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Estado de direito é sinônimo de Estado democrático?

Há uma confusão entre império da lei e democracia e entre Estado de direito e Estado democrático. Essa confusão leva, não raro, ao legalismo, que é apenas mais uma ideologia conservadora (e não necessariamente democrática).

Para responder a questão proposta como título deste artigo – Estado de direito é sinônimo de Estado democrático? – vamos começar tentando responder à sete perguntas fundamentais listadas abaixo:

1 – Por que o conceito de Estado democrático não pode ser aplicado a todas as formas de Estado que foram erigidas nos últimos seis milênios?

2 – O Estado grego antigo do século 5 AEC – ou seja, a cidade-Estado de Atenas – era um Estado democrático?

3 – Em que medida a forma de Estado surgida da paz de Westfália (1648-1659) – o Estado-nação europeu moderno – pode ser considerada um Estado democrático?

4 – O que há de comum – em termos de morfologia (padrão de organização) e dinâmica (modo de regulação) – entre todas as formas conhecidas de Estado?

5 – O que há de realmente democrático e o que remanesceu de autocrático no chamado Estado democrático de direito?

6 – O Estado-nação contemporâneo é um ambiente favorável à continuidade do processo de democratização?

7 – Basta obedecer as leis democraticamente aprovadas para se ter um Estado democrático?

Para responder essas questões vou aproveitar e reciclar, aqui e ali, passagens do meu A Terceira Invenção da Democracia.

Por que o conceito de Estado democrático não pode ser aplicado a todas as formas de Estado que foram erigidas nos últimos seis milênios?

Para esta pergunta há uma resposta óbvia e uma resposta não tão óbvia. A resposta óbvia é que a democracia só foi inventada no século 5 AEC e, portanto, todos os Estados que surgiram antes não poderiam ser considerados Estados democráticos. O problema é que mesmo essa resposta óbvia não é tão óbvia assim quando constatamos que mesmo as formas de Estado surgidas depois da primeira invenção da democracia pelos atenienses não podem ser consideradas, em sua imensa maioria, como democráticas.

A reposta não tão óbvia é a seguinte. Nenhuma das formas de Estado surgidas antes do Estado-nação pode ser considerada democrática. E não foram poucas. Temos o Estado-Palácio-Templo mesopotâmico (sumeriano), os proto-Estados e Estados erigidos por hordas de predadores e senhores e por impérios do chamado despotismo oriental, as cidades-Estado monárquicas da antiguidade, os Estados feudais antigos e medievais, os Estados reais e principescos et coetera. Mesmo a forma Estado-nação – o Estado-nação europeu moderno surgido no século 17 – gerada nos acordos da paz de Westfália (1648-1659), quer dizer, como fruto da guerra, não tinha, tal como as formas anteriores mencionadas acima, uma estrutura e uma dinâmica, quer dizer, um padrão de organização e um modo de regulação favoráveis à democracia.

Com raríssimas –  e fugazes e localizadas – exceções, todas as formas de Estado foram formas voltadas para a guerra, ou seja, tiveram estruturas hierárquicas regidas por modos autocráticos (ou modelos de gestão baseados em comando-e-controle e no fluxo vertical comando-execução), porque assim se exige na guerra; ou melhor, porque isso é a guerra (não o conflito violento, senão um engendramento que visa construir e manter inimigos como pretexto para instalar e rodar internamente um programa de governabilidade cujo objetivo é a permanência e a reprodução do tipo de governo existente). Assim, mesmo o Estado-nação só pôde ser considerado democrático sob limites bem estritos e estreitos, como veremos mais adiante. Mas… e o Estado grego antigo, que existia quando a democracia foi inventada pelos atenienses?

O Estado grego antigo do século 5 AEC – ou seja, a cidade-Estado de Atenas – era um Estado democrático?

Para responder a pergunta acima é necessário entender – de um ponto de vista social – o que aconteceu na Atenas pós-Solon, de Clístenes, Efialtes e Péricles, na chamada primeira invenção da democracia.

A primeira invenção da democracia durou de 509 a 322 AEC. A democracia foi uma invenção coletiva, uma espécie de “metabolismo” da rede social (com significativo grau de distribuição) que se formou na Agora, em Atenas. Foi um movimento de desconstituição de autocracia. Mas os historiadores não captaram isso e sim os feitos dos indivíduos: as guerras que travaram, os assassinatos que cometeram ou de que foram vítimas, os golpes que tramaram ou dos quais se defenderam, os cargos de poder que conquistaram ou dos quais foram apeados e as reformas que impulsionaram ou tentaram evitar.

Diz-se que tudo começou com as reformas de Sólon (638-558), sobretudo a instituição da Ecclesia (assembleia) e da Boulé (conselho) por volta de 590. Mas, na verdade, do ponto de vista da democracia como desconstituição de autocracia, tudo começou em consequência da intervenção de Psístrato, que deu um golpe militar e introduziu a tirania em Atenas em 546, governou até 527 e foi substituído por seus filhos Hipias e Hiparco. Hiparco foi assassinado em 514. Hípias ficou no poder até 510 e foi destituído por Clístenes.

