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Cuca velha

Ficar debatendo com velhas cabeças é cansativo…

CUCA VELHA 1

Ficar debatendo com velhas cabeças é cansativo. Se você aponta os limites da democracia representativa, o cara acha que você defende alguma forma de democracia participativa direta, assembleísta ou soviética. Não lhe ocorre que você pode estar falando de uma democracia interativa, mais compatível com uma sociedade-em-rede. Porque ele nem desconfia que existe uma diferença brutal entre participação e interação.

CUCA VELHA 2

Ficar debatendo com velhas cabeças é cansativo. Se você aponta os limites do individualismo (inclusive do chamado individualismo metodológico), o cara acha que você defende algum tipo de coletivismo. Não lhe ocorre que você pode estar falando que o social não é um conjunto de indivíduos e sim o que acontece entre eles para dar origem à pessoas. Porque ele nem desconfia que existe uma diferença brutal entre indivíduo e pessoa.

CUCA VELHA 3

Ficar debatendo com velhas cabeças é cansativo. Se você critica uma visão mercadocêntrica do mundo, o cara pensa que você defende um ponto de vista estadocêntrico (estatista). Não lhe passa pela cabeça que você pode estar falando a partir de uma perspectiva sociocêntrica. Porque ele nem desconfia que a sociedade existe como forma de agenciamento autônomo, não é um epifenômeno, não é sinônimo de população, não é a coleção dos indivíduos e sim as configurações móveis que podem se conservar ou se modificar dependendo do modo como as pessoas interagem entre si.

CUCA VELHA 4

Ficar debatendo com velhas cabeças é cansativo. Se você diz que se pode ser contra o comunismo sem ser anticomunista, o cara acha que você ainda está culturalmente impregnado por uma cultura comunista (ou de esquerda). Porque ele nem desconfia que o anticomunismo foi uma ideologia da guerra fria, que é uma cultura de guerra, não de paz. E que a guerra não é o confronto violento para destruir inimigos e sim um engendramento estatista que – mesmo sem usar a violência – constrói e mantém inimigos como pretexto para reorganizar cosmos sociais sob padrões hierárquicos regidos por dinâmicas autocráticas. Na guerra fria, a democracia dança (talvez até mais rapidamente do que num conflito armado com uma ditadura). Mas vá-se lá dizer-lhes.

CUCA VELHA 5

Ficar debatendo com velhas cabeças é cansativo. Se você diz que é contra a esquerda, o cara acha que então você deve ser de direita. Se você retruca que não é de direita (nem de esquerda), o cara que tem a velha cabeça da direita pensa que você, no fundo, deve ser um pouquinho de esquerda (mas não quer confessar). E o cara que tem a velha cabeça da esquerda avalia que você é, na verdade, de direita (porque, para ele, dizer que não existe esquerda e direita, não passa de um truque da direita). Não lhes ocorre, a ambos, que é o padrão interpretativo que divide o mundo sempre em dois lados em eterno confronto que reproduz continuamente a bipolarização esquerda x direita. E muito menos – conquanto aí já seria exigir demais de mentes tão rudes – que foi a esquerda que inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita.

CUCA VELHA 6

Ficar debatendo com velhas cabeças é cansativo. Se você diz que a esquerda é autocrática, o cara que tem a velha cabeça da direita concorda e bate palmas. Mas se você acrescenta que combater a esquerda não significa necessariamente estar correto, do ponto de vista da democracia, ele desentende. Para “desenhar”, você então lembra que Franco, Salazar, Pinochet, Videla, Bordaberry e Médici também combatiam a esquerda e foram ditadores cruéis e sanguinários. E ai… ou ele fica mudo e desconversa, ou retruca que essas ditaduras foram um mau menor em relação às ditaduras comunistas (e é até capaz de justificar a quebra do Estado democrático de direito como necessária para afastar o verdadeiro perigo). O cara está tão impregnado pela ideologia anticomunista da guerra que sequer desconfia que não pode haver atalho autocrático para a democracia. Ou está mesmo convencido de que a democracia não é viável diante da inexorável guerra que deve ser travada “contra os demônios ruivos que habitam o outro lado da montanha” (para usar uma feliz expressão de Carl Gustav Jung).

A propósito, não seria má ideia que a velha cuca fosse se tratar com um profissional junguiano.

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