in

Como Bolsonaro enganou os trouxas

Bolsonaro quer nos provar que abandonou mesmo (e não apenas de mentirinha) seu projeto antidemocrático? Ora, é simples. Basta que ele:

1) Abandone seus discursos contra a imprensa, revogue os atuais critérios político-ideológicos para privilegiar veículos de comunicação alinhados (e substitua Fabio Wajngarten).

2) Deixe de adotar políticas seletivas contra os direitos humanos (e demita Damares Alves).

3) Pare com as queimadas, proíba a invasão de terras indígenas, suspenda a destruição dos órgãos que cuidam do meio ambiente (e despeça Ricardo Salles).

4) Interrompa a política externa de submissão aos Estados Unidos e de alianças preferenciais com países comandados por populistas-autoritários e ditadores (e troque o ministro Ernesto Araújo).

5) Suspenda as medidas de armamentismo popular, de facilitação de compra de armas e munições e de ampliação do porte de armas (e demita o ministro André Mendonça).

6) Desaparelhe o presidência da República ocupada totalmente por militares da reserva ou da ativa, substituindo-os por civis (como deve ser em uma democracia, que é um poder civil).

7) Pare de subverter o caráter laico do Estado brasileiro tentando alinhá-lo com uma religião (e não se associe mais com bispos vigaristas).

8) Coloque alguém que entenda de educação no Ministério da Educação e alguém que entenda de saúde no Ministério da Saúde (ou seja, substitua o pastor Milton Ribeiro e o general Eduardo Pazuello por pessoas que tenham intimidade com as respectivas áreas).

Atenção! Ele não precisa trocar essas pessoas por “comunistas”. Pode substituir todo esse pessoal por políticos profissionais mesmo (até por aliados do “centrão”, desde que competentes).

Ele vai fazer isso? Não? Então a mudança que está querendo nos vender é de mentirinha.

Concretamente, Bolsonaro não mudou. Maneirou na retórica golpista, mas não é mais assim – com golpes à moda antiga, fechamento do STF, prisão de parlamentares, empastelamento da imprensa – que as democracias morrem. Bolsonaro continua perfeitamente alinhado com a nova maneira de matar a democracia inaugurada pelo populismo-autoritário. Ele apenas afastou o perigo imaginário (do golpe com tanques nas ruas, que nunca haveria mesmo), mas o perigo real para a democracia continua presente.

Se Bolsonaro continua desgovernando sem contestação, isso significa que não há oposição (sem a qual, nunca é demais lembrar, não há democracia).

A vacilação da chamada “classe política” no trato com os populismos vira leniência e a leniência acaba virando conivência. Não estamos nos referindo aos políticos do centrão. Estamos falando daqueles que se dizem democratas, como os tucanos, que tomam a democracia numa visão minimalista, como troca de governo sem derramamento de sangue (o antigo Przeworski, infelizmente, não ajudou). Ora, se é assim, todo mundo que adota a via eleitoral está no campo democrático. Ocorre que os populistas, que amam eleições, são hoje os principais adversários da democracia.

Se Bolsonaro conseguir chegar ao fim de seu mandato e, pior, se reeleger, a culpa única e exclusiva será da vacilação, da leniência e da conivência dos políticos que se dizem democratas (mas que, na verdade, não atuam como democratas).

Se atuassem não teriam deixado se fechar a janela do impeachment, que estava, sim, aberta, até abril ou início de maio. Pelo contrário, se esforçaram ao máximo para inviabilizar qualquer movimento pelo impeachment, confundindo a aprovação na Câmara de um pedido de impeachment com a campanha do impeachment (sem a qual nunca há mesmo aprovação na Câmara de um pedido de impeachment). Se fosse pela vontade do parlamento, Dilma não teria sido afastada. O Congresso só se mexeu depois das grandes manifestações de rua.

Em suma, nossos “democratas” usaram a melhor maneira de matar um movimento pelo impeachment, que é dizer: “Não há condições de aprovar um pedido desse na Câmara”. É como dizer: não vou me candidatar porque não tenho os votos necessários para me eleger. Como se a campanha não servisse para isso. É a política-zero.

Sim, é a não-política. O Partido Democrata, nos EUA, fez uma campanha do impeachment. Os democratas de lá sabiam que perderiam no Senado. Mas se não tivessem feito isso talvez não houvesse agora tanta chance de derrotar eleitoralmente Trump. Em política não se faz apenas o que já tem resultado garantido. Para isso não se precisa de política.

Bolsonaro então se aproveitou da vacilada e deu mais um lance na sua antipolítica, aliando-se ao centrão (aliança justificada pela necessidade de se blindar contra o impeachment caso se abra uma nova janela com o avanço das investigações sobre o peculato praticado por ele e sua família, pelas suas relações com as milícias, pelos seus crimes contra a saúde pública e o meio ambiente).

Com tudo isso enganou os trouxas, recebendo até elogios de analistas e jornalistas políticos por ter abandonado suas pretensões antidemocráticas.

