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Conservadorismo, liberalismo-econômico e democracia (2)

Este artigo dá sequência ao post, de 22/06/2017, intitulado Conservadorismo, liberalismo-econômico e democracia (1).

Para melhor entendimento, repete-se excertos da introdução do primeiro artigo da série.

Na Terceira reflexão terrestre sobre a democracia já mostramos que a adesão à democracia não exige a profissão de fé em nenhum corpo de crenças, nem a militância orientada por qualquer doutrina sobre deus (ou religião), natureza (incluindo a chamada natureza humana) ou história, como fazem, respectivamente, o conservadorismo, o liberalismo-econômico e o marxismo. Como já foi escrito no artigo linkado acima:

A opção pela democracia não exige a adesão a um corpo de crenças como filtro para transformar caos em ordem, mas em uma ordem estabelecida pregressamente ou antes da interação propriamente política – transcendente, natural ou imanente: seja porque estaria de acordo com desígnios extra-humanos já estabelecidos (supra-humanos ou sobre-naturais) por uma ordem pré-existente, seja porque derivaria da natureza, seja porque se sintonizaria com a marcha da história ou com suas leis.

Ainda que os discursos sobre a democracia possam expressar conteúdos determinados de mundivisão, como modo de regulação de conflitos (o que ela é, realmente), a democracia é vazia. Isso não significa, entretanto, que determinadas concepções não possam facilitar ou dificultar a compreensão da democracia como ideia (para usar a expressão de John Dewey).

É óbvio que concepções coletivistas, sobretudo marxistas – baseadas na ideia de que a luta de classes é o motor da história – impedem a apreensão e a prática da democracia por levarem diretamente à autocracia. Neste artigo, porém, elas não serão abordadas.

Mas concepções conservadoras e liberais-econômicas, embora, em geral, não impeçam o processo de democratização, dificultam a apreensão do genos da democracia. O presente artigo e os seguintes da mesma série serão dedicados a análise dessas concepções.

Faz-se aqui uma distinção importante entre liberalismo-econômico (mais ou menos baseado nas concepções da Escola Austríaca, de von Mises e seus seguidores, porém com muitas variantes) e liberalismo-político (no sentido spinoziano do termo, do fim da política como liberdade e não como ordem). O liberalismo-político, no sentido acima, não só não impede a apreensão e a prática da democracia, como recupera o seu genos, estando implicado na reinvenção da democracia pelos modernos.

Existem muitos conservadorismos e muitos liberalismos-econômicos. Para os propósitos da presente apreciação, vamos tomar, como exemplo de pensamento conservador, os Dez Princípios Conservadores de Russell Kirk (1993) e, como exemplos de pensamento liberal-econômico, duas visões: uma com um viés, que se pretende mais libertário, apresentada nos Dez Princípios do Liberalismo Clássico de Nigel Ashford (2011); e, outra, esposada pelos Institutos Liberais, no Brasil e em alguns países, exposta nos seis princípios do liberalismo de Donald Stewart Jr (1988). Os que quiserem beber na fonte da Escola Austríaca devem ler o livro de Ludwig von Mises (1927), Liberalismo segundo a tradição clássica.

Tomamos aqui as visões de Kirk, Ashford e Stewart, codificadas como credo ou manual, pela simples razão de que elas são usadas, nesse formato, na catequese dos iniciantes e nosso propósito é analisar até que ponto a inseminação dessas ideias-implante desabilita as pessoas para a compreensão da democracia.

Neste segundo artigo da série vamos examinar o pensamento conservador, apresentado por Russell Kirk, interpolando alguns comentários.

KIRK

Dez Princípios Conservadores por Russell Kirk

Não sendo nem uma religião nem uma ideologia, o conjunto de opiniões designado por conservadorismo, não possui nenhuma “escritura sagrada” e nenhum “O Capital” para fornecer um dogma. Por mais que se possa estabelecer em que os conservadores acreditam, os princípios primordiais do convencimento conservador foram derivados a partir do que escritores renomados e homens públicos conservadores professaram durante os dois séculos passados. Após algumas observações introdutórias neste tema geral, eu listarei dez destes princípios conservadores.

Talvez seja mais apropriado, na maior parte das vezes, usarmos a palavra “conservador” como um adjetivo. Isto porque não existe nenhum “Modelo Conservador”, e o conservadorismo é a negação da ideologia: é um estado da mente, um tipo de caráter, uma maneira de olhar a ordem social civil.

A atitude que nós chamamos de “conservadorismo” é mantida por um conjunto de sentimentos ao invés de um sistema de dogmas ideológico. É quase completamente verdadeiro que um conservador pode ser definido como uma pessoa que se pensa como tal. O movimento ou o conjunto de opiniões conservadoras pode acomodar uma diversidade considerável de pontos de vista em muitos temas, não havendo nenhum “Test Act” ou “Thirty-Nine Articles” do credo conservador.

Em essência, o conservador é simplesmente alguém que considera as coisas permanentes mais agradáveis do que o “Chaos” e a “Old Night”. (Contudo os conservadores sabem, com Burke, que saudáveis “mudanças são os meios de nossa preservação”). Uma experiência de continuidade histórica das pessoas, diz o conservador, oferece uma guia para a política muito melhor do que os projetos abstratos de filósofos de botequim. Mas naturalmente há mais a motivar o conservador do que esta atitude geral.

