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Chegou a hora de criarmos novos mundos anormais

As grandes esperanças depositadas no terceiro milênio foram (até agora) frustradas. Todos os indicadores relevantes acusam retrocesso civilizatório (melhor, talvez, seria dizer, cívico, democrático e humanitário).

No início do século 21 tivemos a ascensão do neopopulismo de esquerda, com Chávez (e depois Evo, Correa, Lugo, Funes, os Kirchners, Lula e Dilma, Ortega). Com Maduro, a Venezuela virou uma ditadura. E a Nicarágua, nas mãos dos sandinistas que viraram bandidos comuns, transformou-se em mais uma ditadura.

Na virada do século, Putin já havia assumido o poder na Rússia para nunca mais sair (e a Rússia também virou uma ditadura). O Islã autocrático e jihadista mostrou as garras, com a Al Qaeda e o Isis espalhando o terror pelo mundo. Depois do atentado ao WTC tivemos um retorno ao unilaterarismo.

A partir de 2006 começou a recessão democrática: o número líquido de democracias deixou de crescer. Depois da recessão, veio a desconexão e a desconsolidação democráticas nos países ricos, de democracia avançada.

Da Primavera Árabe sobrou apenas a Tunísia. Um populismo-autoritário, de extrema-direita, começou a florescer, com Erdogan, Orbán, os irmãos Kaczyński, Beppe Grillo e Casaleggio e, depois, Salvini, Le Pen e outros meliantes ideológicos. Na sequência vieram o Brexit, a eleição de Trump e do facínora Bolsonaro. Tudo populismo!

O esquema interpretativo esquerda x direita, que já era anacrônico, ficou imprestável (e impotente do ponto de vista analítico) quando descobrimos que o populismo contemporâneo é um comportamento político que pode ser apresentado tanto pela esquerda quanto pela direita, tanto pelos que se dizem revolucionários quanto pelos reacionários e tanto pelos que se dizem socialistas quanto pelos que se dizem conservadores.

Mas como saber se estamos diante de um populista (de esquerda ou de direita, pouco importa)? Basta observar duas características:

1 – Populistas acreditam que existem elites que estão trabalhando contra os interesses das “pessoas verdadeiras” (ou do “povo verdadeiro”: “the true people”).

2 – Populistas acreditam que são a voz do “povo verdadeiro” de um país e que, assim, nada deve ficar no seu caminho.

Essa é a conceituação de populismo adotada por Jordan Kyle & Yascha Mounk (2018) em The Populist Harm to Democracy: An Empirical Assessment. Segundo esses autores, essa definição captura tanto a orientação anti-elite dos populistas quanto seu modo distinto de organização política, que envolve a intimidação de instituições políticas e da sociedade civil em nome da promulgação da vontade popular.

Pois é…

Quando se pensava que nada poderia acontecer de pior, chegou a pandemia da Covid-19 (que não irá embora tão cedo).

Sei, sei, queremos ser otimistas. Todos querem. Mas não é possível fechar os olhos para as evidências.

Até um pessoal meio new age, desses que se diz terem voltado a pé de Woodstock, acaba ingenuamente reforçando, sem querer, posições bolsonaristas. Por outras razões (“naturebas”) eles são contra vacinas e contra a indústria pharmacêutica em geral, assim como são contra todos os grandes conglomerados empresariais e, no limite, contra o próprio capitalismo. São a favor de um novo mundo melhor, em harmonia com a natureza e só querem paz e amor na sociedade, bicho.

O ponto de interseção com o populismo-autoritário é que eles são contra “o sistema” (que acham que foi erigido para impedir seus sonhados amanhãs que cantam). São uma forma benigna de inconformismo ou de alternativismo – como a do John Zerzan ou do Daniel Quinn, às vezes, até do Hakim Bey – bem diferente das formas malignas (como são os populismos contemporâneos). Têm boas intenções, mas o Unabomber também tinha (e não se pode esquecer que Ted Kaczynski era igualmente antissistema).

