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Dissecando o argumento antidemocrático do golpe

O mantra dos 54 milhões de votos e a redução da democracia à eleição como truque para usar as eleições contra a democracia
 
Os governistas votantes na sessão do impeachment na Câmara dos Deputados, repetiam ontem, ad nauseam, que Dilma foi democraticamente eleita e que, portanto, qualquer tentativa de reduzir o seu mandato é golpe. O Advogado Geral da União, ab usado por Dilma como seu advogado particular, declarou também ontem (em entrevista engendrada para tentar apagar os efeitos políticos da votação histórica da Câmara que autorizou o processo de impeachment contra ela):
 
“Um golpe na democracia, um golpe nos 54 milhões de eleitores da presidente Dilma Rousseff. Um golpe de abril de 2016. Temos hoje mais um ato na linha da consumação de um golpe, um golpe que, se consumado, ficará na história como algo vergonhoso para o nosso país”.
 
Antes de qualquer coisa é necessário relativizar essa alegação dos 54 milhões de votos num país de mais de 112 milhões de eleitores (ou melhor, de votos apurados em 2014). O que são 54 milhões de eleitores de Dilma diante dos 58 milhões que não votaram em Dilma? Além do mais, se Dilma teve 54.501.118 votos, Aécio teve 51.041.155. Ou seja, foi uma votação muito dividida, em que ela ganhou – nas regras absurdas, mas aceitas, do winner takes all – por apenas 3,28%. Isso que dizer que pouco mais de 3% lhe dão, por assim dizer, o direito de se comportar como dona de todos os votos (inclusive da maioria dos votos, que não obteve)?
 
Há aqui a ideia autocrática, tipica do neopopulismo e, portanto, disfarçada de democrática, de que democracia é igual à eleição. Ou seja, bastaria vencer uma eleição, que fosse até por menos de 1% dos votos, para um mandatário ser legítimo do ponto de vista democrático. A um governo, segundo tal visão, é suficiente ter sido eleito democraticamente, não sendo necessário governar democraticamente. A eleição seria uma espécie de cheque em branco. Se vencê-la, o governante pode fazer o que quiser, cometer qualquer crime e ninguém pode dizer nada, tomar qualquer providência, mesmo constitucional, pois isto será golpe. Não é por acaso que o argumento dos governantes autoritários, populistas ou neopopulistas, é sempre o mesmo. Maduro também acusa seus opositores – até mesmo os que disputam eleições contra ele – de quererem lhe dar um golpe.
 
Ora, em boa parte das 60 ditaduras que, infelizmente, remanescem no século 21, há eleições. Se a eletividade fosse o único critério para dizer se um governo é democrático, Morsi, Assad, Erdogan, Putin e Maduro – todos eles eleitos e alguns até reeleitos – deveriam ser considerados como governantes democráticos. Por isso que a eletividade é, sim, um critério fundamental da legitimidade democrática, mas não pode ser o único. Ao lado dele devemos considerar a liberdade, a publicidade ou transparência (que enseja a accountability), a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade. São seis critérios e não apenas um. Até Enver Hoxha realizava eleições na Albânia ditatorial (onde costumava obter algo perto de 99% dos votos).

 

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Reduzir democracia à eleição é um truque para usar as eleições contra a democracia. É assim que as eleições têm sido instrumentalizadas como artifício de grupos privados autocráticos contra a democracia. Como se sabe, além de não ter proteção eficaz contra o discurso inverídico, a democracia também não tem proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia. A Venezuela é o exemplo mais flagrante de país formalmente democrático que virou, na prática, uma ditadura, usando o processo eleitoral. Descoberto este “segredo” (ou essa falha “genética” da democracia dos modernos) e dominada a tecnologia eleitoral necessária, cabe a um partido no governo criar as condições para vencer eleições seguidamente. Ocorre que isso não pode ser feito sem violar vários critérios da legitimidade democrática. Eis o ponto! 
 
Quando restringe-se a liberdade, viola-se a publicidade, frauda-se a eletividade, falsifica-se a rotatividade, descumpre-se a legalidade e degenera-se a institucionalidade e todas essas perversões – ou pelo menos algumas delas – ocorrem recorrentemente a partir de certo grau que começa a inviabilizar a continuidade do processo de democratização, dizemos que não estamos mais numa democracia (ou seja, que a democracia que temos não está mais conformando-se como um ambiente favorável a caminharmos em direção às democracias que queremos). Reconhecemos então que a democracia está sob ataque de forças que querem autocratiza-la.
 
No caso do Brasil, felizmente em situação melhor do que a Venezuela, não há restrições sérias à liberdade e nem (até prova em contrário) fraudes significativas à eletividade, mas há tentativas de falsificação da rotatividade (com a intenção de um partido de se delongar no poder por tempo indeterminado) e há também fortes evidências de descumprimento da legalidade (com centenas de crimes cometidos pelo governo – como revelou o processo do Mensalão e, agora, o Petrolão, com as investigações da operação Lava Jato – não apenas crimes de responsabilidade fiscal) e de degeneração da institucionalidade (sobretudo via aparelhamento do Estado, com a formação de maiorias partidárias no seu interior que deturpam o seu sentido próprio, além de derruir o equilíbrio entre os poderes, transformando-as em braços do governo), para não falar de violações à publicidade (como atestam os contratos secretos do BNDES com regimes ditatoriais, provavelmente para esconder crimes muito mais graves).
 
Não pode haver dúvida de que o governo Dilma descumpriu a legalidade e degenerou a institucionalidade num grau muito maior do que habitualmente seria aceitável nas democracias realmente existentes. E que esse grau ameaça a continuidade do processo de democratização, na medida em que tais perversões foram praticadas para financiar um esquema paralelo de poder cujo objetivo estratégico é conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado por um partido. Como esse processo é lento e baseado mais em guerra de posição do que em guerra de movimento, é necessário que um partido controle o governo por um tempo relativamente longo, mas não usurpando o poder e abolindo as eleições (como se fazia nos golpes clássicos) e sim vencendo eleições continuamente para permanecer no governo pelo maior tempo possível (para consumar um novo tipo golpe de Estado, se for possível dizê-lo, em doses homeopáticas).
 
Pouco importa, neste caso, se a chefe do governo se locupletou pessoalmente com as ações de quebra da legalidade. Se ela o fez apenas para financiar o esquema de poder urdido por seu partido, atuando como chefe (ou sub-chefe) de facção e não como presidente da República, pior ainda. Os piores inimigos da democracia de que temos notícia na história recente eram tidos por pessoalmente honestos (Stalin, Mao, Hitler, Mussolini e Pol Pot não eram particularmente conhecidos por serem ladrões).

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