Clístenes (565-492) fez uma reforma da constituição (508) e abriu caminho para Efialtes (que fez uma reforma do Areópago). Efialtes foi assassinado em 461 ensejando a ascensão de Péricles, que exerceu seu protagonismo político de 461 a 429. A democracia ateniense floresceu neste período. E o século 5 foi também chamado de século de Péricles.

Em 338 Atenas foi derrotada pela Macedônia e ficou sob o domínio de Filipe e de seu filho Alexandre. Escolhe-se o ano de 509 para marcar o início da democracia porque foi a época do fim da tirania dos psistrátidas. Escolhe-se o ano de 322 para marcar o fim da democracia ateniense porque foi o ano em que a oligarquia foi imposta em Atenas por Antipatro, regente do império de Alexandre. Foi também o ano da morte de Demóstenes (384-322).

É claro que todos esses registros são sofríveis. Escritos sob o influxo de culturas autocráticas milenares, os relatos históricos não podiam mesmo revelar o que estava acontecendo do ponto de vista social.

A democracia foi a mais formidável antecipação de uma era interativa que já ocorreu nos seis milênios considerados de “civilização”. Foi uma invenção fortuita e gratuita de pessoas que logrou abrir uma fenda no firewall erigido para nos proteger do caos, para que não caíssemos no abismo (ou não mergulhássemos no fluxo da convivência social).

Mas na verdade as pessoas que inventaram a primeira democracia não tinham a menor consciência das implicações e consequências do que estavam fazendo. Talvez tivessem motivos estéticos. Ou talvez quisessem, simplesmente, abrir uma janela para poder respirar melhor. Em consequência, abriram uma janela para o simbionte social poder respirar, sufocado que estava, há milênios, em sociedades de predadores (e de senhores).

Não é por acaso que no primeiro escrito onde aparece a democracia (dos atenienses) – em Os Persas, de Ésquilo (427 a. E. C.) – ela tenha sido apresentada como uma realidade oposta à daqueles povos que têm um senhor.

É crucial perceber que a primeira democracia, a democracia dos antigos gregos, não nasceu da guerra: os atenienses frequentadores da Agora não organizaram um atentado ao tirano Psístrato ou ao seu filho Hipias, nem, muito menos, insuflaram uma rebelião popular contra o governo. O protagonismo daquela nascente dinastia autocrática foi interrompido, sim, mas por ação pacífica. Os democratas simplesmente proclamaram um édito em que dispensavam os serviços do autocrata. Clístenes, Efialtes e Péricles não tomaram o poder tirânico para exercê-lo da sua maneira, simplesmente dispensaram esse poder (quer dizer, recusaram-se a reproduzi-lo do modo como estava estruturado: e é a isso, precisamente, que chamamos de primeira invenção da democracia).

Após a primeira invenção da democracia, a cidade-Estado de Atenas continuou sendo um Estado e se comportando autocraticamente em relação aos outros Estados ao travar guerras contra eles, mas a diferença está no fato de que – como percebeu Hannah Arendt (c. 1950) (1) – os gregos sabiam que se comportavam de forma apolítica (ou não-democrática) quando guerreavam e, talvez por saberem disso, estabeleciam uma separação mais ou menos clara entre – para evocar dois conceitos de Platão em As Leis – o governo para dentro (a “arte do tecelão”) e a conquista de hegemonia para fora (a “ciência do estrategista”).

A democracia inventada pela primeira vez pelos atenienses surgiu, de certo modo, contra a privatização dos assuntos comuns pelo autocrata; isto é, surgiu contra o Estado (a cidade-Estado monárquica de então); embora fosse obrigada a conviver com ele, alterou radicalmente a estrutura e o funcionamento de suas instituições (a partir da reformas de Clístenes e Efialtes).

Mas a polis grega do período democrático não era a cidade-Estado e sim a koinonia (comunidade) política. Como percebeu com argúcia novamente Hannah Arendt (1958), “a polis não era Atenas e sim os atenienses” (2). Isso, é claro, faz toda a diferença (embora Atenas encetasse guerras, os atenienses livres queriam apenas auto-conduzir suas vidas). Em outras palavras, a estrutura e a dinâmica da polis não eram guerreiras (ou seja, hierárquico-autocráticas). Não havia necessidade de que fosse.

Para entender isso é necessário examinar o assunto de um ponto de vista social.  De um ponto de vista social há uma correspondência entre estrutura e dinâmica. Tomemos um exemplo prosaico, que teve alguma repercussão entre nós (no Brasil) na década de 1980: a chamada “Democracia Corinthiana”. Se não houvesse um condicionamento recíproco entre modo de regulação e padrão de organização, aquela interessante experiência – que teve entre seus principais expoentes os jogadores Sócrates, Wladimir, Casagrande e Zenon – poderia não ter sido tão fugaz. Mas posto que o clube (Corinthians) era uma organização (arché) hierárquica, o modo de regulação (kratos) democrático de conflitos não podia perdurar na ausência de graus suficientes de distribuição da rede. É como tentar adotar modos democráticos de regulação de conflitos nos exércitos e nas igrejas: é possível, sim, começar e até ensaiar durante algum tempo algum tipo de ‘cracia’ que não produza inimigos, mas em pouco tempo a deformação no campo social provocada por uma ‘arquia’ mais centralizada do que distribuída impedirá a fluição horizontal necessária à sua continuidade (e a política será pervertida como continuação da guerra por outros meios, na fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin).