Não é possível redigir um catálogo completo das convicções conservadoras; não obstante, eu ofereço-lhe, resumidamente, dez princípios gerais. Parece seguro dizer que a maioria dos conservadores subscreveria a maior parte destas máximas. Em várias edições de meu livro The Conservative Mind, eu listei determinados cânones do pensamento conservador — a lista difere um tanto de edição em edição; na minha antologia The Portable Conservative Reader eu ofereço variações sobre este tema. Agora eu lhes apresento um sumário das suposições conservadoras que diferem um tanto de meus cânones destes dois livros. Especificamente, a diversidade de maneiras em que as visões conservadoras podem encontrar expressão é por si só uma prova de que o conservadorismo não é nenhuma ideologia fixa. Que princípios particulares os conservadores enfatizam em uma época específica, variarão com as circunstâncias e as necessidades dessa era. Os seguintes dez artigos de crença refletem as ênfases dos conservadores na América de hoje em dia.

O que Kirk chama de conservadorismo pode não ser uma ideologia no sentido de um corpo doutrinário determinado e codificado, mas é impossível alegar que não se trata de uma ideologia (no sentido clássico mesmo do termo, como uma realidade ideal criada por uma mundivisão, para tentar resolver, no mundo da idealidade, problemas que não podem ser adequadamente resolvidos, por quem tem tal mundivisão, no mundo da materialidade).

1- Ordem moral

Primeiramente, o conservador acredita que existe uma ordem moral duradoura. Que a ordem está feita para o homem, e o homem é feito para ela: a natureza humana é uma constante, e as verdades morais são permanentes.

A palavra ordem significa harmonia. Há dois aspectos ou tipos de ordem: a ordem interna da alma, e a ordem exterior da comunidade. Há vinte e cinco séculos, Platão ensinou esta doutrina, mas mesmo os letrados de hoje em dia encontram dificuldades em compreender. O problema da ordem tem sido uma preocupação central dos conservadores desde que o termo conservador passou a fazer parte da política.

Nosso mundo do século vinte experimentou as conseqüências hediondas do colapso da crença em uma ordem moral. Como as atrocidades e os desastres da Grécia no quinto século antes de Cristo, a ruína de grandes nações em nosso século mostra-nos o poço em que caem as sociedades que se enredam em ardilosos interesses próprios, ou engenhosos controles sociais, como alternativas mais palatáveis a uma antiquada ordem moral.

Foi dito pelos intelectuais de esquerda que o conservador acredita, com o coração, que todas as questões sociais são questões da moralidade privada. Compreendida corretamente, esta indicação é bastante verdadeira. Uma sociedade em que os homens e as mulheres são governados pela opinião em uma ordem moral perene, por um sentido forte de certo e errado, por convicções pessoais sobre a justiça e a honra, será uma boa sociedade — não importa a maquinaria política que utilize; quando uma sociedade em que os homens e as mulheres estão moralmente a deriva, ignorantes das normas, e movidos primariamente pela satisfação dos apetites, será uma má sociedade — não importando quantas pessoas votem ou quão liberal seja sua constituição.

“Primeiramente – diz Kirk – o conservador acredita que existe uma ordem moral duradoura”. Aqui fica claro que se trata de uma crença – uma ideologia stricto sensu: o conservador acredita em alguma coisa, não se comporta – ou interage – desta ou daquela maneira. Ele acredita, quer dizer, adota um filtro para transformar caos em ordem. É significativo que o primeiro princípio conservador de Kirk seja, justamente, a ordem (entre Hobbes e Spinoza, ele ficaria, sem qualquer dúvida, com o primeiro – o que, de pronto, já aponta para fundamentos autocráticos, não democráticos, do seu pensamento).

Uma ordem moral? Como se teria estabelecido – ou quem teria estabelecido – essa ordem moral? Ela seria imanente ao ser humano, à natureza ou à história? Ou seria transcendente (como uma potência super-humana e extra-social – um deus, por exemplo – com capacidade de intervir na história ou de dar o primeiro piparote)?

Segundo Kirk essa ordem moral seria duradoura, posto que inerente à natureza humana (?) que, coerentemente, seria constante. Por isso que as “verdades morais” seriam permanentes. Seria uma ordem interna da alma, diferente da ordem exterior da comunidade (esta separação é um ponto importante, que Kirk não explora no texto que analisamos, mas vamos voltar ao tema no próximo parágrafo). Todo pensamento conservador está baseado nesta ideia de ordem. É evidente que, a não ser que se admita, como premissa evidente por si mesma, que haja um ordenador extra-humano do mundo humano, um deus criador do ser humano, esta ordem não passa de uma ordem estabelecida pela visão (conservadora) e não uma ordem pré-existente à visão, capaz de autorizá-la e validá-la. Ou seja, os conservadores não obtiveram essa visão da ordem a partir de alguma descoberta sobre a natureza humana (seja lá o que for). Simplesmente proclamaram que tal ordem existe.