Sobre a mudança de Bolsonaro rumo ao chamado “centrão”, vale a pena ler o artigo do Conrado Hübner Mendes na Folha do último dia 14 de outubro.

O centrão se bolsonarizou, não o contrário

Conrado Hübner Mendes, Folha de São Paulo (13/10/2020)

Bolsonaro, calado, não vira poeta; moderação está nos olhos de quem não vê

Bolsonaro não foi ao centro. O centrão foi a Bolsonaro. Centrão só é centro para o idiota da literalidade, que dá as mãos ao idiota da objetividade e olha o país desde sua câmara hiperbárica de análise política.

Na biologia do Planalto, centrão é um animal invertebrado que parasita o interesse público e o desfigura. Não é centro pois não tem substância nem de centro, nem de qualquer coisa.

Esse corpo sem alma abraça Deus e o Diabo se Deus e o Diabo o deixarem se locupletar.

Produziu-se nesses anos vasta literatura sobre riscos à democracia. Relatórios e livros explicaram que o golpe saiu de época e foi substituído por técnicas menos espetaculares de fechamento. No lugar do tanque, a demolição gradual, parede por parede. A desconstrução, não a implosão, mostrou-se mais eficaz nessa onda de autocratização pelo mundo.

Para surpresa geral, Bolsonaro parecia jogar à moda antiga e insinuava intervenção militar no STF. O golpe fraquejou e se encerrou na notinha de Heleno advertindo sobre “consequências imprevisíveis”. Muitos dos que alertavam que o golpe não era o verdadeiro risco agora respiram aliviados e anunciam “risco superado”.

Afinal, o golpe falhou. E, se não há golpe, há triunfo democrático. O raciocínio não tem lógica mas agrada o coração. Foram só 20 meses de governo e a análise política voltou a adotar a certeza categórica como estilo retórico. A pílula tranquilizadora saiu até em capa de revista. A ciência política, escaldada, não recomenda tamanha confiança.

Se foi manobra de genialidade política ou sorte, não importa. Funcionou bem. Bastou gesto tático do presidente, receoso com os casos criminais que o implicam, e proclamaram vitória da “democracia risco zero”. A profecia se autorrealizou com o toque do centrão.

A democracia com déficit de atenção se acalmou, mas os fatos narram história diversa: à medida que a morte se espalha e o negacionismo pandêmico se reforça, o autocrata amplia popularidade e chance de reeleição (momento-chave no script da autocratização).

Continua a incitar o crime na Amazônia e a assegurar leniência fiscalizadora; está vencendo na política de armamento e na inviabilização do direito à segurança pública; multiplicam-se candidaturas eleitorais de policiais e militares e não se cogita regulação a respeito; a militarização e damarização do Estado se aprofundam.

Na política pública não se vê moderação. Florestas continuam queimando e Salles sorrindo, Damares continua a colocar recurso público nas suas ONGs sem licitação, o país continua a se alinhar à Arábia Saudita contra direitos das mulheres na ordem internacional; instituições de Estado têm sido avaliadas por sua lealdade à nova era; já se pode falar em juízes bolsonaristas e promotores bolsonaristas, não só em policiais bolsonaristas.]

Moderou-se nas palavras? Justo as palavras, com as quais poucos se importaram enquanto Bolsonaro celebrava golpe de 1964, defendia tortura, torturador e ditadura? Ou agredia negro, homossexual, jornalista, cientista, professor e estudante? Ou ameaçava enviar militante para a ponta da praia, local de desova de corpos assassinados na ditadura?

Faltam só algumas bombas que Bolsonaro precisa desarmar: a CPMI das fake news, sob o poder de agenda de Alcolumbre; o inquérito das fake news no STF, sob comando de Alexandre de Moraes; e as pendências criminais de Flávio Bolsonaro, Queiroz e Wassef no STF, reunidas no gabinete de Gilmar Mendes, o maestro do centrão magistocrático.

Gilmar Mendes demorou a se reacomodar no tabuleiro desde 2018. Teve até que chamar Bolsonaro de genocida e amansar generais antes de voltar a ser o eixo gravitacional do xadrez de Brasília. Pela sua sala de jantar passam hoje a reeleição de Alcolumbre e Maia na presidência das Casas do Congresso e a nomeação de novos ministros do STF. Bolsonaro foi lá pedir a bênção ao ministro que julga seus interesses.

O bolsonarismo, com ou sem Bolsonaro, é a mais agressiva ameaça à democracia brasileira. Bolsonaro, calado, não vira poeta. Se o estilo de governo mudou, suas ações e inações seguem esvaziando políticas públicas, intoxicando o espaço cívico e combatendo os canais de produção da verdade. Pode chegar a hora em que Bolsonaro se torne dispensável.

Moderação está nos olhos de quem não vê.

O Movimento Sofista de Kerferd com alguns comentários – Parte 1

Sabedoria não tem a ver com democracia