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Contra a democracia

Os conservadores que se dizem de direita, na verdade, odeiam a democracia.

Até que enfim um representante do pensamento conservador de direita foi sincero e admitiu não gostar da democracia. Trata-se de mais um trumpista caboclo, chamado Flavio Morgenstern, que publica um site chamado Senso Incomum.

No artigo reproduzido abaixo, intitulado A América não é uma democracia, Flavio usa a sua própria apreensão da democracia, falsificada como prevalência da vontade da maioria, para dizer que a democracia não é um bom regime, dando graças aos céus por Hillary ter perdido a eleição para Trump.

Ora, em primeiro lugar, trata-se de analfabetismo democrático puro e simples. A democracia nunca foi prevalência da vontade da maioria, como querem os populismos (inclusive o populismo trumpista) e os neopopulismos bolivarianistas, como o chavismo, o lulopetismo, o kirchnerismo (e outros que tomaram o poder na Bolívia, no Equador, na Nicarágua e em outros países latino-americanos). Não! A democracia não é o governo da maioria e sim o de qualquer um, como muito bem percebeu Jacques Rancière (2005), no seu brilhante ensaio O ódio à democracia.  Flávio não deve ter lido.

O problema desses conservadores é que eles são ignorantes em tudo que diga respeito a uma “tradição” democrática. Eles falam em Sócrates e Platão (que eram autocratas, inimigos da democracia), mas nada dizem sobre Protágoras e os sofistas (envolvidos até a raiz dos cabelos com a invenção democrática original). Eles leem os adversários da democracia, como Burke (1790), segundo o qual “a democracia é a coisa mais vergonhosa do mundo” (leiam, por favor, as Reflexões sobre a Revolução Francesa), mas não tiveram paciência de ler os clássicos democráticos. Ou seja, não investigam nada do que, no caso, realmente importa:  não procuram conhecer Péricles (e seu think tank ateniense: Protágoras, Aspásia et coetera: 449 => 429 a. E. C.), nem nada de Althusius (1603), de Spinoza (1670 => 1677), de Rousseau (1754 => 1762), de Jefferson (e do network da Filadélfia: 1776), de Paine (1791), de Tocqueville (1835 => 1856), de Thoreau (1849), de Mill (1859 => 1861), de Dewey (1927 => 1939), de Arendt (1950 => 1963), de Lefort (1981), de Castoriadis (1986), de Maturana (1985 => 1993), de Putnam (1993), de Rawls (1993), de Levy (1994), de Sen (1994 => 1999). Maníacos, fixados no anticomunismo da época da guerra-fria, eles devem achar que todo esse pessoal é “de esquerda”.

Eles não conseguem nem mesmo perceber os dois sentidos do conceito de democracia: um “forte” (deweyano) e um “fraco” (dos que tomam a democracia como forma de administração política do Estado). É, mutatis mutandis, a mesma diferença entre as visões de soberania de Althusius e Bodin; ou, entre as visões do sentido da política de Hobbes e de Spinoza. Da visão hobbesiana (ainda francamente hegemônica, no pensamento político e, sobretudo, naquilo que foi chamado de Economics) decorre necessariamente uma visão de governo (controle) e não de liberdade (como em Arendt).

Sim, a visão dos conservadores é centrada em ordem, não em liberdade. Governo, comando-e-controle, controle, controle, controle… uma obsessão! Não é de espantar que eles não entendam que a democracia é, como escreveu Ésquilo (472 AEC) em Os Persas, não viver sob o jugo de um senhor.

A democracia surgiu pela primeira vez, na Atenas da passagem do século 6 para o século 5, como um movimento ou processo de desconstituição de autocracia (no caso, da tirania dos psistrátidas). E foi reinventada no século 17, pelos modernos, com o mesmo sentido (no caso, contra o poder despótico de Carlos I, na Inglaterra). Só por isso os dois processos podem ser designados pela mesma palavra: democracia.

Não tem nada a ver com prevalência da vontade da maioria. Inclusive entre os antigos gregos democráticos, muitas decisões (por exemplo, para escolha de titulares de cargos executivos: os pritaneis) eram tomadas por sorteio, não por votação.