A hipótese de que é possível implantar modos de regulação mais democráticos em uma organização sem introduzir modificações no seu padrão hierárquico (ou alterando-o apenas cosmeticamente), rodando novos modelos de gestão (softwares) sem mexer nas conexões recorrentes ou nos caminhos disponíveis ao fluxo (hardware) – ou, mais diretamente, sem desobstruir tais caminhos – não pode ser validada cientificamente (não, pelo menos, do ponto de vista da nova ciência das redes). Se não houvesse se conformado uma rede social com graus suficientes de distribuição na praça do mercado (Agora) em Atenas, não poderia ter sido ensaiada a democracia na velha Grécia: ou melhor, ela poderia até ter sido experimentada, mas o sistema não teria alcançado a estabilidade necessária para se reproduzir, conservando sua adaptação pelo mesmo movimento com que conservava sua organização (e não conseguiria ter durado de 509 a 322 AEC).

Isso porque há uma correspondência – não uma relação causal, mas um condicionamento recíproco – entre padrão de organização e modo de regulação. É por isso que a democracia não teria vingado na corte de Dario ou na de Salomão, assim como não vingou na imensa maioria dos Estados, com exceção – e mesmo assim parcial – da cidade-Estado ateniense (mas por um acidente, porque lá acabou acontecendo uma fratura entre a comunidade política, a koinonia constituída pela polis, campo de politics e o Estado propriamente dito, semelhante aos demais da região e do mundo de então, campo de policy e… da guerra). Cerca de dois milênios depois a democracia pervadiu a forma Estado-nação, surgindo a fórmula Estado democrático de direito.

Não é ocioso repetir que é preciso examinar tudo isso de um ponto de vista social e não apenas do ponto de vista adotado pela chamada ciência política. Um Estado só poderá ser violado pela democracia na medida em que se constituir como esfera pública, mas isso é mais raro do que se pensa. De modo geral confundimos o público com o estatal, quando, originalmente, trata-se do contrário. A formação do Estado – em todas as suas formas pretéritas, já mencionadas anteriormente, ao Estado-nação – é o resultado de uma privatização dos assuntos comuns operada pelo autocrata. O surgimento da democracia na Grécia do século 5 foi o resultado de uma desprivatização, quando os assuntos privatizados pelo autocrata passaram a ser discutidos por todos (os iguais que quisessem e pudessem discuti-los) na polis. Por isso tinha razão Aristóteles ao sugerir que público é o que é visível indistintamente para todos na comunidade (koinonia) política. Democracia e esfera pública são realidades coevas. Apenas ao Estado democrático (e apenas na medida em que ele é democrático) pode-se atribuir um caráter público, mesmo assim – como já foi dito e veremos imediatamente a seguir – dentro de certos limites bem estritos (ou estreitos).

Em que medida a forma de Estado surgida da paz de Westfália (1648-1659) – o Estado-nação europeu moderno – pode ser considerada um Estado democrático?

Vejamos o que aconteceu. Depois da experiência fundante da democracia grega, ou seja, da primeira invenção da democracia, os modernos reinventaram a democracia e tentaram ensaiá-la no Estado-nação europeu. O Pacto do Livre Povo Inglês (1649) é as vezes tomado como um marco do início da extensão dos direitos políticos a todos os cidadãos. Mas existiram muitos antecedentes e consequentes.

A segunda invenção da democracia foi logo influenciada pela concepção do Estado liberal. Mas se tomarmos a democracia como movimento de desconstituição de autocracia e não como forma de governo, então as tentativas dos modernos de limitar as atividades do Estado, como queria von Humbolt (1792), inserem-se no mesmo movimento iniciado pelos atenienses contra a tirania (3). O sentido desse movimento é a liberdade e esse movimento é o que podemos chamar propriamente de política na acepção democrática original do termo. Não importa se a primeira democracia foi inventada contra o poder tirânico de Psístrato e seus filhos em Atenas ou se a segunda democracia foi, em parte, inventada contra a monarquia absolutista de Carlos I na Inglaterra. A despeito das teorias liberais do Estado, que tentaram interpretar a reinvenção da democracia pelos modernos do ponto de vista da liberdade do indivíduo perante o Estado, a democracia continuou sendo um movimento de desconstituição de autocracia.

Do ponto de vista dos sistemas autocráticos, amplamente predominantes, a democracia – para usar uma expressão de Saint-Exupery (1929), empregada em outro contexto (no livro “Correio Sul”) – foi “um erro no cálculo, uma falha na armadura…” devidamente corrigida nos dois mil anos seguintes à experiência dos gregos (4). Quando os modernos tentaram reinventá-la, só então se pôde perceber toda a força da tradição autocrática. Nos dois séculos posteriores às ousadias teóricas de Althusius (1603), Spinoza (1670) e Rousseau (1762) – que lançaram os fundamentos para a reinvenção da democracia pelos modernos: a ideia de política como vida simbiótica da comunidade, a ideia de liberdade como sentido da política e a ideia de democracia como regime político capaz de materializar o ideal de liberdade como autonomia –, os pensadores políticos posicionaram-se, em sua imensa maioria, francamente contra a democracia. O juízo de Burke (1790), segundo o qual “a democracia é a coisa mais vergonhosa do mundo”, é emblemático desse ânimo autocratizante que vigorou nos dois milênios anteriores à época em que a democracia foi reinventada pela primeira vez (5).

