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Brasil Paralelo: produção de ideologia hierárquica e autocrática

Saiu o vídeo de lançamento (na verdade, o primeiro capítulo) da série Brasil, a última cruzada, produzida por uma organização chamada Brasil Paralelo, que conta entre seus quadros com Luiz Philippe de Orleans e Bragança e Leandro Ruschel (o cara que escreveu no seu Facebook no último 17 de setembro: “Bem que o General Mourão poderia ser candidato a presidente”).

O segundo trailer que anunciava a série já permitia uma análise do que seria. No dia 11 de setembro de 2017, numa pequena nota no Facebook, escrevi o seguinte:

LEVANTADOS DA TUMBA

Overdose de lixo autocrático

O tal Brasil Paralelo lançou um vídeo de propaganda (trailer 02) intitulado “Brasil A Última Cruzada”. Decodificar e analisar o texto (as falas dos autocratas que eles selecionaram, começando pelo teólogo Olavo de Carvalho) é um excelente exercício de aprendizagem democrática.

O briefing audiovisual já é uma espécie de introdução ao pensamento autocrático. O título, as imagens, as vozes, a trilha sonora… tudo é lamentável: é exatamente o contrário da democracia.

Um dos caras diz o seguinte:

“O Brasil é filho desta grandeza, de uma grandeza que contemplava, por um lado, a Cruz e, por outro lado, a Espada”.

E aí entram os monarquistas, herdeiros do trono…

Os promotores do negócio declararam (em um comentário no Youtube):

“Nos propomos a resgatar a essência e patriotismo de cada brasileiro”.

Estão atrás de uma narrativa de grandeza, de refundação da nacionalidade gloriosa, da invenção de um mito fundante que nos constituiria como povo eleito para qualquer patifaria patriótica.

Está aí: portadores de ideologias que imaginávamos enterradas há mais de um século, de repente levantaram da tumba e agora estão vagando por aí, como Black Walkers, zumbis à busca de consciências para colonizar.

O Brasil Paralelo é esperto: arrumou um jeito de faturar surfando na onda da chamada “nova direita”. Infelizmente, porém, prestando um enorme desserviço à democracia.

Sim, eles têm o direito de fazer isso. E os democratas temos o direito de criticar.

Agora saiu o vídeo com o Capítulo 1 da série, intitulado A Cruz e a Espada, com uma trilha sonora meio colada de Game of Thrones. O episódio segue abaixo. Tem cerca de 51 minutos, mas assisti-lo não é perda de tempo para quem toma a democracia como um processo de desconstituição de autocracia.

O que foi dito para o trailer vale para a série. É uma tentava de construir uma “história” (o que já se chamou de estória) a partir da perspectiva heroica dos hierarcas da tradição ocidental cristã, como os Templários e, depois, os seus sucessores portugueses da Ordem de Cristo. Os heróis sempre são guerreiros religiosos, que não lutam para enriquecer e melhorar de vida e sim porque, como fiéis, obedientes à tradição ocidental cristã, buscam desinteressadamente a Terra Prometida, o Paraíso (que, nessa narrativa pirada dos monarquistas Orleans e Bragança, seria nada menos do que o… Brasil). E os grandes agentes desse plano divino para a história humana não são as pessoas comuns e sim os grãos-mestres de ordens militares, sacerdotes-combatentes, militantes espirituais de seitas esotéricas, cavaleiros que carregam instrumentos para mutilar e matar.

A narrativa é velha, compartilhada há um século nos meios ocultistas, como em certos graus da maçonaria e das sociedades teosóficas (sobretudo na sua versão brasileira). Mas até então era restrita aos iniciados dessas seitas espiritualistas. Agora o Brasil Paralelo quer usá-la como arma política da chamada nova direita na sua luta contra o globalismo, o comunismo e o islamismo.

A pretexto de ensinar a verdadeira história, que teria sido escondida e deturpada pelos professores marxistas, esses autocratas do Brasil Paralelo produzem ideologia hierárquica e autocrática. É claro que os professores de história marxistas também constroem narrativas ideológicas antidemocráticas, sobretudo na medida em que se orientam pelo postulado básico de que a luta de classes é o motor da história. Mas isso não pode ser corrigido ou enfrentado com uma narrativa ideológica oposta, igualmente antidemocrática.