Examinemos o conjunto de confusões do tal Morgenstern no artigo citado acima (e reproduzido abaixo):

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Analistas do mundo todo, entre aqueles que torciam e já davam como favas contadas a vitória de Hillary Clinton, criticaram ferozmente o centenário modelo americano de votação, exigindo uma democracia direta, como a brasileira. Foi a pauta da Globo News por semanas, e até hoje, com o presidente Donald Trump empossado, continua-se a sempre lembrar que Trump “perdeu no voto popular”.

É a segunda vez em que isso ocorre em menos de 20 anos (a última foi em 2000, quando George W. Bush venceu Al Gore no Colégio Eleitoral, tendo perdido no voto popular), embora a antepenúltima vez remonte a um século para trás (Benjamin Harrison, em 1888). Em toda a história americana, esta é apenas a quinta vez em que isto ocorre.

Com efeito, a reação foi imediata. A senadora Democrata Barbara Boxer (Calif.), já no dia 15 de novembro, quatro dias após a eleição, propôs um projeto de lei para abolir o Colégio Eleitoral. Mais do que isso: o ex-candidato indicado Democrata Michael Dukakis declarou que o principal foco do Partido Democrata após a eleição de Trump é acabar com o Colégio Eleitoral, conforme relatou ao Politico.

Por que, afinal, a América, país que é o próprio protótipo do que é chamado modernamente de “democracia”, usa um sistema de votos, nas palavras de Dukakis, “anacrônico” e que “deveria ter sido extinto há 150 anos”: o Colégio Eleitoral, que permite resultados como os de Bush e Trump, presidentes não eleitos pelo voto popular?

A resposta é um pouco mais inquietante do que o esperado para nossas tão bem consolidadas definições, que usamos rotineiramente para as acusações mais graves, como de alguém não aceitar a democracia ou agir de maneira anti-democrática. A bem da verdade, para entendermos o que acontece no mundo, precisamos rever os conceitos e palavras que usamos todos os dias para reaprendermos seu significado quase do zero.

A democracia na América

Apesar do uso vulgar da palavra, cuja maré subiu até a classe política e intelectual, tratar democracia como sinônimo de “justo” e “bom”, graças à ideia de “representatividade”, é algo estranho à história intelectual ocidental. O uso que a palavra teve por ao menos 23 séculos, entre Sócrates e Locke, é justamente o inverso.

Apesar do uso vulgar da palavra, cuja maré subiu até a classe política e intelectual, tratar democracia como sinônimo de “justo” e “bom”, graças à ideia de “representatividade”, é algo estranho à história intelectual ocidental. O uso que a palavra teve por ao menos 23 séculos, entre Sócrates e Locke, é justamente o inverso.

Desde A República, de Platão, há uma divisão entre governos conforme quem tem poder (cria leis, decide etc). Dois são conhecidos: se um manda, pelo bem geral, é uma monarquia. Caso contrário, temos uma tirania. Se poucos mandam, pelo bem geral, é uma aristocracia. Se apenas pensam em si próprios, é uma oligarquia. Já se muitos mandam, há uma complicação moderna. Caso pensem no bem comum, temos uma politéia, conceito que os romanos, que formalizaram o sistema em instituições, chamaram de res publica.

Se cada um pensa apenas em si próprio, temos uma… democracia. Exatamente o contrário do que esperamos, com o uso moderno do termo (revivido pelos iluministas). A bem da verdade, nem sequer possuímos uma diferenciação conceitual: para nós, se muitos votam, o sistema é o mais perfeito e deve ser defendido por si.

A falta de conceito é tão gritante que “democrático” é hoje usado simplesmente como sinônimo para qualquer coisa com a qual alguém concorde. Hoje é comum que discussões políticas já comecem com ambos os lados acusando o outro de não serem democráticos. Democracia, a rigor, é apenas quando muitas pessoas decidem, não importando qual seja a decisão. Se qualquer número acima de 50% das pessoas concordar, por exemplo, em matar os outros 49%, temos uma democracia em ação. A politéia/res publica é justamente um impedimento ao poder da maioria simples.