Ressaltemos agora as diferenças entre a primeira democracia e a segunda. A democracia surgiu como um projeto local, não nacional. O grupo de Péricles (às vezes chamado indevidamente de “partido democrático”) não foi constituído para tentar converter os espartanos ou qualquer povo da liga ateniense à democracia (e nem para empalmar e reter indefinidamente o poder em suas mãos, como grupo privado) e sim para realizar a democracia na cidade, na base da sociedade e no cotidiano do cidadão enquanto integrante da comunidade (koinonia) política.

Foram os modernos que tentaram transformar a democracia em um projeto inter-nacional (ou seja, válido para um conjunto de nações-Estado). Mas na sua forma originária ela só poderia se materializar plenamente – como percebeu com toda a clareza John Dewey (1927) – no local: é um projeto vicinal, comunitário, que tem a ver com um modo-de-vida compartilhado (6). E é mais o “metabolismo” de uma comunidade de projeto do que o projeto de alguns interessados em conduzir uma comunidade para algum lugar segundo seus pontos de vista particulares ou para satisfazer seus interesses (uma definição nua e crua de partido).

Como já foi dito, a polis grega do período democrático não era a cidade-Estado e sim a koinonia (comunidade) política. O Estado liberal ideal sintetizado por von Humbolt (1792) era o Estado-nação europeu moderno, como vimos, um fruto da guerra. Ocorre que guerra é sempre, em qualquer circunstância, um movimento de autocratização. Os gregos democráticos também se comportavam de forma apolítica (não-democrática) quando guerreavam, por certo, mas isso não era constitutivo do seu modo de vida democrático.

Há uma diferença, tão sutil quanto crucial, aqui: enquanto a democracia, para os gregos, era um modo de regulação da comunidade política (a polis democrática), os modernos transformaram a democracia numa forma de administração política de uma entidade estruturada pela e para a guerra (o Estado-nação). É claro que ambos os movimentos são de democratização, mas o primeiro era contra a instalação (ou melhor, a reinstalação) de um Estado como entidade privada (privatizada pelo autocrata) enquanto que o segundo era uma espécie de tentativa de convivência com uma entidade que não poderia se publicizar suficientemente pelo processo de democratização que os modernos experimentaram.

Mesmo democratizado, o Estado-nação moderno não poderia adquirir uma estrutura e uma dinâmica comunitária semelhante à da polis democrática. Essa “falha genética” da segunda invenção da democracia impediu que ela realizasse a democracia no seu sentido “forte”, como modo de vida, na base da sociedade e no cotidiano do cidadão. De sorte que o arcabouço institucional das sociedades democráticas modernas decalcou sempre, em alguma medida (e em grande medida), o modelo de uma estrutura desenhada para a guerra e, por isso, inevitavelmente, autocrática. É assim que as instituições políticas (como os governos e os partidos) e, também, muitas outras instituições da democracia dos modernos, continuaram, em grande parte, apresentando uma estrutura hierárquica e uma dinâmica autocrática.

A democracia dos modernos também não se estabeleceu a partir de nenhuma guerra, ainda que tenha ficado constrangida a se transformar em (e a se rebaixar a) um modo de administração política do Estado-nação, este sim, uma estrutura desenhada pela guerra e para a guerra. Esta, aliás, é a principal razão dos limites que a democracia atualmente existente impõe ao processo de democratização e, inclusive, mais do que isso, a razão da sua falência, agora anunciada pelos novos movimentos da sociedade-em-rede.

O que há de comum – em termos de morfologia (padrão de organização) e dinâmica (modo de regulação) – entre todas as formas conhecidas de Estado?

O que há de comum, obviamente, é… a guerra! E guerra é basicamente, hierarquia e autocracia, não comunidade (rede) e democracia. É por isso que alguns – como os anarquistas não degenerados por visões marxistas e os ultraliberais – têm razão quando dizem que o Estado é basicamente uma estrutura autocrática. Um exemplo disso é a definição nua e crua de Estado de Hans Sennholz (c. 2007):

O estado é quase que universalmente definido como um sistema que usufrui um monopólio legal do uso da violência e das decisões jurídicas supremas dentro de um dado território. Não obstante todo o circo montado pela mídia, todo o condicionamento mental e doutrinário feito pelo sistema de ensino controlado pelo governo, e todas as demais propagandas institucionais criadas para pintar o sistema político como algo nobre e moralmente dedicado a servir ao bem-estar geral, o fato é que o estado é capaz de fazer apenas uma coisa: compelir as pessoas — por meio da violência e da ameaça de violência — a fazer aquilo que elas voluntariamente optariam por não fazer, ou a se abster de fazer aquilo que elas gostariam de fazer.

Por que? Ora, porque isso é necessário, é funcional para a guerra. Mas para entender isso é preciso entender o que é a guerra.

O que há de realmente democrático e o que remanesceu de autocrático no chamado Estado democrático de direito?

Da democracia, como vimos, houve uma primeira invenção (dos antigos) e uma segunda invenção (dos modernos). A segunda democracia reinventou a primeira, não apenas a reformou. Era mesmo impossível fazer uma reforma da democracia ateniense de sorte a adaptá-la ao Estado-nação europeu moderno. Nas condições da modernidade era impossível fazer isso, quer dizer, manter a democracia como modo de regulação de uma comunidade política (local), porque o Estado-nação era uma unidade política que agregava diversas comunidades poucos conectadas entre si.