Não vamos entrar agora do debate infindável sobre a natureza da natureza humana (uma controvérsia que não se resolve sem se chegar a uma acordo sobre o que é humano: o ser biológico, o indivíduo da espécie Homo Sapiens, ou do gênero Homo ou o complexo biológico-cultural, o ente social que chamamos de pessoa)? Por enquanto, fiquemos com a distinção entre dois tipos de ordem (sendo que ordem significa, para Kirk, harmonia – e aqui há outro problema, que examinaremos logo adiante): a ordem interna da alma e a ordem exterior da comunidade. Para justificar tal distinção, o autor alega que “Platão ensinou esta doutrina” (olha aí a ideologia novamente). Está correto. Platão ensinou mesmo esta doutrina, de uma ordem anterior (ontologicamente) ao mundo, uma ideia, uma forma perfeita, pré-existente, ex ante à interação, que foi se corrompendo com a interação. Mas esse pensamento leva, necessariamente, à autocracia, não à democracia. Por isso que Platão era um adversário da democracia. O mundo real (fenomênico), o conjunto de eventos que ocorrem sempre em razão de algum tipo de interação, não é bem o verdadeiro mundo, como modelo ou arquétipo, existente antes da interação, ou seja, o mundo das formas ideais universais que existem (ou existiam) antes da corrupção do tempo… Por isso, os que têm acesso a esse mundo das formas por meio do conhecimento (episteme) têm o direito – e o dever, supõe-se – de dirigir os que não o têm e que se debatem no particular e no precário mundo das opiniões (doxa). Este é o fundamento do governo dos sábios de Platão, como se sabe, um regime político (a rigor, a-político) autocrático, baseado na separação entre sábios e ignorantes (em que os segundos estão condenados a ser dirigidos pelos primeiros).

A ideia de ordem como harmonia, entretanto, traz outro problema. A harmonia é um ideal extra-político. Quem precisa de harmonia é a autocracia (para que cada coisa fique no seu melhor lugar, como as partes de um quadro de Velázquez – dizia o fundador da Opus Dei, Josemaría Escrivá de Balaguer – e não saia saliente por aí mudando de posição). A democracia nunca pretendeu materializar um ideal de harmonia capaz de se expressar socialmente na forma política do consenso (derivado do conhecimento certo sobre qualquer ordem). Porque a democracia não tem como finalidade consertar a sociedade e pacificar os homens que dissentem por terem interpretações divergentes do bem a ser alcançado a partir de uma fórmula harmonizante dos conflitos. A democracia é, justamente, uma convivência com o conflito (portanto, desarmônica) e uma forma não guerreira de regulá-lo: mas mantendo o dissenso, não suprimindo-o.

A boa sociedade de Kirk, segundo suas próprias palavras, é aquela em que “os homens e as mulheres são governados pela opinião em uma ordem moral perene, por um sentido forte de certo e errado... [não] uma sociedade em que os homens e as mulheres estão moralmente à deriva, ignorantes das normas, e movidos primariamente pela satisfação dos seus apetites…” (esta seria, para ele, a má sociedade). Esse sentido forte de certo e errado se expressaria, por exemplo, por “convicções pessoais sobre a justiça e a honra”. Mas trata-se realmente de uma opinião? Ou de uma crença na ordem moral derivada de um conhecimento (da crença)? Se Kirk fala das pessoas “ignorantes das normas”, parece que se trata mesmo de conhecimento (das normas), ou seja, de uma opinião que só pode ser válida quando expressa um conhecimento verdadeiro, uma orto-doxa (que é a negação da doxa, que é sempre qualquer doxa).

Mas se há uma ordem moral duradoura, inerente à natureza humana – já que é a ordem que “está feita para o homem e o homem é feito para ela” – como os homens podem deixar de cumpri-la entregando-se aos seus apetites e ignorando-a? E se os homens podem ignorá-la, a despeito de essa ordem moral estar inscrita na sua natureza, trata-se então de fazê-los conhecê-la? Tudo indica que sim. Ou seja, existe uma ordem correta, mas para adotá-la como critério axiológico-normativo, aos homens não basta se comportarem de acordo com a sua natureza: eles precisam conhecê-la discricionariamente, não por comercium spiritum e sim pela apreensão de um nexus rerum – o que significa conhecer um discurso sobre ela. Ora, isso significa que, para Kirk, há um conteúdo a ser apreendido. Como fez Platão, é preciso ensinar-lhes (aos homens) uma… doutrina (sim, este foi o termo empregado por Kirk).

A ideologia da ordem é uma doutrina que temos que ensinar aos homens para que sua sociedade seja boa. Este primeiro princípio de Kirk revela um cognitivismo, não um interativismo. É um apreender alguma coisa e não um aprender na vida comum (pela experiência de interagir no fluxo da convivência social, mudando com o mundo, como dizia Maturana). Ou seja, é uma ideologia de professores que, como toda ideologia de professores, é uma kabbalah que substitui a árvore (ou ordem) da vida pela árvore (ou ordem) do conhecimento sobre a vida (que alguém – eis o ponto – ordenou, posto que ela não pode ser aprendida espontaneamente por todos, mas deve ser ensinada ou apreendida por força de um ensinamento). Ora, isso não é uma ordem emergente da interação, bottom up e sim uma ordem pré-existente à interação que deve ser estabelecida top down pelos que conhecem as normas capazes de levar a sociedade a ser uma sociedade boa.

Por vários motivos – poder-se-ia dizer, por todos os motivos decifráveis do seu discurso – esse primeiro princípio de Kirk dificulta a compreensão da democracia. Não apenas dificulta: é um princípio que legitima claramente a autocracia (ou seja, um regime baseado na ordem, não na liberdade).

2 – Costume, convenção e continuidade

Segundo, o conservador adere ao costume, à convenção, e à continuidade. São os princípios antigos que permitem que as pessoas vivam juntas pacificamente. Os demolidores dos costumes destroem mais do que sabem ou desejam. É através da convenção, palavra tão abusada nos nossos tempos, que conseguimos evitar disputas perpétuas sobre direitos e deveres: as leis, em sua essência, são um conjunto de convenções. Continuidade é o agregado dos meios de se ligar uma geração à outra, e ela importa tanto para a sociedade quanto para o indivíduo. Sem ela, a vida é sem sentido. Quando revolucionários bem sucedidos apagaram velhos costumes, ridicularizaram antigas convenções e quebraram a continuidade das instituições sociais, neste mesmo instante descobriram a necessidade de repô-los por novos, mas este processo é lento e penoso, e a nova ordem social que eventualmente emerge nestas circunstâncias pode ser muito inferior à velha ordem que os radicais superaram em sua ardorosa busca pelo “Paraíso Terreno”.

