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Em que sentido se pode afirmar que a democracia é sem doutrina?

Escrevi ontem (22/09/2017) no Facebook:

“Não sou contra apenas a doutrinação marxista nas escolas. Sou contra qualquer doutrinação, marxista, anti-marxista ou não-marxista, em todo lugar, inclusive nas escolas. Aliás, nem sou a favor de escolas.”

Uma pessoa respondeu:

“Sou favorável que as escolas mostrem todas as doutrinas e deixem que os alunos façam suas opções.”

Retruquei:

“Pois é, isso parece razoável, mas não é tanto. A ideia de mostrar todas as doutrinas deve ser acompanhada da ideia de não ter nenhuma doutrina. Não se trata de escolher uma doutrina. Todas as doutrinas são doutrinantes.”

Há aqui um problema com a palavra ‘doutrina’. É claro que as pessoas devem conhecer as teorias, que nascem de processos de observação-investigação-explicação realizados segundo certos critérios epistemológicos (isto é ciência) e também as explorações que tentam articular construções de pensamentos de sorte a torná-los claros e definidos (isto é filosofia, na acepção nua e crua de Wittgenstein).

Mas doutrina é outra coisa. As doutrinas constroem conjuntos coerentes de ideias com o objetivo precípuo de serem ensinadas (apreendidas, o que não é a mesma coisa do que aprendidas). Em geral as doutrinas querem explicar o mundo para os outros de sorte que as pessoas saibam o que fazer (para se comportar de acordo com a explicação que contém sempre uma prescrição).

No caso das doutrinas políticas, isso fica mais evidente. Elas inventam uma explicação para a realidade instituindo-a como um referencial extra-político para avaliar comportamentos políticos. Um comportamento (ou ação política) será bom se estiver de acordo com o que diz a doutrina. Ou seja, a doutrina já está certa ex ante (para quem acredita nela), já avalia o que foi, é ou será, o que deve acontecer ou não, antes da interação política entre as pessoas. Assim, a doutrina cava um sulco para fazer escorrer por ele as coisas que ainda virão. É um modo de trancar o futuro.

As doutrinas geram credos, o que é muito diferente das teorias (científicas) e das elaborações sistêmicas de pensamento (filosóficas). Quando alguém segue um credo, em geral, isso exclui – ou se erige como contraposição a – todos os demais credos. As doutrinas são expedientes usados em guerras de credos. Assim, o economicismo de von Mises (o chamado liberalismo-econômico) é construído contra o economicismo de Marx (o marxismo). E as doutrinas conservadoras são erigidas contra as doutrinas revolucionárias.

A estrutura do credo é uma espécie de filtro para transformar caos em ordem, mas uma ordem pré-existente, não emergente, uma ordem que não será propriamente descoberta, senão replicada pelo ensino da… doutrina. Ora, isso é diferente da ciência (sempre questionável e falsificável) e da filosofia (que admite outras filosofias): está mais para religião (e, como se sabe, cada religião está fundada sobre a ideia de que é a única verdadeira, do contrário as pessoas – os fiéis – poderiam aderir a outros credos, o que é vedado pela religião e quem o fizer será chamado de infiel, kafir, assim como quem abandona uma organização fundada sobre uma doutrina política é chamado de traidor). Uma teoria científica pede para ser falsificada. Um sistema filosófico aguarda ser contraditado. Uma doutrina odeia qualquer questionamento (que julga ser uma heresia). Os credos religiosos são doutrinas. E toda doutrina tem a estrutura de uma religião (mesmo que seja laica).

Toda doutrina, portanto, é doutrinante. E o simples fato de ensinar a alguém uma doutrina – qualquer doutrina – já é uma doutrinação. Portanto, não se trata de ensinar todas as doutrinas para que os pacientes da ensinagem escolham de qual “religião” querem ser escravos.

Na democracia as pessoas têm o direito de aderir a qualquer doutrina, adotar qualquer credo, mas não devem usar essa sua “religião” para avaliar os comportamentos políticos alheios. Nenhuma doutrina política pode servir de referencial para julgar o que ocorre na esfera pública.

Na autocracia, não. Sempre há uma doutrina correta, um credo válido e autorizado ao qual as pessoas devem aderir para se conformar ao que é correto e delas esperado. É uma espécie de compliance. Por isso, via de regra, as religiões que não coincidem com a religião oficial são proibidas em ditaduras, o mesmo valendo para as doutrinas políticas. Não se pode ser sufi na teocracia dos aiatolás iranianos, onde a Fé Bahá’í também é perseguida pelo regime autocrático (veja a foto que ilustra este artigo). A rigor, não se pode ser ateu em teocracias (o que já levou a muitas condenações à morte ao longo da história). Não se pode ser xiita na Arábia Saudita sunita. Não se podia ser muçulmano na corte de Isabel de Castela, nem judeu. Não se podia ser anarquista (ou trotskista) na União Soviética stalinista.

Quando há uma doutrina oficial, seja religiosa ou laica, não pode haver esfera pública. Porque a esfera pública só existe se houver liberdade de crença e de não-crença para as pessoas que, privadamente, podem aderir ou não a qualquer doutrina. Ou seja, ao contrário do que se pensa, a esfera pública está assentada no direito individual privado de não fazer parte, compulsoriamente, de qualquer rebanho, assim como no direito individual privado de entrar, voluntariamente, em qualquer rebanho.

Por isso que esfera pública só existe na democracia, que convive com qualquer doutrina, mas não tem, como regime, uma doutrina específica a partir da qual se possa avaliar comportamentos políticos.

A democracia, portanto, não é mais uma doutrina. É apenas um modo não-guerreiro de regulação de conflitos (que, ao se exercer, desconstitui autocracia) e não importa para nada, do ponto de vista coletivo, as convicções privadas dos agentes políticos que nela interagem. O que importa é que, acreditando no que quiserem, não se comportem de modo guerreiro (o que levará à autocratização da democracia).

Isto é o que significa dizer que a democracia é sem doutrina.

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