E não somente em razão – como se alega frequentemente – do grande número de pessoas envolvidas (a população de um país), que habitavam comunidades subordinadas a uma nova unidade nacional e sim em virtude das características da clusterização havida: sem atalhos e sem meios de comunicação suficientes e adequados para permitir interação em tempo real ou sem distância entre os vários clusters de parentesco e vizinhança, de trabalho e de lazer, de aprendizagem, de prática e de projeto (que continuaram existindo, sim, mas perderam grande parte da sua condição de sujeitos políticos, players coletivos válidos e necessários do jogo democrático). As condições de conectividade e interatividade das novas unidades nacionais impediam procedimentos diretos de regulação como os adotados pelos antigos.

Nasceu assim uma democracia indireta, chamada democracia representativa, nas quais as unidades passaram a ser os indivíduos arrebanhados no Estado-nação e não mais as comunidades ou os clusters convivenciais emergentes da interação social. Tendo como sujeito o indivíduo, a democracia dos modernos só conseguiu se instalar a partir de um conjunto de proteções instituídas para os indivíduos contra a sua própria unidade política, quer dizer, contra o seu próprio Estado. Como instituição desenhada para a guerra, o Estado também se armou contra o cidadão e era necessário que os cidadãos se “armassem” igualmente contra o Estado.

Eis a razão pela qual a democracia dos modernos surgiu nos marcos do liberalismo e não pode vicejar a não ser onde se constituiu, com alguma legitimidade, um Estado que não invadia a esfera dos direitos dos cidadãos: o chamado Estado de direito. Ora, tal construção não teria sido possível a partir de uma reforma da primeira democracia. Os modernos tiveram, portanto, que reinventar a democracia e por isso pode-se dizer que a democracia representativa foi a segunda invenção da democracia.

Após a experiência fundante dos atenienses tivemos um interregno autocrático de praticamente dois milênios. Quando a democracia começa a ser reinventada pelos modernos, a partir de meados do século 17, o ambiente social estava configurado de forma muito diferente. A Europa vinha de séculos de guerra contínua ou intermitente e os fluxos da convivência social tinham sido obstruídos, capturados, deformados e verticalizados a tal ponto que os graus de distribuição da rede social eram baixíssimos em quase todo lugar. O movimento de desconstituição de autocracia que pode florescer teve que se conformar às estruturas fortemente centralizadas de então, sobretudo à estrutura que já era, há milênios, o principal tronco de programas verticalizadores: o Estado. A nova forma do Estado-nação, que surgiu na Europa como fruto da paz de Westfália (1648-1659), não pode escapar dessa contingência genética: era um Estado, mais uma forma de Estado que sucedia às formas pretéritas homólogas (ou isomórficas) do ponto de vista do padrão de organização e dos modos de regulação.

Mais do que isso, porem: toda a realidade política era o Estado, a tal ponto que política era praticamente sinônimo de Estado e quando Spinoza quis falar propriamente da política, no final do seu célebre Tratado Teológico-Político (1670), ou seja quando quis afirmar que o fim (ou o sentido) da política não é a ordem, mas a liberdade (ao contrário do que pensava Hobbes), teve que falar de Estado para se fazer entender (só com o tempo surgiria uma politics relativamente independente da policy na percepção dos atores políticos) (7).

Não havia algo como uma koinonia política (como na Atenas do século 5), composta por pessoas livres (ainda que só algumas pessoas o fossem) e livres o suficiente para estabelecer relacionamentos horizontais e conversar num espaço público quando lhes desse na telha (e… para fazer politics). A política não era o metabolismo de uma comunidade e sim apenas o catabolismo e a exsudação de uma estrutura que extraía sua energia das pessoas nela inseridas como peças de uma máquina e em seguida as descartava.

A máquina que funcionava para a guerra foi (parcialmente) domesticada, por certo, quando se tentou regular seu funcionamento para proteger os “de dentro” (os arrebanhados no Estado-nação) dos seus próprios chefes (a realeza e a nobreza e, depois, os “príncipes plebeus”: presidentes e primeiros-ministros). A essa proteção se chamou direitos (dos “de dentro”), preservando-se, entretanto, a sua capacidade letal (para a guerra contra os “de fora”: os outros Estados-nações).

Parece óbvio que num ambiente assim configurado a democracia não poderia fazer muito mais do que fez. E ela fez muito, se considerarmos que, nos séculos 18, 19 e 20, aumentou consideravelmente o número de países que adotaram a democracia reinventada pelos modernos. Um de seus principais feitos, além do chamado Estado de direito, foi desativar as guerras, ao menos entre os países que a adotaram. Ora, desativar guerras é desconstituir autocracia, ou seja, é fazer democracia no sentido forte do conceito, ainda que – na ausência de guerras “quentes” ou “frias” – modos de regulação autocráticos (e compatíveis padrões de organização hierárquicos) tenham remanescido na política praticada como “arte da guerra” (a política como continuação da guerra por outros meios, na formule-inverse de Clausewitz-Lenin) entre os “de dentro”.