Conservadores são campeões dos costumes, convenção e continuidade, porque eles preferem o diabo que conhecem do que àquele que não. Ordem, justiça e liberdade, eles acreditam, são produtos artificiais de uma longa experiência social, o resultado de séculos de tentativas, reflexão e sacrifício. Desta forma, o corpo social é um tipo de corporação espiritual, comparável à Igreja, podendo mesmo ser chamada de comunidade de almas. A sociedade humana não é nenhuma máquina para ser tratada mecanicamente. A continuidade, o sangue da vida de uma sociedade, não pode ser interrompida. O lembrete de Burke sobre a necessidade de mudanças prudentes está nas mentes dos conservadores. Mas a mudança necessária, argumentam os conservadores, deve ser gradual e discriminatória, nunca removendo antigos interesses de uma vez.

Kirk não explica por que são os “princípios antigos que permitem que as pessoas vivam juntas pacificamente”. Se a antiguidade a que ele se refere for a do que chamamos de civilização, a afirmação é falsa. Nos últimos cinco a seis milênios a realidade foi, na maior parte do tempo, a da guerra e não a da paz. Novamente há aqui o mito da velha ordem, uma ordem que seria melhor no passado do que no presente (sim, é puro platonismo). Ainda que ele diga, em seguida, num aparente paradoxo, que a ordem (assim como a justiça e a liberdade) seja produto artificial de uma longa experiência social.

Mas aí aparece uma metáfora bem mais complicada, quando ele diz que “o corpo social é um tipo de corporação espiritual, comparável à Igreja, podendo mesmo ser chamada de comunidade de almas”. Corporação? Igreja? Isso, talvez, seja para dizer que o tal “corpo social” cuja “continuidade é o sangue da vida de uma sociedade… não pode ser interrompida”. É uma declaração contra a mudança; ou, pelo menos, contra a mudança brusca (o conservadorismo é um pensamento erigido contra a perspectiva revolucionária), a favor das “mudanças prudentes” (Burke, contra a revolução francesa): “a mudança necessária deve ser gradual… nunca removendo antigos interesses de uma vez”.

É uma narrativa de manutenção, contra a imprevisibilidade da política e da invenção de um futuro que não seja repetição (no máximo aperfeiçoada) de passado. Os conservadores seriam guardiães da civilização (embora ele não use a palavra, é disso que ele fala).

3 – Prescrição

Terceiro, os conservadores acreditam no que pode ser chamado o princípio da prescrição. Conservadores percebem que as pessoas modernas são anãs sobre os ombros de gigantes, capazes de ver mais longe que seus ancestrais apenas por conta da grande estatura daqueles que os precederam no tempo. Portanto, os conservadores freqüentemente enfatizam a importância da prescrição, isto é, das coisas estabelecidas pelo uso desde tempos imemoriais, de modo que a mente humana não busca os seus contrários. Existem direitos cuja principal sanção é sua antiguidade, estando os direitos de propriedade, freqüentemente, aí incluídos. Da mesma forma, nossa moralidade é em grande parte prescritiva. Os conservadores argumentam ser bastante improvável que nós, os modernos, façamos alguma brava descoberta nos campos da moralidade, política ou gosto. É perigoso ter de ponderar cada problema com base no julgamento e na racionalidade pessoal. O indivíduo é tolo, mas a espécie é sábia, nos ensina Burke. Em política fazemos bem em seguir por precedência, preceito e mesmo pré-julgamento, pois a humanidade adquiriu uma sabedoria muito maior do que qualquer racionalidadezinha de um único homem.

Novamente o mito platônico. Os gigantes estão no passado (quando a ordem estava menos corrompida pela vida comum – sim, ele não diz isso, mas a inferência se impõe no contexto do seu discurso). Os exemplos morais da antiguidade são superiores aos de agora. Não há nada que sustente tais alegações a não ser a vontade de enunciá-las. Ele afirma “ser bastante improvável que nós, os modernos, façamos alguma brava descoberta nos campos da moralidade, política ou gosto”. Todas as evidências apontam que novas descobertas estimulam mais descobertas, mas o que Kirk está afirmando é que nos campos moral, político e estético (pois no campo do conhecimento, seria ridículo fazer tal afirmação) isso não é verdade.

Pode-se até admitir que, nos campos moral e estético, seja aceitável que alguém pense assim (por preferência ou gosto), mas não no campo político. Afirmá-lo no campo político seria o mesmo que dizer que não é possível inventar novos modos de regulação de conflitos que sejam melhores do que os modos antigos; por exemplo, seria como dizer que quase quatro milênios de autocracia, experimentados antes dos atenienses inventarem a democracia. são melhores do que os quinhentos anos de democracia dos antigos e dos modernos. Pois na maior parte do tempo antigo (considerando o tempo da chamada civilização) vivemos sob autocracias (sendo que a democracia só foi ensaiada em 96 minutos, se um dia – 24 horas – corresponder a seis milênios de história).

