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Desobediência civil e política a um governo ilegítimo

Neste texto vamos mostrar por que é legítima – do ponto de vista democrático – a desobediência civil e política a um governo que se tornou ilegítimo e dar alguns exemplos de como os cidadãos podem exercê-la.
 
A desobediência civil e política é ação de resistência democrática que tem como objetivo tornar insuportável a continuidade no poder dos que violaram a democracia. Ela se justifica em termos democráticos – desde que exercida de modo pacífico – a partir de certo ponto de degeneração institucional.
 
A partir de certo ponto de degeneração institucional torna-se um imperativo democrático desobedecer a governos que se tornaram ilegítimos. Um governo torna-se ilegítimo, do ponto de vista democrático, quando viola um ou mais de um dos critérios da legitimidade democrática, a saber, além da eletividade, a liberdade, a publicidade (transparência ou possibilidade de accountability), a rotatividade (ou alternância), a legalidade e a institucionalidade. Isso significa que não basta um governo ter sido eleito democraticamente para ser legítimo. É necessário que ele também governe democraticamente, não violando os demais princípios acima.
 
Se um governo se transforma em governo de facção e privatiza partidariamente a esfera pública, sobretudo se pratica a corrupção como método para se delongar por tempo indeterminado no poder, ele não é mais legítimo porque, neste caso, violou a publicidade e a legalidade. Se, ademais, um governo aparelha, compra e degenera as instituições colocando-as a serviço do projeto de poder de um grupo privado, ele não é mais legítimo porque violou a institucionalidade.
 
A combinação dessas violações justifica a desobediência civil e política como forma de defender a democracia porque – nessas circunstâncias – os mecanismos institucionais não serão mais capazes de defender o regime constitucional. Se, por exemplo, os tribunais superiores de justiça estiverem aparelhados, não haverá como corrigir “por dentro” as violações à democracia, já que um tribunal constitucional a serviço do projeto de poder de um grupo privado que ascendeu ao governo (mesmo que por vias democráticas) para controlar o Estado e usá-lo como instrumento de conquista de hegemonia sobre a sociedade, pode inviabilizar a aplicação dos remédios constitucionais disponíveis (como o impeachment ou a cassação do mandato do chefe de governo). Só a cidadania então poderá fazê-lo.
 
Nestas circunstâncias extraordinárias, não basta o exercício da democracia em condições ordinárias (aguardar as próximas eleições para remover o governo violador), mas deve-se agir de modo igualmente extraordinário: por meio de manifestações de rua e de outras ações de oposição popular e do exercício cotidiano da resistência democrática. É nesse contexto que não apenas se justifica, mas se torna um imperativo democrático, o exercício da desobediência civil e política.
 
O objetivo das ações de oposição popular (manifestações de rua, campanhas de mídia, abaixo-assinados, movimentos de cobrança dirigidos aos atores políticos, panelaços, buzinaços e apitaços etc.) é pressionar as instituições (governamentais, legislativas e judiciárias) para que cumpram seu papel com independência, não bloqueando as ações constitucionais de defesa do regime democrático. Se isso não for suficiente, entretanto, não há saída senão a desobediência civil e política como eixo principal de uma resistência democrática de longa duração.
 
Cidadãos podem desobedecer de várias maneiras pacíficas. Por exemplo, não colaborando com o governo, não indo trabalhar, não pagando impostos, não efetuando contribuição sindical, ocupando e redirecionando o uso dos espaços públicos, boicotando as empresas aliadas ao governo, exercitando o repúdio social aos agentes governistas, desencadeando campanhas contra o voto em bandidos etc.
 
Em termos de desobediência democrática pode-se fazer várias coisas já conhecidas e muitas outras ainda não inventadas. Não há receita. Não se pode reduzir a desobediência civil a deixar de pagar impostos. A orientação geral é não colaborar em nada com qualquer proposta feita ou medida tomada pelo governo ou defendida pelo partido que o controla. Pelo contrário, denunciar e boicotar, sistematicamente todas as suas iniciativas. O mais eficaz é contribuir para que o clima de repúdio social ao governo se alastre. Os dirigentes governamentais e os militantes do partido que controla o governo e seus aliados, inclusive parlamentares, membros do ministério público e dos tribunais superiores que atuam como agentes de manutenção do governo violador, devem ser denunciados em todos os lugares. Quando forem reconhecidos em qualquer espaço público devem ser – desde que sempre pacificamente – repudiados, apupados e rechaçados e filmados (como, aliás, sempre acaba acontecendo por iniciativa da própria sociedade: dirigentes governistas mais conhecidos acabam ficando numa condição em que não podem mais caminhar nas ruas, passear com seus filhos nas praças, ir a livrarias e restaurantes, muito menos à cinemas, teatros, estádios ou à praia). O repúdio social pacífico exercido em espaço público é legítimo no regime democrático. A sua criminalização, esta sim, é ilegítima. Por isso a vaia nas ruas, nos parlamentos e em outras instalações estatais, nos estádios, teatros, cinemas, praias e em todos os demais lugares cujo funcionamento é regulado pelo Estado, é democrática. A exposição de bonecos, cartazes, faixas de protesto em todos esses lugares, também é democrática.
 
O que não se pode – em hipótese alguma – é atentar contra a integridade física das pessoas, invadir seus espaços privados (como as suas residências), ameaçá-las de morte ou com a perda da liberdade (muito menos restringir a sua liberdade), infligir-lhes voluntariamente sofrimentos físicos ou psíquicos ou atemorizá-las com promessas de inflição desses sofrimentos.
 
Pode-se gostar ou não gostar do repúdio social, por razões éticas ou até estéticas. Mas não se pode negar que ele faz parte da democracia e é um dos meios que a sociedade tem de manifestar o seu descontentamento com a condução dos negócios públicos por parte de seus mandatários. O Estado existe para servir a sociedade e não o contrário. Os funcionários estatais são empregados da sociedade e não seus patrões. Numa democracia têm que estar preparados para ouvir com humildade o que não querem e para suportar com paciência a pressão da cidadania.
 
Agora o mais importante. Essas ações devem ser feitas com humor e alegria, não com ódio ou espírito adversarial. A vibe deve ser de resistência, não de guerra! Estamos falando de uma verdadeira revolução social, quer dizer, de uma mudança nos fluxos interativos da convivência social, não de um combate entre militantes de um lado contra militantes de outro lado, uns tentando defender e outros tentando tomar o Palácio de Inverno. Por isso todas as ações devem ser pacíficas.

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