Não deixa de ser irônico que estas almas pias, que apenas queriam uma Era de Aquário (que não veio), estejam involuntária e objetivamente prestando serviço a visões retrogradadoras – como a do bolsonarismo – que querem nos exilar em algum lugar do passado: não na idade de ouro do terceiro milênio e sim em um mundo fechado, semelhante ao do século 11 europeu (ou, quem sabe, do século 7 das arábias).

Por outro lado, o comportamento de parte das nossas elites econômicas, do médio empresariado (pois alguns grandes empresários, mais inteligentes, disfarçam seus propósitos com ações filantrópicas), sobretudo em cidades brasileiras de médio porte, revelou sua face desumana. Aquela galera dinheirista, cujo objetivo é vencer na vida a qualquer preço, está possessa com medidas de distanciamento social que prejudicam seus negócios. Estão prontos para uma revolução (até violenta) contra administradores públicos que não deixam seus empregados irem trabalhar para eles, prejudicando seus lucros (que é só o que eles veem). Chamam de ditadores os governantes que estão seguindo as orientações da OMS e da quase totalidade da comunidade científica mundial.

Eles pensam assim (embora não o digam): que se dane a morte de pessoas ou o sofrimento das vítimas e de suas famílias. Se forem pessoas jovens, poderão sempre ser substituídas por outras. Se forem pessoas idosas ou doentes, tanto faz: mais dia, menos dia, iam acabar morrendo mesmo.

Ou seja, há estamentos claramente antissociais – e, por isso, anti-humanizantes – na sociedade brasileira, que sempre foram elogiados como o motor da prosperidade econômica, aos quais se atribuía como virtude o tal “espírito animal” (embora a expressão original de Maynard Keynes, em 1936, tivesse outro sentido). Não ver nada pela frente, não ter a mínima dose de compaixão, seria uma qualidade própria do conquistador moderno, quer dizer, do explorador. Em nenhum sentido se trata, é claro, de espírito animal. Animais não-humanos não se comportam assim, predando sua própria espécie. Esse pessoal não quer inovar para superar a crise da pandemia. Quer voltar ao passado, para que tudo continue como antes. Estão doidinhos para tudo voltar logo ao normal.

Toda a parte escrita acima é uma preparação necessariamente pessimista (é nossa obrigação sermos pessimistas na análise) para a parte otimista que vem agora.

NOVOS MUNDOS HUMANOS, MAIS SEGUROS E MAIS LIVRES

Não valia tanto a pena assim manter o mundo pré-pandemia

O mundo nunca precisou tanto de inovadores. De pessoas (ou seja, redes) capazes de pensar e ensaiar novas formas de vida e convivência social nas novas circunstâncias da pandemia.

Quem não inova, só aguardando as vacinas para voltar aos velhos hábitos, não entendeu o que está acontecendo. Não haverá essa salvação universal. Mesmo com vacinação em massa (de 80% da população planetária), a imunidade coletiva vai demorar (pode nem ser alcançada em 2021). E não temos como rastrear contágios isolando clusters (por falta de testes adequados, em quantidade suficiente e com resultados tempestivos).

Temos que pensar e ensaiar novos mundos onde nossas atividades que envolvam outras pessoas (trabalho, estudo, pesquisa, esporte, lazer, culto, confraternização etc.) possam ser realizadas:

1) Sem aglomerações.

2) Sem que alguém seja obrigado a permanecer por muito tempo em locais fechados frequentados por pessoas com as quais não coabita.

3) Onde não haja necessidade de conversa frontal (a menos de dois metros de distância) entre pessoas que não coabitam.

4) Onde usar máscaras e lavar as mãos (ou usar álcool-em-gel) torne-se um hábito como andar vestido e calçado ou tomar banho.