Tal como Burke – considerado o pai do conservadorismo político – a democracia não é uma coisa boa. Burke chegou mesmo a afirmar que ela é a coisa mais vergonhosa do mundo. Não é preciso argumentar mais para mostrar que este é um pensamento que valida a autocracia.

4 – Prudência

Quarto, os conservadores são guiados por seu princípio da prudência. Burke concorda com Platão que para o estadista, a prudência é a maior dentre as virtudes. Qualquer medida pública deve ser avaliada por suas prováveis conseqüências de longo prazo, e não meramente por alguma vantagem ou popularidade temporárias. Os liberais e os radicais, diz o conservador, são imprudentes: perseguem seus objetivos sem dar muita atenção ao risco de que novos abusos sejam piores do que os males que esperam eliminar. Como John Randolph de Roanoke bem colocou, a providência move-se lentamente, mas o diabo sempre se apressa. Sendo complexa a sociedade humana, os remédios não podem ser simples se devem ser eficazes. O conservador afirma que age somente após suficiente reflexão, pesando as conseqüências. Reformas, assim como as cirurgias, são perigosas quando repentinas e profundas.

Mais uma vez Platão, o autocrata. Ainda que não se possa reprovar o conselho da prudência (que, como caldo de galinha, não faz mal a ninguém), dizer que ela é a maior virtude do estadista revela uma concepção de política: a política feita a partir do Estado é a que realmente conta, a política ex parte principis é considerada em detrimento da política ex parte populis (sem a qual não pode haver democracia). Ora, a politics, diferentemente da policy, não pode ser orientada pela prudência, posto que ela não é feita, no seu conjunto, por um ser de razão, capaz de uma moralidade informada pela experiência passada e tendo em vista as consequências das ações no longo prazo. A politics (democrática) é feita por qualquer um do povo, não pelo sábio ou pelo bom governante que traça planos para (conduzir) os outros. É o entrechoque, a combinação e recombinação, as convergências e divergências, a polinização mútua das opiniões que gera o imprevisível resultado democrático, não o plano, a ação política intencional que projeta e conhece o resultado antes da interação. Desnecessário acrescentar qualquer coisa para mostrar que este é um pensamento avesso à democracia.

5 – Diversidade

Quinto, os conservadores prestam atenção ao princípio da diversidade. Eles sentem afeição pela intrincada proliferação de instituições sociais e de modos de vida estabelecidos de longa data, a distingui-las da uniformidade reducionista e do igualitarismo dos sistemas radicais. Para a preservação de uma saudável diversidade em qualquer civilização, nela devem sobrevir ordens e classes, diferenças em condições materiais e diversos modos de desigualdade. As únicas formas verdadeiras de igualdade são aquelas do Julgamento Final e aquelas perante um justo tribunal da lei; todas as demais tentativas de nivelamento irão conduzir, na melhor das hipóteses, à estagnação social. A sociedade requer liderança honesta e capaz; e se as diferenças naturais e institucionais forem destruídas, nesta mesma hora algum tirano ou um desprezível representante de oligarcas criará novas formas de desigualdade.

E mais uma vez aqui nos deparamos com essa conversa de “longa data”, um pensamento mítico que não merece mais comentários. Vamos nos concentrar na curiosa noção de diversidade de Kirk. Imagina-se que Kirk está se debatendo com os fantasmas do coletivismo e do igualitarismo, o que seria correto. Mas logo em seguida ele esclarece que essa “saudável diversidade em qualquer civilização” (eis que surge afinal a palavra-chave: ‘civilização’) é feita por “ordens e classes” que sobrevêm. Mas sobrevêm de onde? Ele quer dizer que as pessoas não devem ser – porque não são – iguais, mas combater o igualitarismo não é combater a igualdade (política). Se não há igualdade política não pode haver democracia. Esse pensamento não é apenas conservador, mas radicalmente autocrático. Segundo ele, “a sociedade requer liderança”, mas por que requer? E quem é “a sociedade”  – uma abstração – que requer alguma coisa? E por que precisaríamos de liderança?

O mais grave porém vem na parte final da última frase: “se as diferenças naturais e institucionais forem destruídas, nesta mesma hora algum tirano…” Quais seriam as tais “diferenças naturais”? As que alocam as pessoas em diferentes “ordens” ou “classes” antes da interação? Mas como se formaram grupos, sejam ordens ou classes, sem que houvesse clustering (uma fenomenologia da interação)? Eles foram determinados por deus (sendo este o significado do “sobrevir”)? Parece que Kirk pensou em alguma coisa parecida com isso quando escreveu que “as únicas formas verdadeiras de igualdade são aquelas do Julgamento Final e aquelas perante um justo tribunal da lei”. Julgamento Final? O que seria isso? Esta é uma noção que só faz sentido num contexto religioso, que pressupõe uma instância sobre-humana (a sede de toda moral) julgando os humanos.

6 – Imperfeição

Sexto, os conservadores se purificam por seu princípio da imperfeição (“imperfectability”). A natureza humana sofre irremediavelmente de determinadas falhas graves, o sabem os conservadores. Em sendo o homem imperfeito, nenhuma ordem social perfeita pode ser criada. Por conta de seu desassossego, a humanidade se rebelaria sob qualquer dominação utópica, e iria, mais uma vez, eclodir em violento descontentamento — ou então iria exaurir-se em tédio. Perseguir uma utopia é terminar em desastre, diz o conservador: nós não fomos feitos para coisas perfeitas. Tudo que podemos razoavelmente esperar é uma sociedade toleravelmente ordenada, justa, e livre, na qual alguns males, desajustamentos e sofrimentos estarão sempre presentes. Por intermédio de reformas prudentes podemos preservar e melhorar esta ordem tolerável. Mas se as antigas salvaguardas institucionais e morais de uma nação forem negligenciadas, então o impulso anárquico da humanidade será liberado de suas amarras: “a cerimônia da inocência estará perdida.” As ideologias que prometem a perfeição do homem e da sociedade converteram uma grande parte do mundo do século vinte em um inferno terrestre.