Aqui então chegamos ao ponto. Em virtude dos condicionamentos presentes em sua origem, a democracia reinventada pelos modernos baseou-se em instituições com estrutura mais centralizada do que distribuída. O Estado, mesmo a nova forma Estado-nação mitigada por todos as normas e procedimentos que a habilitam a ser reconhecida como Estado democrático de direito, continuou sendo uma pirâmide, um tipo de estrutura que não se pode regular a não ser com o auxílio de modelos de gestão baseados em comando-e-controle. Mas como o novo modo de regulação (a democracia) deveria se exercer na “comunidade política” válida na época (o Estado-nação), ela virou um modo de administração política dessa nova forma de Estado emergente (em grande parte, remanescente e persistente).

Tendo tudo isso em conta, examinemos então o que há de realmente democrático no chamado Estado democrático de direito. Bem, em primeiro lugar a estrutura como um todo, mais centralizada do que distribuída, é adequada à modos de regulação mais autocráticos do que democráticos. Não é falsa a afirmação de que se a estrutura do Estado não fosse mais centralizada do que distribuída (ou seja, mais hierárquica do que em rede) ele não funcionaria a contento. Não funcionaria bem mesmo porquanto, como já foi mencionado neste artigo, há um condicionamento recíproco entre o hardware e o software (para insistir na metáfora contemporânea). Estados cuja estrutura fosse mais distribuída do que centralizada não poderiam funcionar na base do comando-e-controle; ou, se funcionassem, não perdurariam sendo Estados (propriamente ditos). Por isso que a polis ateniense não era propriamente um Estado. Mas isso não significa que as dificuldades de instalar processos de governabilidade autocrática nessas estruturas não conseguiriam encontrar formas estáveis e duráveis de governança (como demonstraram os quase 200 anos da koinonia política grega).

Quase todas as instituições do Estado-nação, mesmo após ter sido consagrada a versão do Estado democrático de direito, são mais hierárquicas do que em rede e têm um funcionamento mais autocrático do que democrático. Das grandes instituições – chamadas de poderes nas Repúblicas e nos governos representativos – sobra quase que somente o parlamento. Mas mesmo as normas que regem os parlamentos estão cheias de contrabandos autocráticos, como os poderes monocráticos dos presidentes e das mesas diretoras das casas legislativas. Todas as demais instituições dos poderes executivo e judiciário são, em grande parte, opacas ou infensas à procedimentos democráticos. São compostas por nomeação soberana do chefe de governo ou por nomeação aprovada pelo parlamento, mas não são eleitas. Assim, no fundamental para o poder de Estado, ou seja, para operar o monopólio legal do uso da violência e das decisões jurídicas supremas, tais instituições, além de hierárquicas são, com uma ou outra mitigação, autocráticas. Nem mesmo a democracia representativa conseguiu violar as remanescências autocráticas do Estado-nação, pois há poderes fundamentais que são constituídos com base em delegação e não em representação.

Retomemos a comparação entre a democracia dos antigos e a democracia dos modernos.

Não houve nada como uma evolução na passagem da democracia dos antigos para a democracia dos modernos. Aliás, não houve nem uma passagem. A democracia foi simplesmente reinventada em outro mundo. Reapareceu, sob outra forma, dois milênios depois.

Sim, foram mundos diferentes (em termos sociais). A experiência da democracia grega, ensaiada entre 509 e 322 a. E. C., foi um mundo que se abriu e fechou e só a análise posterior pode encontrar um liame entre aquela experiência e a da sua reinvenção pelos modernos, dois mil anos depois. Não houve continuidade, não houve qualquer evolução; pelo contrário, o que tivemos depois do ensaio fundante da democracia foi retrocesso. Por dois mil anos foi – para todos os efeitos – como se aquele mundo que atingiu seu apogeu no chamado “século de Péricles” não tivesse existido. No entanto… após milênios, eis que surge um modo de regulação de conflitos baseado no mesmo fundamento básico: a liberdade de opinião. Só podemos chamar as duas invenções com o mesmo nome (democracia) porque foram ambas movimentos de desconstituição de autocracia (não importa se representada pelo filho restante de Psístrato ou por Carlos I).

Voltemos ao ponto. A primeira democracia era um projeto local, comunitário. A segunda democracia foi um projeto nacional (quer dizer, estatal, posto que é o Estado que representa a nação e fala por ela: ele é o sujeito político válido, em grande medida porque invalidou todos os demais). Ora, como o Estado era autocrático, tudo continuaria como antes se ele fosse representado apenas pelo príncipe ou pela aristocracia. Então foi preciso eleger a nova aristocracia (política) a partir do povo. Mas quem é o povo (um conceito, ademais, muito problemático do ponto de vista da democracia, já que a palavra populus, no contexto europeu onde foi inventada a segunda democracia, designava originalmente “contingente de tropas”)? Ora, o povo é a soma dos indivíduos que compõem a população do país, ou melhor, a parte desses indivíduos que, segundo critérios que foram sendo modificados ao longo do tempo, poderia ter o direito de escolha pelo voto (inicialmente e por muito tempo – tal como em Atenas – excluía-se desse contingente os estrangeiros e as mulheres e os escravos; e depois, no lugar dos antigos escravos, os que não tinham posses suficientes).

