos em um sistema social. Isso pode não valer para sociedades de massa de nossos Estados-nações atuais, mas, com certeza, deve valer para comunidades de projeto.

Compromissos comunitários em torno da conservação da vida de seus membros exprimem altos padrões de convivência, que em geral não podem ser alcançados por sociedades com baixo estoque de capital social. Portanto, estratégias de desenvolvimento baseadas no investimento em capital social devem estimular a construção de pautas sociais assumidas pela própria comunidade.

Uma pauta ambiental

Uma pauta ambiental, em geral, diz respeito à conservação dinâmica do meio ambiente natural. Do ponto de vista do desenvolvimento, uma pauta ambiental não deve ser apenas uma pauta preservacionista, mas deve ser uma pauta de investimento no capital natural, ou seja, em tudo aquilo que diz respeito às condições ambientais e físico-territoriais herdadas, regeneradas ou (re)construídas. Uma pauta ambiental, todavia, deve ir além do ambiente natural para abranger também os ambientes modificados pelo ser humano.

Há sempre muito a ser feito em termos de uma pauta ambiental por uma comunidade em processo de desenvolvimento. Por exemplo: o cuidado com as águas (dos rios, lagoas, represas, alagados e costas marítimas) e a sua despoluição, quando for o caso; a proteção e conservação das nascentes; o tratamento adequado dos resíduos industriais e dos efluentes líquidos e sólidos; a coleta seletiva e o tratamento do lixo; a recuperação de áreas degradadas; o repovoamento vegetal e animal (incluindo a vida microscópica); a adoção de processos ecossistêmicos de cultura, como a permacultura; o plantio de espécies adequadas nas áreas urbanas; a limpeza e embelezamento da cidade, das suas fachadas, ruas e praças; a criação de parques municipais e reservas particulares de proteção natural etc.

Também pode fazer parte de uma pauta ambiental a construção de um portal onde funcionará uma recepção da comunidade a todos os seus visitantes, a construção de um centro de lazer que funcione como uma espécie de sala de estar da cidade, a construção de um shopping comunitário ou de uma feira pública coberta para produtores agrícolas, hortifrutigranjeiros, artesanais etc. Esses ambientes, construídos em sintonia com o ambiente herdado, constituem expressões do cuidado que a comunidade tem com a conservação das condições que garantem a vida de seus habitantes atuais e das gerações futuras.

Na verdade uma pauta ambiental é sempre sócio-ambiental. O compromisso da comunidade com a chamada ‘Agenda 21 Local’ é fundamental e esse compromisso se materializa quando a localidade decide se engajar em um processo de desenvolvimento local integrado e sustentável.

Uma pauta política e cultural

Para estratégias de desenvolvimento local baseadas no investimento em capital social… essa é a pauta mais importante. Capital social é um conceito político. Para produzir e acumular capital social a comunidade tem que fazer política e tem que mudar a velha cultura política.

Como escreveu Michael Shuman (diretor da Village Foundation’s Institute for Economics and Entrepreneurship), “o falecido Tip O’Neill costumava dizer que toda política é local. Talvez seja mais apropriado dizer que toda política significativa é local. A comunidade é o instrumento mais acessível para a expressão política coletiva, uma vez que é onde o cidadão tem maiores possibilidades de derrotar as forças da corrupção… e da apatia, e engajar-se em um processo democrático. É também onde os indivíduos exercem maior influência sobre suas relações econômicas e políticas – onde mesmo pequenos gestos podem melhorar a qualidade da vida cotidiana. E o mais importante, é onde a formulação de políticas adquire uma face humana” (4).

Shuman sugere várias medidas políticas que podem ser implementadas por uma comunidade em processo de desenvolvimento que caminha em direção à sua auto-suficiência (ou autodependência), como a declaração de direitos e garantias da comunidade, o relatório do estado da cidade, a prefeitura amiga da comunidade, a reforma política, o lobby em favor do localismo e o interlocalismo (5)…

Um Pacto pela Democracia Local é, de longe, a coisa mais importante, em termos políticos, que uma comunidade em processo de desenvolvimento pode fazer. Todavia, várias outras iniciativas que incidem sobre o ambiente político-cultural local podem ser implementadas por quase todas as comunidades em processo de desenvolvimento, como o ‘Calendário da Cidade’ (que pode ser aprovado pela Câmara dos Vereadores), com a instituição de novas festividades (ou resgate/reanimação de antigas datas comemorativas), inclusive com o chamado ‘Dia da Conexão’, em que as lideranças comunitárias vão visitar uma localidade “irmã”. Não é despropositado propor também uma ‘Lei do Desenvolvimento Local’, normatizando a maneira pela qual a comunidade se prepara para caminhar e caminha em direção ao futuro coletivamente desejado…

Mil pautas inovadoras de desenvolvimento

São inumeráveis as possibilidades de ação de uma comunidade em processo de desenvolvimento. Algumas dessas ações precisam de dinheiro, de financiamento externo, outras não. Muitas atividades e empreendimentos podem ser realizados com base nos ativos humanos e sociais que toda localidade, em maior ou menor grau, já possui.

