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Como saber a verdade

Use o bom senso e o critério democrático

O conceito de verdade é tomado aqui não no seu sentido filosófico, mas na acepção usual da palavra, como o contrário de mentira, quer dizer, de adequação aos fatos, de aderência da descrição (ou explicação) à realidade (também no sentido corrente de ‘o que de fato aconteceu’). Por exemplo, quando se diz que a guerra foi instalada na Síria pelos grupos terroristas do jihadismo ofensivo islâmico, isso é verdade? Ou a verdade é que foi o próprio Bashar al-Assad que, temendo uma Primavera Síria, após as grandes manifestações sociais do início de 2011 – ou seja, temendo ter o mesmo destino de Hosni Mubarak, apeado do poder, em 11 de fevereiro de 2011, pelas multidões enxameadas na Praça Tahir, no Cairo – resolveu reprimir duramente os manifestantes desencadeando o conflito violento, quer dizer, a guerra quente, para matar a rede social?

A rigor, não se pode saber a verdade. Nem mesmo a ciência cuida disso. Todos os conceitos, teorias e descobertas científicas são limitados e aproximados, nunca podendo fornecer uma compreensão completa e definitiva da realidade e não havendo portanto uma correspondência exata entre as descrições e os fenômenos descritos (algo assim como uma verdade) e sim descrições limitadas e aproximadas da realidade.

Mas deve-se evitar explicações inconsistentes: por razões lógicas ou metodológicas (e. g., falta de coerência interna no corpo explicativo), por não poderem ser verificadas ou por serem impossíveis de falsificar. Por exemplo, as hipóteses de que as guerras entre países ou grupos refletem uma guerra cósmica entre potências espirituais, não são aceitas como explicação histórica porquanto não podem ser verificadas. Outro exemplo: o Estado Islâmico acha que esperará o exército inimigo em Dabiq, cuja derrota iniciará a contagem decrescente para o apocalipse – como falsificar tal delírio?

Ademais, deve-se evitar explicações mirabolantes, que convocam um número excessivo ou desnecessário de hipóteses. Entra aqui aquele princípio lógico-filosófico que foi chamado de “Navalha de Ocam”, segundo o qual não se deve agregar hipóteses desnecessárias a uma teoria; ou, dizendo de outra forma: pluralidades não devem ser postas sem necessidade; no original em latim: pluralitas non est ponenda sine neccesitate, embora esta frase não tenha sido realmente cunhada por Guilherme de Ocam (1285-1349) – e olha aí o conceito de verdade empregado no seu sentido corrente!

Vamos tratar aqui, portanto, do conceito de verdade no seu sentido corrente: diga a verdade ou o que você acha que é verdade e outras pessoas podem também achar que é verdade usando a sua razão honestamente: não minta, não invente, não delire, não engendre explicações falsas (mesmo que você queira desesperadamente acreditar que elas poderiam ou deveriam ser verdadeiras) só para corroborar o seu ponto de vista. Quanto a isso, siga sempre aquele primeiro conselho de Bertrand Russell (1959), proferido em uma entrevista à BBC:

“Quando você está estudando um assunto, ou considerando alguma filosofia, pergunte a si mesmo somente: Quais são os fatos? E qual a verdade que os fatos revelam? Nunca se deixe divergir pelo que você gostaria de acreditar, ou pelo que você acha que traria benefícios às crenças sociais se fosse acreditado. Olhe apenas e somente para quais são os fatos.”

Pois bem. De repente surgem várias versões sobre um fato. Isso é muito comum na guerra (não somente na guerra quente, mas também na guerra fria e na política como continuação da guerra por outros meios): pois, como se sabe, na guerra (seja ela qual for) a primeira vítima é sempre a verdade (no sentido corrente do termo: contendores não estão preocupados com o fato e sim com a versão que se consolidará para alterar a correlação de forças a seu favor).

Uma guerra de versões está acontecendo neste momento sobre o bombardeio americano a uma base aérea do ditador Assad, em Homs, na Síria. Hora das comunidades de inteligência, informação e segurança fazerem a festa tentando emplacar versões favoráveis aos projetos dos dirigentes dos Estados-nações ou dos grupos hierárquicos a que servem. E as mentes conspiratórias, que já começam a salivar e a babar dois minutos depois de qualquer notícia catastrófica, caem então de boca (elas se alimentam desse tipo de porcaria autocrática):

Não houve bombardeio, na verdade (!);

O bombardeio foi combinado com os russos;

O bombardeio foi de mentirinha (e por isso quase ninguém saiu ferido), só para Trump recuperar sua combalida popularidade;

A indústria armamentista armou tudo para vender um estoque vencido de Tomahawks;

Assad não tem armas químicas;

Foram os grupos terroristas que inventaram as armas químicas;

Foram os grupos terroristas que usaram gás Sarin (e está tudo fartamente provado, inclusive com fotos).