Quando o povo arrebanhado no Estado-nação deixou de ser as comunidades ou os clusters convivenciais emergentes da interação social e passou a ser a soma dos (de alguns dos) indivíduos, a única maneira de regular politicamente a sua soberania para se governar (já que democracia é o governo do povo) foi lançar mão de meios indiretos: através de seus representantes. O resultado foi que o indivíduo ficou indefeso diante do Estado e então foi necessário instituir um conjunto de proteções destinadas a salvaguardar seus direitos contra seu próprio Estado. É assim que o instituído virou constituído e surgiram as constituições e o chamado Estado democrático de direito na democracia indireta, representativa, dos modernos.

Mas indivíduos isolados, chamados periodicamente a opinar, tiveram alguma dificuldade de constituir um sentido público (por várias razões, dentre as quais a mais óbvia é que a opinião pública não é a soma das opiniões privadas da maioria da população). Encarar o indivíduo como átomo do processo democrático, como o player em primeira instância do jogo democrático, é problemático porquanto o indivíduo é uma abstração: os seres humanos concretos são pessoas, quer dizer, são entroncamentos de fluxos, emaranhados de relacionamentos. E somente nesses relacionamentos pode ser construído o commons (que consubstancia a esfera pública). Como não pode existir democracia sem esfera pública (são realidades coetâneas e emergiram coevamente), o player da democracia é sempre molecular, não atômico.

O governo na polis ateniense era a Ecclesia. Não que houvesse um governo exterior à assembleia, um governo que usasse a assembleia. Não: ele, o governo (kibernesis) era um atributo da assembleia, os fluxos interativos – embora de média intensidade – que a percorriam, o seu “humor” variável, as tendências que a conversação apontava e as decisões que reverberavam (ou não), cujas consequências retroagiam gerando não raro novas decisões, inclusive opostas às anteriores, o comportamento adaptativo que era obrigada a desempenhar nessas circunstâncias fluidas, um pouco semelhante mesmo ao metabolismo de um organismo. A assembleia detinha todos os poderes de governação: relativos à legislação, às questões judiciais e executivas, inclusive no que tange à política externa. Podia destituir magistrados e fiscalizar todos os cargos que nomeasse. E tudo isso não era feito por pouca gente: estima-se que, em algum momento do século 5, milhares de pessoas participavam da Ecclesia que, em certos períodos, chegou a se reunir semanalmente.

O governo no Estado-nação europeu moderno, após a segunda invenção da democracia, já não era nada disso e sim uma delegação, uma espécie de Boulé estável com muito mais autonomia em relação aos seus constituintes, que não existiam mais como organização social, como instância concreta e sim apenas como derivação – e totalização aritmética – das opiniões dos cidadãos e que não podia, portanto, captar o fluxo da convivência social, quer dizer, a rede = o que estava entre-eles. A democracia dos modernos perdeu substância social em comparação com a dos antigos.

Entraram em cena então os representantes, que se comportavam, para todos os efeitos práticos, como uma espécie de aristocracia política. Em alguns casos, quando não cabia a tais representantes (legislativos) eleger os chefes (executivos) do Estado ou do governo – quando estes passaram a receber a delegação diretamente dos indivíduos (eleitores) – a figura do príncipe (não dinástico, com mandato temporário e submetido às leis) foi re-entronizada. O que trouxe um sem-número de novos problemas.

De qualquer modo, já havia problemas semelhantes com a assembleia dos gregos. O primeiro deles é que a Ecclesia era vulnerável ao discurso inverídico. Um orador jactante, por exemplo, podia levá-la a tomar medidas inconsistentes com as possibilidades reais de ação da polis. Ademais, os próprios oradores – os hoi politeuomenoi – eram um problema quando se perpetuavam, adquirindo a condição de políticos profissionais. A retórica, neste caso, para além da lógica discursiva e de qualquer razão comunicativa, influenciava decisivamente a formação da vontade política coletiva: os que possuíam o “dom” (como se acreditava e, em parte, ainda se acredita) ou os que estavam mais treinados na arte de conduzir assembleias, acabavam tendo um papel desproporcional em relação aos demais.

Foi em parte por isso, pode-se presumir, que Péricles conseguiu manter seu protagonismo por tanto tempo. Tudo isso, porém, não pode ser explicado adequadamente pela vontade deliberada de alguns agentes de praticar a demagogia ou de conduzir a assembleia. Pois nada disso poderia acontecer se… não houvesse a assembleia e os seus procedimentos participativos dirigistas. Como se sabe, a pauta da Ecclesia era feita pela Boulé (um conselho menor, mais facilmente controlável, que acabava tendo grande influência nos resultados da assembleia).

O processo era bem parecido com o das assembleias ensaiadas hodiernamente sob o nome de democracia participativa, no qual direções de instituições centralizadas elaboram a ordem do dia dos debates que ocorrerão, estabelecem as regras desse debate, concedem e cassam a palavra, abrem e fecham os trabalhos e privilegiam os participantes alinhados à sua orientação política. Tais procedimentos manipuladores acabam se transformando em estratégias de conquista de hegemonia, de “ganhar” a assembleia, de impedir que outros participantes alinhados a orientações políticas concorrentes adquiram notoriedade ou sejam escolhidos para as direções. Toda assembleia é manipulável porque a participação reflete graus baixos de interação: na participação a interação não é livre o suficiente para evitar o controle de uma oligarquia (ainda que seja uma oligarquia participativa e, no caso, trata-se disso mesmo). Como na Wikipedia, quem participa mais, tem mais chances de conduzir (porque tem poderes ou privilégios regulatórios aumentativos em relação aos demais).