Em toda comunidade há uma mina de ouro, um tesouro enterrado que os economistas não costumam ver: “recursos humanos desempregados, instituições cívicas subutilizadas e ativos econômicos rejeitados. Em um maravilhoso livro intitulado ‘Building Communities from the Inside Out’, John P. Kretzmann e John L. McKnight (Evanston: 1993), da Rede de Inovações de Bairros da Universidade Northwestern, mostram, passo a passo, de que forma uma comunidade pode identificar, avaliar e aproveitar esses recursos. Há muitos tipos de ativos humanos potencialmente úteis, mas ainda não aproveitados: a inventividade dos jovens; as habilidades esquecidas dos aposentados; as mentes ativas dos portadores de necessidades especiais; o instinto de sobrevivência das mães que vivem da assistência social e dos sem-teto; e os talentos inexplorados de artistas locais. Há associações subutilizadas que formam a sociedade civil, especialmente nas comunidades menores… instituições de atendimento ao público sem fins lucrativos como igrejas, hospitais e universidades públicas… [e há, ainda] ativos inanimados que foram descartados: prédios vazios, maquinaria ociosa, terrenos vazios, áreas industriais abandonadas, energia desperdiçada e água mal utilizada” (6).

Uma comunidade em processo de desenvolvimento pode inventar mil pautas inovadoras de desenvolvimento. Poderíamos fazer uma lista, mas ela seria infindável. Dessa lista poderiam constar ações, programas e empreendimentos locais, como:

:: Alternativas de construção civil utilizando materiais e know how locais

:: Aproveitamento do lixo e dos rejeitos industriais para arte e artesanato, construção civil, fabricação de brinquedos e utensílios

:: Arranjos ecológicos combinando culturas sinérgicas…

:: Serviços microfinanceiros

:: Centros de recuperação de máquinas, equipamentos e veículos antigos

:: Centros de apoio a micro e pequena empresa

:: Centros de voluntariado

:: Circuitos gastronômicos

:: Combinados urbano-rurais

:: Consórcios comunitários (para aquisição de eletrodomésticos, máquinas e equipamentos industriais, veículos etc.)

:: Consórcios habitacionais comunitários

:: Cooperativas de produção, de crédito e de serviços

:: Empresas de participação comunitária (captando a poupança local)

:: Empresas em rede (com os conectados trabalhando em suas próprias casas)

:: Hortas comunitárias e escolares

:: Moeda comunitária

:: Mutirões de construção de habitações populares

:: Parques comunitários

:: Plano de previdência comunitária

:: Plano de saúde comunitário

:: Programas inovadores locais de capacitação profissional de jovens, de alfabetização de jovens e adultos, de alfabetização digital e de alfabetização ecológica

:: Rádio e TV comunitárias, operadoras comunitárias de telefonia, redes mesh

:: Shopping comunitário

:: Sistemas sócio-produtivos locais (como os chamados APLs – Arranjos Produtivos Locais)

:: Spas e centros de saúde alternativos

E muitas, muitas outras coisas. Nada disso, porém, é essencial para uma estratégia de desenvolvimento local baseada no investimento em capital social, como veremos na próxima e última seção.

Liberdade para desenvolver

O que é essencial em uma estratégia de desenvolvimento local baseada no investimento em capital social?

Para resumir em um parágrafo, o essencial é devolver às pessoas a capacidade de sonhar e de correr atrás dos próprios sonhos e fortalecer a sua capacidade de comunidade, quer dizer, de compartilhar seus sonhos e de cooperar na busca de objetivos comuns, exercendo seu protagonismo para alavancar seus próprios recursos na solução de problemas locais, conectando-se horizontalmente em rede, democratizando decisões e procedimentos e inaugurando novos processos participativos de caráter público.

Favorecer o empreendedorismo individual e coletivo, a cooperação, as redes e a democracia: isso é o essencial…

Para tanto, a coisa mais importante é a liberdade. Sim, ao contrário do que pensam muitos técnicos de instituições, governamentais ou não governamentais, nacionais ou internacionais, de fomento e de apoio ao desenvolvimento, desenvolvimento tem tudo a ver com liberdade.

Desenvolvimento implica sempre uma ampliação da esfera da liberdade humana. Pode haver crescimento econômico sem mais-liberdade, mas não pode haver desenvolvimento.