Este sexto princípio de Kirk revela o genos autocrático do seu pensamento. Começa dizendo que “os conservadores se purificam”: a ideia de purificação, de reparação do que é impuro, de limpeza de toda sujeira, é um dos principais indicadores de autocracia. Ele diz que a tal “natureza humana” (sim, tudo está baseado nessa imaginada natureza) “sofre irremediavelmente de determinadas falhas graves”. Não são falhas contingentes, não são erros de percurso e sim falhas que já vêm embutidas na nossa natureza, como se fossem defeitos de fábrica. Ou, quem sabe, impurezas adquiridas em razão do pecado original (Kirk não diz isso, mas faria sentido no contexto religioso do seu pensamento). Pior: essas falhas são irremediáveis. Estamos condenados a elas (possivelmente porque fomos condenados por deus após a expulsão do paraíso).

Kirk quer combater a utopia, o que estaria correto. Mas, para tanto, não é necessário supor que haja alguma imperfeição em nossa natureza. Só o homem seria imperfeito, ou toda a criação carregaria esse fardo? Se não, por que, no conjunto dos seres vivos, a natureza humana viria com essas falhas graves? Ele não explica.

Kirk afirma que “se as antigas salvaguardas institucionais e morais de uma nação forem negligenciadas, então o impulso anárquico da humanidade será liberado de suas amarras” e… perderemos “a inocência”. Novamente aqui aparece essa história de “antigas salvaguardas”. De onde viria esse impulso anárquico da humanidade? Estaria ele também inscrito na nossa natureza? Só os seres humanos teriam tal impulso ou também os demais seres vivos teriam tendência à anarquia? A ideia de perda da inocência nos remete diretamente a um estado anterior, edênico, da humanidade.

Como todo pensamento hierárquico e autocrático, o conservadorismo de Kirk está baseado no mito.

7 – Liberdade <=> Propriedade

Sétimo, conservadores estão convencidos de que a liberdade e a propriedade são intimamente relacionadas. Separe a propriedade da possessão privada e o Leviatã se transformará no mestre de todos. Por sobre as fundações da propriedade privada são erigidas grandes civilizações. Quanto mais difundida for a posse da propriedade privada, mais estável e produtiva será uma comunidade. Nivelamento econômico, crêem os conservadores, não é sinônimo de progresso econômico. Acumular e gastar não são os principais objetivos da existência humana; mas uma base econômica sadia para o indivíduo, a família e a comunidade deve ser almejada.

Henry Maine, em sua “Village Communities”, expõe eloquentemente a causa da propriedade privada em distinção à propriedade comunal: “Ninguém tem a liberdade de atacar as diversas formas de propriedade privada e, ao mesmo tempo, dizer que valoriza a civilização. A história de ambas não pode ser desentrelaçada.” A instituição da propriedade privada tem sido um instrumento poderoso para ensinar responsabilidade a homens e mulheres, para prover motivos para a integridade, para suportar a cultura geral, para levantar a humanidade acima do nível do mero penoso laborar, por permitir o ócio para o pensar e a liberdade para agir. Para poder reter os frutos do trabalho do indivíduo e torná-los permanentes; para poder legar a propriedade de alguém à sua posteridade; para poder erguer-se da condição natural de opressiva pobreza à segurança da realização duradoura; para ter algo que realmente pertença a si mesmo — estas são vantagens difíceis de negar. O conservador reconhece que a posse da propriedade impõe certos deveres ao proprietário e aceita estas obrigações morais e legais alegremente.

Note-se que a liberdade só aparece em sétimo lugar na listagem de Kirk. E, quando aparece, já vem co-implicada com a propriedade. A propriedade já havia aparecido antes, no terceiro princípio, quando Kirk escreve que “existem direitos cuja principal sanção é sua antiguidade, estando os direitos de propriedade, freqüentemente, aí incluídos”. Na verdade ele quer falar da propriedade privada e não da liberdade (a não ser a liberdade de se contrapor a sistemas que abolem a propriedade privada). Kirk não faz a menor ideia de liberdade, que é sempre a liberdade de criar o que ainda não existe e de ser infiel à sua origem. Pelo contrário, ele apela recorrentemente à fidelidade a tudo que está em algum lugar do passado e quanto mais remoto for esse passado, melhor. Repetir os costumes, as normas, as leis, os gostos e… desgraçadamente, também a política dos antigos é melhor do que inovar nesses campos.

O pensamento de Kirk não é apenas mítico, mas também sarcerdotal: como se sabe, o sacerdote, ao contrário do profeta (que inventa futuro), repete passado criando sulcos para fazer escorrer por eles as coisas que ainda virão.