A América, sua idéia e sua Constituição foram moldadas por alguns dos maiores intelectuais políticos do mundo: os Founding Fathers, grandes homens que liam Platão, Aristóteles e os maiores clássicos da ciência política, e estavam preocupados justamente em criar uma terra de liberdade, longe dos absolutismos e monarquias corruptas da Europa. A maior preocupação dos Pais Fundadores era justamente como criar um sistema que não recaísse na tirania, tão logo o ânimo dos homens daquela época se fosse.

Contrários à monarquia inglesa, leitores vorazes dos clássicos, como Marco Aurélio ou Cícero, a América foi criada como uma “república”. Atentos à distinção em mente, é praticamente impossível encontrar, nos textos daqueles homens admirados e defendidos pelos séculos (George Washington, Thomas Jefferson, John Adams, Patrick Henry e outros), alguma palavra a favor de uma “democracia”. Pelo contrário. Em diversos momentos, mostram verdadeiro medo de seu país, livre de uma monarquia, acabar virando uma democracia.

James Madison é um dos mais explícitos em fazer a distinção, ao notar que a democracia é apenas o poder da maioria – algo infelizmente muito comumente defendido nos tempos atuais. Alexander Hamilton, homem de espírito aristocrático, demorou a aceitar a idéia de uma república americana, justamente por não entender como um regime voltado ao “bem geral” poderia evitar, pela força da maioria, descambar na lei do mais forte, do mais rico, de quem convence mais pessoas. Thomas Jefferson, em toda a Monticello Edition de suas obras completas, apenas menciona a palavra “democrata” uma vez – e respondendo a uma acusação levantada contra ele por Hamilton.

A popularização da palavra “democracia” na América merece um estudo à parte, mas a obra de Tocqueville, A democracia na América (que trata, justamente, de entender por que o que chama impreciosamente de “democracia” na América é tão diferente do modelo europeu das revoluções de 1789 e 1848), foi uma das principais responsáveis. A preocupação dos Founding Fathers, antes da sanha iluminista da guilhotina, do Terror e de Napoleão (homem que confirmou o temor de todos sobre o poder da maioria sem freios), era justamente em evitar uma democracia.

A distinção adotada foi simples. Inspirados na República Romana, que sempre tinha um contrapeso para cada poder (como o sistema de dois cônsules), criaram todo o seu sistema político, incluindo a forma de escolha eleitoral, com algum impedimento ao poder da maioria simples – a democracia tão defendida hoje.

O economista americano Walter E. Williams, em resposta ao artigo What’s gone wrong with democracy, da revista The Economist, elencou, no artigo What’s Gone Wrong With Democracy?, justamente o que torna a América uma república, voltando ao sentido canônico do termo, e não ao sentido vulgar que as palavras possuem hoje, usado até por intelectuais. Poucas – raras – decisões que tomamos na vida são “democráticas”, exigindo-se obediência imediata ao consenso da maioria. Continua Walter Williams:

Os Fundadores de nossa nação reconheceram que nós precisamos de governo, mas visto que a essência do governo é a força, e o uso da força é mal, o governo deve ser tão pequeno quanto possível. Os Fundadores pretendiam que tivéssemos uma forma limitada de governo republicano onde os direitos humanos são anteriores ao governo e há o Estado de Direito. Tanto os cidadãos quanto os funcionários do governo estão sujeitos às mesmas leis. O governo intervém na sociedade civil apenas para proteger seus cidadãos do uso da força e de fraude, mas não intervém nos casos de trocas voluntárias e pacíficas. Por outro lado, em uma democracia, a maioria manda seja diretamente, seja através de seus representantes eleitos. A lei é qualquer coisa que o governo determine que seja. Direitos podem ser dados ou tomados.

Este parágrafo resume brilhantemente a questão política atual. A República (tanto Romana, quanto das cidades italianas no início do Renascimento, quanto a Americana) determina algumas leis que não podem ser mudadas pela maioria. A América, aliada ao liberalismo clássico (economia liberal, conservadorismo político), instituiu ainda um governo mínimo. A grita hoje por criação de “direitos”, e “direitos” específicos dados por políticos, é o retorno do modelo democrata puro, em que não há a mesma lei para o governante e o governado obedecerem: os direitos dados exigem um político capaz de criar leis maiores do que uma lei imutável.