Assim como há um potencial humano que precisa de liberdade individual para ser desenvolvido, também há um potencial social que precisa de liberdade coletiva para ser desenvolvido.

Em cada localidade, há uma força coletiva interior que está aprisionada. É preciso libertar essa força coletiva interior.

Então, as perguntas que temos que fazer são: 1) O que é preciso fazer para libertar essa energia endógena que está aprisionada? 2) Quem a está aprisionando? 3) Como quebrar as cadeias que a estão aprisionando? Se respondermos a essas perguntas vamos descobrir por que uma comunidade não se desenvolve e o que fazer para contribuir com o seu desenvolvimento.

Por que uma comunidade não se desenvolve?

Existe um exercício simples que pode ser feito por qualquer conjunto de lideranças ocupadas com o desenvolvimento de uma localidade. Trata-se de um exercício para elaborar a “fórmula para impedir que uma comunidade se desenvolva”. Propõe-se às pessoas que elaborem uma fórmula contendo os fatores que, reunidos de uma certa maneira, conseguiriam, a seu ver, bloquear o desenvolvimento comunitário.

Toda vez que tal exercício foi feito com agentes de desenvolvimento, as “fórmulas” encontradas continham um ou vários dos seguintes fatores:

::: As pessoas repetem o que sempre fizeram <=> porque existe algo desmobilizando a sua criatividade e a inovação, em geral uma cultura que não as encoraja a fazer nada diferente do que já foi feito e, pelo contrário, infunde o medo de que empreender é muito arriscado e pode trazer prejuízos.

::: As pessoas permanecem na condição de beneficiárias passivas <=> porque foram transformadas em pacientes de programas assistenciais que já vêm prontos, desestimulando o enfrentamento coletivo dos problemas comuns.

::: As pessoas ficam esperando recursos que vêm de fora <=> porque tais recursos são sempre conseguidos pela intermediação (clientelista) de algum benfeitor em troca de certo tipo de apoio (em geral eleitoral), substituindo a cooperação que alavanca recursos da própria comunidade pela competição por esses recursos de fora (para ver quem os conseguirá e quem deles se aproveitará).

::: As pessoas desconfiam umas das outras, não acreditam na capacidade das outras de fazer alguma coisa que beneficie a coletividade <=> porque sua cooperação é desestimulada por chefes (centralizadores), que dizem que só eles têm poder para resolver os problemas (se tiverem apoio, em geral eleitoral).

::: As pessoas e as organizações se relacionam verticalmente, em uma escala de subordinação, preocupadas o tempo todo com sua posição de poder e com sua capacidade de mandar <=> porque ficam à mercê da vontade de algum político poderoso para o qual não interessa a troca de informações e a articulação em rede da população para fazer qualquer coisa autonomamente.

::: As pessoas não participam das decisões sobre os assuntos comuns e nem são chamadas a colaborar para a realização de ações que dizem respeito aos destinos da comunidade <=> porque alguém (algum tipo de organização social ou política antidemocrática) não conta com elas e as exclui da esfera pública.

Libertar a comunidade dos efeitos dessa cultura política – apassivadora, competitiva, hierárquica e autocrática – que é contrária ao empreendedorismo individual e coletivo, à prática da cooperação e à sua ampliação social, às redes e à democracia participativa, é a “fórmula” do desenvolvimento porque é a “fórmula” para libertar o potencial social que está aprisionado. Ou, em outras palavras, para produzir e reproduzir, em escala ampliada, o capital social.

Não se pode fazer isso eliminando os agentes que reproduzem essa cultura ao adotarem práticas políticas assistencialistas, clientelistas, centralizadoras (hierárquicas) e antidemocráticas, que impedem a comunidade de se desenvolver. Os agentes políticos tradicionais florescem e reflorescem nesse tipo de cultura. Se conseguirmos bloquear a ação de alguns deles, surgirão outros tantos.

A única maneira de coibir as práticas políticas insufladas por tal cultura é adotando práticas contrárias, ou seja, insuflando o empreendedorismo individual e coletivo, a cooperação, as redes e a democracia interativa local. Uma estratégia de indução do desenvolvimento local, deve, portanto, lançar mão de uma metodologia que estimule essas práticas libertárias.

Atingindo a ‘escala social’

Entretanto, parece muito difícil estimular práticas libertárias quando os agentes disponíveis para fazer tal trabalho estão, eles próprios, possuídos por mitos e intoxicados por preconceitos de uma cultura que aprisiona ao invés de libertar. Além disso, uma metodologia baseada em uma colagem de ações destinadas a estimular a disseminação de novos comportamentos empreendedores, cooperativos e democráticos seria bastante complicada de aplicar se não tivesse um eixo, um centro, um fulcro, um ponto sobre o qual apoiar a alavanca para conseguir dar conta de mover todo o resto.