8 – Ações comunitárias voluntárias

Oitavo, conservadores suportam ações comunitárias voluntárias, tanto quanto se opõem ao coletivismo involuntário. Embora os americanos têm sido fortemente atrelados à privacidade e aos direitos privados, também são um povo notável pelo espírito bem sucedido de comunidade. Em uma comunidade genuína, as decisões que afetam mais diretamente à vida dos cidadãos são feitas localmente e voluntáriamente. Algumas destas funções são realizadas por instituições políticas locais, outras por associações privadas: desde que permaneçam locais e sejam acordadas por aqueles afetados, elas constituirão uma comunidade saudável. Mas quando estas funções passam, “naturalmente” ou por usurpação, à autoridade central, a comunidade estará em sério perigo. O que quer que seja benéfico e prudente na democracia moderna é feito a partir da vontade cooperativa. Se, então, em nome de uma Democracia abstrata, as funções da comunidade são transferidas a uma direção política distante — por que o governo real exercido pelo consentimento dos governados dá vez a um processo uniformizante que é hostil à liberdade e à dignidade humana.

Pois nenhuma nação é mais forte do que as pequenas e numerosas comunidades de que é composta. Uma administração central, ou um conjunto de seletos administradores e servidores civis, embora bem intencionados, não podem conceder justiça, prosperidade e tranquilidade a uma massa de homens e mulheres desprovidos de suas antigas responsabilidades. Essa experiência foi feita antes; e foi desastrosa. É o exercício de nossos deveres na comunidade que nos ensina a prudência, a eficiência e a caridade.

Este talvez seja o único princípio aceitável do pensamento de Kirk. Mas é preciso notar que ele pode apontar para uma espécie de localismo não-cosmopolita, ou seja, não para um glocalismo e sim para um localismo conservador, que aceita a localização do global desde que ela não implique a globalização do local. É um pensamento que se adéqua ao comportamento político do Meio-Oeste americano, que quer manter as tradições e os costumes locais contra a globalização e que se recusa a ver que o local conectado é o mundo todo. Embora correto, esse pensamento pode dar margem a comportamentos políticos antidemocráticos, que estiveram na base tanto da eleição de Trump quanto da fundação da Al Qaeda.

9 – Restrições ao poder e às paixões

Nono, o conservador percebe a necessidade de prudentes restrições ao poder e às paixões humanas. Politicamente falando, o poder é a habilidade de realizar a vontade de um não obstante a vontade dos demais. Um estado onde um indivíduo ou pequeno grupo seja capaz de dominar a vontade de seus concidadãos sem qualquer supervisão, será despótico, seja denominado monárquico, aristocrático ou democrático. Quando cada pessoa reivindica ser um poder para si mesmo, então a sociedade cai em anarquia. A anarquia nunca dura por muito tempo, sendo intolerável para todos, e contrário ao inelutável fato de que algumas pessoas são mais fortes e mais inteligentes do que seus vizinhos. À anarquia sucede a tirania ou a oligarquia, em que o poder é monopolizado por uns poucos.

O conservador esforça-se para de tal forma limitar e balancear o poder político que a anarquia ou a tirania não possam surgir. Em cada era, não obstante, homens e mulheres são tentados a superar as limitações sobre o poder, por conta de alguma vantagem provisória almejada. É característico do radical pensar o poder como uma força para o bem — tão logo o poder caia em suas mãos. Em nome da liberdade, os revolucionários franceses e russos aboliram as antigas restrições ao poder; mas o poder não pode ser abolido; encontra sempre seu caminho para as mãos de alguém. Esse poder que os revolucionários tinham pensado ser opressivo nas mãos do antigo regime transformou-se, muitas vezes, tão tirânico quanto o anterior nas mãos dos novos mestres radicais do estado.

Sabendo ser a natureza humana uma mistura de bem e de mal, o conservador não deposita sua confiança na mera benevolência. Limitações constitucionais, verificações e contrapesos políticos, o cumprimento adequado das leis, a antiga e intricada teia das restrições por sobre a vontade e os apetites — isto é o que o conservador aprova como instrumentos da liberdade e da ordem. Um governo justo mantém uma tensão saudável entre as reivindicações da autoridade e as reivindicações da liberdade.

Este nono princípio é um libelo contra a anarquia. É curioso que Kirk – a pretexto de se opor ao despotismo – nivele monarquia, aristocracia e democracia. Isso indica que ele não tem uma visão da democracia como um valor e como realização do ideal de liberdade como autonomia. Se um governo democrático pode ser despótico, então não será mais democrático.

O último parágrafo, porém, revela novamente a estrutura do pensamento autocrático de Kirk. Quando ele diz que “a natureza humana [é] uma mistura de bem e de mal”, está dizendo que o homem tem de ser consertado pela civilização: pelo “cumprimento adequado das leis, a antiga e intrincada teia das restrições por sobre a vontade e os apetites” (sim, ele tem algum problema com os apetites). Não está dito aqui, mas pode-se pressupor que, para Kirk, há uma besta fera dentro do ser humano que precisa ser domada.

10 – Permanência e Progressão

Décimo, o pensador conservador compreende que essas permanências e mudanças devam ser reconhecidas e reconciliadas em uma sociedade vigorosa. O conservador não é oposto à melhoria social, embora duvide que haja algo como uma força geradora de algum Progresso místico, com “P” maiúsculo, operando no mundo. Quando uma sociedade está progredindo em alguns aspectos, geralmente está declinando em outros. O conservador sabe que toda sociedade saudável é influenciada por duas forças, que Samuel Taylor Coleridge chamou de sua Permanência e sua Progressão. A Permanência de uma sociedade é formada por aqueles interesses e convicções perenes que nos dão a estabilidade e a continuidade; sem essa Permanência, as origens profundas da sociedade são desfeitas, que cai em anarquia. A Progressão em uma sociedade é esse espírito e esse conjunto de talentos que nos incitam à reforma e à melhoria prudentes; sem essa Progressão, um povo irá estagnar.