É preciso assistir o capítulo inteiro para perceber a “lógica” oculta (ou nem tão oculta assim) da narrativa. Em síntese eles querem dizer que nada acontece por acaso, que há um destino pré-traçado por uma ordem pré-existente à interação das pessoas e que há um lugar para se chegar que já estaria embutido na nossa origem. Uma frase do narrador do vídeo, em especial, denota esse sentido:

“Não se trata apenas de não esquecermos de onde viemos. Se trata de não esquecermos para onde estamos indo”.

Ora, quer dizer que esses malucos sabem para onde estamos indo? Não estamos indo para onde queremos ir e sim para um lugar que já está configurado em algum mundo imaginário? Se é assim, onde fica nossa liberdade, que é, fundamentalmente, a liberdade de sermos infiéis às nossas origens (reais ou construídas por uma narrativa mitificante) e, inclusive, a liberdade de não ter rumo?

O sentido da política, segundo a narrativa do Brasil Paralelo, não é a liberdade e sim o cumprimento de uma missão, a consumação de um fadário, a realização de um dharma tornado karma para o ser humano que pode ser livre porque não quer alcançar nenhuma verdade supostamente superior.

Não é uma narrativa liberal, nem mesmo em termos das doutrinas do liberalismo-econômico. As razões econômicas, frequentemente evocadas para explicar o comportamento coletivo, são afastadas de pronto pelo tal Luiz Philippe. Não conquistamos novas terras por uma dinâmica de desenvolvimento, em busca de novos recursos e de nova oportunidades e sim para encontrar um lugar mítico, guiados pela Providência e pela Virtude.

Talvez a parte mais significativa – e mais maléfica, do ponto de vista da democracia – da narrativa mítica que o Brasil Paralelo quer colocar no lugar da história é o chamamento para uma nova cruzada (que seria a última cruzada, como diz o título da série), quando o narrador diz:

“A preservação desse lugar cabe a nós. Não podemos deixar que roubem os degraus da nossa civilização”.

Ora, isso é um manifesto político, não apenas uma tentativa de recontar a história de um novo (ou velho) ponto de vista. Qual é este lugar? Quem quer roubá-lo? E por que a civilização é concebida como uma escada, com degraus?

Trata-se de uma nova cruzada mesmo: sim, o mais apavorante é que não é uma figura de linguagem. Nessa cruzada, que seria a última (pois é inevitável que narrativas autocráticas acabem  escorregando para uma perspectiva apocalíptica), os cristãos tradicionais (de direita) que fazem política devem resistir aos invasores, como os ibéricos nas Astúrias resistiram aos mouros (este ponto tem grande destaque no vídeo). E quem seriam esses invasores? Os novos mouros, que seriam os mouros mesmo (o Islã, novamente em expansão) e o comunismo internacional agora aliado aos grandes capitalistas (como Soros) que estão financiando a expansão do globalismo.

Tirando a literatura, as imagens da arquitetura monárquico-religiosa colossal e a trilha sonora tipo Game of Thrones, resta de toda essa mistificação apenas uma coisa: um libelo contra a globalização e à emergência de uma sociedade-em-rede. Se existe um lugar que é mais excelente do que todos os outros, que já estava assinalado para nós pela Providência e ao qual chegaremos graças ao heroísmo de hierarcas e autocratas virtuosos, então não há como não exalçar um localismo não-cosmopolita.

Os outros? Os outros povos, os outros países, as outras pessoas, que se danem. Agora chegou a nossa vez. Vamos restaurar a civilização ocidental cristã e consumar toda a sua glória, promovendo o Brasil à condição de farol da humanidade. Há aqui isomorfismos, claramente perceptíveis, com os projetos de uma nova raça, de um novo Reich, de uma futura Pátria que estará, em algum sentido, acima de todas as outras.

Puro lixo hierárquico e autocrático. E muito perigoso para a democracia na medida em que não se dissemina, como antes, apenas nos conventículos espiritualistas e religiosos tradicionalistas, mas agora tem chances de ganhar alguma base social significativa para sustentar um projeto político autocrático.

Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá. Esse pessoal todo vai acabar votando em Bolsonaro. Alguma dúvida?

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