Pois bem. Este fulcro existe. É a rede. Do ponto de vista social, a rede é o início e o fim de tudo em termos de desenvolvimento. Porque a comunidade se desenvolvendo é sinônimo de sua rede social aprendendo.

A forma e o comportamento culturais manifestam-se como propriedades que emergem da dinâmica complexa das redes sociais.

Quanto mais tramada por dentro (por redes sociais) for uma localidade e quanto mais conectada para fora ela estiver, maior será o seu ‘poder’ de gerar (novos) padrões replicáveis de comportamento. Quanto mais tramada por dentro (por redes sociais) for uma localidade, menor ela será em termos sociais (quer dizer, em termos da sua ‘escala social’). Quanto menor o mundo (no sentido de mais tramado por redes sociais ou da existência de mais caminhos entre seus nodos), mais potente socialmente ele será (e mais capacidade terá de produzir e reproduzir em escala ampliada o capital social).

Portanto, o centro de tudo, de toda a estratégia de desenvolvimento local baseada no investimento em capital social, é tornar o mundo pequeno em termos sociais. Aumentar a conectividade dentro da localidade até atingir a ‘escala social’ ótima para a comunidade que vive e convive ali. Aliás, o que chamamos de comunidades são ‘mundos pequenos’ que atingiram certo grau de “tramatura” do seu tecido social. A ampliação social da cooperação, que dá origem ao (ou co-origina o) fator do desenvolvimento designado pelo conceito de capital social (e que é o conteúdo do que chamamos de ‘poder social’), ocorre (ou exclusivamente, ou predominantemente) em comunidades.

É o sistema como um todo (a rede social) que confere ‘poder social’ aos seus componentes (humanos). Todo ‘poder social’ é empoderamento humano. Se queremos que as pessoas sejam encorajadas para empreender, para exercitar um protagonismo cooperativo na busca de soluções para os seus problemas, temos que aumentar a “tramatura” do seu tecido social; ou seja, temos que construir redes sociais.

Quanto mais conectada (por dentro e para fora) estiver uma comunidade, mais condições ela terá de usinar novos padrões de comportamento (como novos programas). Chamamos de desenvolvimento ao grau de desenvolvimento desses programas (que dá a medida da sua capacidade de induzir comportamentos em virtude do seu ‘poder social’ de gerar e replicar seus próprios padrões).

Quanto menor (e, portanto, mais potente socialmente) é um mundo, mais chances terão de se propagar mudanças de comportamento ensaiadas por seus componentes (ou seja, mais susceptível ele será à mudança social e, portanto, ao fenômeno que chamamos de desenvolvimento).

O lugar mais desenvolvido do mundo

Neste livro começamos fazendo uma proposta. Uma proposta de investimento em capital social para tornar a localidade onde você vive ou convive no lugar mais desenvolvido do mundo.

Pode parecer um exagero, mas não é. O lugar mais desenvolvido do mundo não é o lugar com mais prédios, com mais máquinas, com mais armas, e sim, apenas, o melhor lugar para se viver e conviver. Isso é para você, que gosta de um lugar e quer viver e conviver ali. Se você não gosta do lugar onde está, não deve investir nele. Neste caso você deve, simplesmente, procurar outro lugar para morar, para trabalhar ou para frequentar.

Neste livro você viu que o desenvolvimento da sua comunidade tem que ser criado – inventado – por ela. Não pode ser transferido de outro lugar. Não pode ser conferido por ninguém.

Você viu também que aguardar a chegada do desenvolvimento não adianta. Ele não chegará nunca. A liberdade de uma comunidade serve para promover o desenvolvimento dessa localidade; ou, em outras palavras, para criar uma nova localidade. Não há certo nem errado nesse caminho. Cada caminho será um novo caminho, a ser aberto e trilhado pelos participantes da rede de desenvolvimento comunitário. O lema das cooperativas Mondragon é “construímos a estrada na medida em que viajamos”. E toda comunidade, para ser sustentável, deve encontrar seu próprio caminho.

Franco, Augusto (2004). O lugar mais desenvolvido do mundo: investindo no capital social para promover o desenvolvimento comunitário. Brasília: Agência de Educação para o Desenvolvimento (PNUD, Unesco, Sebrae), 2004. 

Para baixar o texto integral clique no link:

Augusto de Franco – O Lugar mais desenvolvido do Mundo

A onda reacionária e o Paraná (2)

Democracia como modo-de-vida: a experiência da democracia em não-países