Mas o modelo da República Americana ideado pelos Founding Fathers impediu, até hoje, todos os ataques ao rule of law, ao que chamamos, para uma realidade completamente distinta, de “Estado de Direito”, e manteve, por séculos, sua estrutura praticamente inalterada, com algumas poucas emendas. A nossa democracia brasileira (que não é República, e nem Federativa, apesar do nome), a cada quarto de século exige uma nova revisão completa.

As regras anti-maioria da República Americana são claras. Para se emendar a Constituição, são necessários dois terços dos votos em ambas as casas legislativas, ou dois terços de legislaturas estatais para se propor uma emenda, e ainda se requer três quartos de legislaturas estatais para ratificação.

A própria idéia de haver duas casas legislativas (modelo bicameral exportado para diversos países onde ele não encontra azo para sua aplicação de facto) é para evitar o poder da maioria. Cinqüenta e um senadores podem impedir o poder de 435 deputados e 49 senadores. Por outro lado, o presidente pode vetar o poder de 535 congressistas. Já com dois terços de ambas as casas, o Congresso pode dar o troco e se sobrepor ao veto do presidente.

Checks and balances: um poder vigia o outro. Apesar da macaqueação da democracia brasileira, e de várias outras pelo mundo, nenhuma nunca chegou nem perto da divisão de poderes da República Americana.

Neste sentido, os nomes dos partidos na América, apesar de originalmente não terem nascido com isto em vista, são os mais reveladores e honestos já vistos no mundo: os Republicanos estão, via de regra, buscando defender uma Constituição com contrapesos de poder e seguir a lei, enquanto os Democratas estão tentando obter a maioria para, com ela, mudar esta lei.

Exatamente para evitar que uma minoria de estados, mas com maioria de eleitores, decida o rumo de todo um país maior e mais populoso do que toda a Europa, ou todo o Brasil, é que também há o Colégio Eleitoral, instituição de complexo funcionamento, onde os eleitores votam em quem vai votar no Colégio, que então vota no presidente.

Sem o Colégio Eleitoral, toda eleição, de um país continental com 300 milhões de habitantes, seria decidida pela Pensilvânia, Massachusetts e Nova York no começo de sua história, e hoje, por Nova York, Miami e Los Angeles. É difícil crer que tais pessoas, por mais que sejam as que mais aparecem na TV, entendam realmente dos problemas do Arkansas, do Havaí e do Michigan.

É fácil simplesmente acusar tais pessoas de “racistas”, “machistas”, “brancas” e “sem escolaridade”, sem perceber que sem esses “rednecks” Nova York morreria de fome, e que os ricos habitantes de Manhattan, preocupados com “feminismo” e “transgêneros”, dificilmente aguentariam uma noite no Maine ou na Carolina do Norte para descobrir como eles é que são “privilegiados”.

Bem ao contrário do que sempre ouvimos, a América não é uma democracia: é um sistema muito mais avançado e poderoso, uma república. O Brasil, mesmo tendo “república” no nome (e mesmo que as duas palavras, na linguagem vulgar moderna, tentem significar o mesmo), é uma democracia onde basta convencer a maioria para transformar qualquer desejo próprio em lei sobre os demais.

Quando falam em “democracia” americana (e a expressão é quase uma unanimidade hoje), estamos falando em algo errado. Estamos diminuindo a América. Sempre com o vezo de acreditar que a palavra “democracia” deve ser defendida imediatamente, crendo que sem a maioria pura só há a tirania. Como diversos exemplos na história mostram, e nosso PT não é exceção com sua “democratização”, nada pode ser mais afastado da realidade e ter conseqüências mais perigosas para tantas vidas.

Bem… dizer o quê? Seria cansativo apontar todas as incoerências, todas as deturpações, todos os sinais de padrões autocráticos de pensamento e ação que abundam no artigo. Fiquemos com o seguinte. O texto é uma confissão do autor de que ele não é democrata. É, ademais, um libelo contra a democracia que, para atacá-la, falsifica o seu sentido. E, convenhamos, como todo material da lavra de trumpistas, não é muito inteligente.

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