E por aí vai. Não há limite para a manipulação… da verdade! Os aparatos de inteligência (autocráticos) existem precipuamente para fazer isso: substituir a verdade (no sentido corrente do termo) pela narrativa verossimilhante. Eles não são afeitos ao que chamamos de inteligência democrática.

Onde está então a verdade? É claro que não se pode saber com certeza. Recomenda-se, nessas horas, usar o bom senso. Jamais aderir a teorias conspiratórias. Embora na política autocrática haja sempre conspiração, as teorias da conspiração são outra coisa. Elas urdem uma cadeia de eventos onde não há lugar para o acaso, para a falha na armadura, para o erro no cálculo: tudo sempre tem que obedecer infalivelmente a um plano traçado por alguém (de preferência pelo inimigo monstruoso e vil). A mente conspiratória é autocrática, pois onde não há lugar para o acaso, para a falha, para o erro, também não há lugar para a liberdade (e, consequentemente, para a democracia). Uma razão adicional é que as teorias conspiratórias dificilmente resistem à “Navalha de Ocam”.

Qual então o critério que devemos adotar para interpretar um fato. Bem, o primeiro deles, como assinalei acima, é o bom senso. Se alguém quer nos convencer de que todos os serviços de inteligência do mundo ocidental foram enganados pelos grupos terroristas que combatem Assad, de que não houve nenhum ataque com armas químicas (como insinuou Lula) ou de que todos estão mancomunados numa grande conspiração contra… contra quem mesmo? – então é sinal de que não devemos aderir a esse tipo de explicação (que pode ser espancada pelo simples bom senso).

O segundo critério é a democracia. Sim, a velha e combalida democracia representativa e formal, a democracia realmente existente nos países que a adotam. Entre uma explicação fornecida por uma democracia, como a Alemanha, a Suécia, a Irlanda ou a Austrália e uma explicação divulgada pela Rússia, pelo Irã, pela Síria ou pela Coréia do Norte, devemos sempre preferir a primeira. Por um simples motivo: nas democracias há mais luz do sol do que nas ditaduras (ou seja, há mais publicidade ou transparência, ensejando uma melhor accountability). Um governo democrático, de alguma forma, deverá prestar contas à sua população pelo que declara. Uma ditadura pode fabricar mentiras na calada da noite e ficar tudo por isso mesmo.

Aliás, nas ditaduras existe sempre um “ministério da verdade” para fazer isso: substituir a verdade pela versão conveniente. Lembremos do livro 1984, de George Orwell (1949): o Ministério da Verdade (em Novilíngua, Miniver) era um dos quatro ministérios que compunham o governo da Oceania. Analogamente aos demais ministérios (Ministério do Amor, Ministério da Fartura, Ministério da Paz), cujo objetivo era exatamente o oposto do que seus nomes indicavam, o Ministério da Verdade tinha como propósito inventar mentiras. Ao Miniver cabia falsificar a história. Em Novilíngua, porém, o nome é apropriado, já que “verdade” era aquilo que o Estado queria que fosse verdade. Até que todos acreditassem que “guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”.

verdade

Resumindo: é bem simples. Nunca acredite em governos ditatoriais ou sempre duvide do que declaram oficialmente chefes de Estados que não são Estados democráticos de direito. É claro que governos democráticos também podem mentir. Mas o risco (para a verdade) de acreditar no que eles dizem é infinitamente menor do que o risco de acreditar em ditaduras.

Se você, porém, não acredita em democracia, se você acha que a Nova Zelândia é mais ou menos a mesma coisa que a Arábia Saudita ou que o governo da Islândia pode mentir tanto – e tão impunemente – quanto o de Cuba, os conselhos contidos neste artigo não podem lhe ajudar. Não são critérios para autocratas e sim para pessoas que apostam na democracia (e a tomam como um valor: um valor universal). Se este for o seu caso, sinto muito, mas você está liberado para (ou condenado a) continuar repetindo versões conspiratórias.

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