Consequentemente o conservador inteligente esforça-se para reconciliar as demandas da Permanência e as da Progressão. Pensa que o liberal e o radical, cegos às justas reivindicações da Permanência, poriam em perigo a herança nos legada, em um esforço para apressar-nos em algum duvidoso Paraíso Terrestre. O conservador, resumidamente, favorece o progresso racionalizado e moderado; é oposto ao culto do progresso, cujos adeptos acreditam que tudo que é novo é necessariamente superior a tudo que é velho.

A mudança é essencial ao corpo social, raciocina o conservador, apenas porque é essencial ao corpo humano. Um corpo que cessasse de se renovar começaria a morrer. Mas se esse corpo deve ser vigoroso, a mudança deve ocorrer de forma regular, harmonizando-se com a forma e a natureza desse corpo; se não a mudança produz um crescimento monstruoso, um câncer, que devora seu anfitrião. O conservador crê que nada em uma sociedade deva ser sempre completamente antigo, e que nada deva ser sempre completamente novo. Estes são os meios de conservação de uma nação, pois que são os meios da conservação de um organismo vivo. Apenas o quanto de mudança uma sociedade requer, e que sorte de mudança, depende das circunstâncias de uma era e de cada nação.

O décimo princípio – como todos os demais – é uma crítica ao pensamento revolucionário, contra a utopia (o que está correto), contra o progressismo (idem) e contra a mudança que não leva em conta as tradições. Segundo Kirk é necessário manter os “interesses e convicções perenes que nos dão a estabilidade e a continuidade; sem essa Permanência, as origens profundas da sociedade são desfeitas, que cai em anarquia”. Mas se é a própria natureza humana que é falha, quais seriam esses “interesses e convicções perenes” que deveríamos manter? E quais seriam “as origens profundas da sociedade” que não podem ser desfeitas? Há aqui uma hipótese antropológica (e sociológica) não enunciada. Como ele, provavelmente, não está se referindo aos diversos grupos de humanos que experimentaram múltiplas formas de convivência ao longo da sua caminhada evolutiva durante mais de 90% da trajetória do Homo Sapiens e das demais espécies do gênero Homo, pode-se supor que o homem e a sociedade guardam alguma herança bendita que tem a ver não com a origem da humanidade e sim com a origem da civilização, quer dizer, da hierarquia e da autocracia como modo-de-vida e de convivência social. Kirk não quer manter os padrões de organização e os modos de regulação dos grupos de hominídeos, dos bandos de coletores e caçadores ou mesmo das sociedades paleolítica ou neolítica. Os valores, os costumes e as normas que ele quer preservar são os que surgiram nos primórdios do… Estado! Aí, na sua visão, é que estariam “as origens profundas da sociedade”: na civilização patriarcal. Eis o ponto.

Tais são então os dez princípios que têm aparecido frequentemente ao longo destes dois séculos do pensamento conservador moderno. Outros princípios de igual importância poderiam ter sido discutidos aqui: a compreensão conservadora da justiça, ou a visão conservadora da educação. Mas tais assuntos, com o tempo a se esgotar, eu devo deixar a sua própria investigação.

O grande divisor de águas na política moderna, Eric Voegelin costumava apontar, não é a divisão entre liberais de um lado e totalitários do outro. Não, em um lado dessa linha estão todos aqueles homens e mulheres que acreditam que a ordem temporal é a única ordem, e que as necessidades materiais são suas únicas necessidades, e que podem fazer o que quiserem com o patrimônio humano. No outro lado dessa linha estão todos aqueles povos que reconhecem uma ordem moral perene no universo, em uma natureza humana constante, e em elevados deveres para a ordem espiritual e a ordem temporal (1).

O epílogo do decálogo de Kirk apenas reafirma o que foi dito no primeiro princípio: há uma ordem moral perene no universo (curioso esse deslocamento: a ordem moral não afetaria somente o ser humano e a sociedade, mas todo o universo) coerente com uma natureza humana constante. Se nem a evolução muda essa natureza humana (posto que ela é invariante), então é sinal de que a ordem moral é antropogônica (e cosmogônica). Ora, uma ordem com tais características só pode ser uma ordem divina. Como ele diz, é uma ordem espiritual, que plasma uma ordem temporal.

Ainda que a democracia não precise se justificar com base em alguma ideologia (seja conservadora ou revolucionária), parece claro que ninguém pode ser conservador, nos termos de Russell Kirk, e ser um democrata. Como dissemos, este não é apenas um pensamento conservador e sim um pensamento autocratizante. É um pensamento típico da tradição patriarcal, ou seja, mítico, sacerdotal, hierárquico e autocrático. Essas ideias-implante, contidas nos dez princípios conservadores de Russel Kirk, são capazes de desabilitar qualquer pessoa por elas infectada a aceitar a democracia. É um lixo autocrático perigoso, um software capaz de danificar o hardware, ou seja, de lesionar as mentes e deformar o tecido social que rodam esse tipo de programa.

No próximo artigo da série vamos começar a examinar o pensamento do liberalismo-econômico.

Notas e referências

(1) Adaptado da Política da Prudência (ISI Livro, 1993). Copyright © 1993 por Russell Kirk. Usado com permissão do espólio de Russell Kirk. Traduzido para o português e publicado na Internet por Ivan C. P. da Cruz com autorização de Annette Kirk. Texto original em inglês em (Original text in English at): The Russell Kirk Center of Cultural Renewal.

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