Indústrias, escritórios, lojas comerciais, atividades agrícolas ou pecuárias, serviços, transportes coletivos, escolas, centros de pesquisa, igrejas, festas, eventos esportivos, shows etc., têm que ser redesenhados levando em conta as quatro condições listadas acima. Se as vacinas forem uma desculpa para violar essas regras, nada feito. No ano novo de 2022 estaremos comemorando (num cálculo otimista) a duplicação do número atual de infectados e mortos (no momento em que este artigo está sendo escrito já são 97 milhões, 417 mil e 786 infectados e 2 milhões, 86 mil e 91 mortos).

Hei! Acorde! Não é possível voltar ao mundo pré-pandemia. O que realmente importa é permanecer vivo para poder encontrar boas soluções. Não apenas para escaparmos do novo coronavírus, mas de outros vírus, superbactérias, superfungos, catástrofes ambientais, que virão cada com mais intensidade na medida em que não encontrarmos uma forma não-predadora de convivência com o meio ambiente natural e – atenção aqui! – com o meio ambiente social.

Arundhati Roy, em artigo publicado no Financial Times (03/04/2020), sabiamente escreveu:

“Não há retorno à normalidade.

Nossas mentes ainda estão correndo para frente e para trás, ansiando por um retorno à “normalidade”, tentando costurar nosso futuro ao nosso passado e recusando-se a admitir a ruptura. Mas a ruptura existe.

E em meio a esse terrível desespero, ele nos oferece a chance de repensar a máquina do apocalipse que construímos para nós mesmos. Nada poderia ser pior que um retorno à normalidade.

Historicamente, as pandemias forçaram os humanos a romper com o passado e imaginar um novo mundo. Esta não é diferente. É um portal, uma passagem entre um mundo e o próximo.

Podemos escolher atravessá-lo arrastando as carcaças de nosso preconceito e ódio, nossa avareza, nossos bancos de dados e ideias mortas, nossos rios mortos e céus esfumaçados atrás de nós.

Ou podemos atravessar com leveza, com pouca bagagem, prontos para imaginar um outro mundo. E prontos para lutar por ele”.

É isso aí. Porém no plural: outros mundos…

Quem sabe não faremos desse limão uma limonada, conseguindo inaugurar novos mundos humanos, mais seguros e mais livres? Sim, porque o velho mundo pré-pandemia não era assim tão humano, tão seguro e tão livre como desejaríamos que fosse (e como se valesse a pena ser mantido).

Quem sabe não caminharemos para novos padrões de organização e novos modos de regulação de conflitos, por exemplo, adotando módulos sociais de sobrevivência regidos pela democracia como modo-de-vida e pela ecologia como meio-de-relacionamento com todos os reinos de seres vivos. Isso exigirá arranjos menores com conexões mais seguras com outros arranjos formando grandes constelações. Cada constelação um mundo. Sim, serão muitos mundos. Não serão mundos normais (no sentido de iguais aos que conhecemos). Serão diferentes, quer dizer, anormais.

O mundo único já foi estilhaçado, não apenas por um padrão de produção e consumo insustentável e por modos de convivência não-solidários (que não têm como diretriz fundamental a sobrevivência de seus membros – como seria a definição maturaniana de um mundo social), mas pela mudança de época, ora em curso, da sociedade hierárquica para uma sociedade-em-rede.

Da sociedade-em-rede estamos colhendo agora as partes negativas. Mais conexões (conectividade) significa mais possibilidades de contágio (inclusive por agentes patogênicos). Mais interações (interatividade) significa mais cloning reprodutivo (imitamento, inclusive, de ações insustentáveis, ensejando, por exemplo, mais catástrofes decorrentes de mudanças climáticas). Mas chegou a hora de colher os resultados positivos de mais distribuição, mais conectividade e mais interatividade.

Sociedade-em-rede não é uma sociedade de multidões aglomeradas. Não é massa uniforme, não é rebanho seguindo para algum matadouro. É para todos, desde que seja para cada um, cada nodo, cada clusters, não de uma vez, mas um a um.

Chegou a hora de criarmos novos mundos anormais. Mundos-bebês em gestação, onde possamos viver nossas vidas mais plenamente humanas.

Agora não adianta mais: a única solução é o impeachment

As dificuldades dos conservadores com a democracia