Não se pode esquecer – e por isso insistimos em repetir – que a democracia dos antigos foi um projeto local (no sentido de ter sido uma realidade configurada por um comunidade local: a polis). Os outros locais não estavam nem aí para a inusitada experiência dos atenienses (que foi uma espécie de ilha num mar de cidades-Estado autocráticas). Dois mil anos depois os modernos pretenderam chegar a uma fórmula global de democracia, tendo conseguido, entretanto, apenas ensaiar algumas experiências nacionais. Não conseguiram nem fazer valer a democracia no plano internacional (que continuou sendo regido pelo realismo político e, como se sabe, toda realpolitik é autocrática).

Voltemos novamente ao ponto. A democracia inventada pela segunda vez pelos modernos, conquanto tivesse sua origem na desconstituição das monarquias absolutistas (a autocracia europeia do século 17), acabou virando um modo político de administração da nascente estrutura do Estado-nação e de mitigação de seu poder em defesa do cidadão (impedindo que esse poder avançasse sobre ele de modo a restringir sua liberdade individual básica, daí o seu caráter liberal). Surgiram então os Estados democráticos de direito. Mas a estrutura desses Estados não se deixou alterar, ela mesma, por padrões de organização mais distribuídos do que centralizados e, como resultado dessa resiliência hierárquica, tivemos modos de regulação democráticos de baixa intensidade (porque de baixa interatividade).

Ora, a forma Estado-nação se reproduziu em quase duas centenas de nações, constituindo os países atuais e foi tentada (ainda que sem sucesso em muitos casos) a carregar consigo o seu modo de regulação democrático formal. Mas a democracia não tem a ver com as exigências de governança desse novo modelo de dominação sobre as sociedades que se espalhou pelo mundo (o Estado-nação). As unidades político-territoriais centralizadas chamadas de países continuaram, não obstante as tentativas de democratização ensaiadas no seu interior, em grande parte infensas (e avessas) à democracia. Além disso a segunda democracia não conseguiu atingir, ao final da primeira década do século 21, cerca de 60 países, que remanescem como autocracias (ou ditaduras, regimes autoritários ou países não-livres, como Cuba, China ou Coréia do Norte). Além disso, remanescem também: regimes em transição autocratizante ou protoditaduras (como Bolívia, Equador, Nicarágua ou Turquia); regimes em transição democratizante ou protodemocracias (como a Tunísia); democracias formais parasitadas (até o início deste ano de 2016) por governos manipuladores (como Argentina ou Brasil); democracias formais representativas não-plenas ou flaweds (como Grécia ou Índia); e democracias formais representativas plenas (como Noruega, Finlândia ou Japão). No grupo destas últimas – que representaria a democracia dos modernos em sua plenitude – não temos mais do que 30 países (se tanto).

O fato é que, mais de três séculos depois de ter sido reinventada, a democracia – em todas as suas formas (plenas e não plenas, aperfeiçoadas ou defeituosas) – não atinge a maior parte da população do planeta: 3,9 bilhões de pessoas que vivem sob cerca de 60 regimes não-livres. As tentativas de democratização dos regimes políticos não foram assim tão bem-sucedidas como se propaga e o número de regimes democráticos não está crescendo no mundo: em dados de 2011, entre 51 e 57% da população mundial não viviam em regimes livres e esta porcentagem já foi menor!

O Estado-nação contemporâneo é um ambiente favorável à continuidade do processo de democratização?

Ainda que lhe tenha sido imposto a noção de Estado de direito, o Estado-nação não se democratizou suficientemente em virtude disso.

A fórmula Estado democrático de direito é um remendo. Foi o que a democracia conseguiu fazer para refrear o ímpeto belicista do Estado-nação. Ou alguém imagina que aquele fruto da guerra estava muito preocupado com a esfera de autonomia e de liberdade dos cidadãos? É óbvio que não. Deixado a si mesmo, o Leviatã invadiria tudo e travaria guerras contra os de seu próprio povo. Foi preciso domesticá-lo com a noção de direito. Mas o Estado de direito como império da lei, supostamente para se contrapor ao império da vontade do soberano, não é suficiente para caracterizar o Estado democrático. Conseguiu, por certo, proteger os cidadãos do seu próprio Estado, impedindo que eles fossem transformados em súditos de um soberano autocrata, mas não conseguiu fazer com que os cidadãos deixassem de ser, em alguma medida, súditos das próprias instituições do Estado. Sim, agora as instituições são compostas por processos considerados democráticos, como a eleição de legisladores e governantes que, por sua vez, têm o poder de delegar seu poder originário conferido pelo povo, de modo monocrático ou colegiado, mas isso não basta.

Para a democracia – tomada no sentido fraco do conceito, como modo de administração política do Estado-nação – o Estado de direito (quase) deu, até agora, para o gasto. Mas para a democracia entendida como processo de democratização do Estado e da sociedade, não. A democracia dos modernos ficou meio congelada numa fórmula setecentista justamente por causa disso. Porque o ambiente estatal não é favorável à continuidade do processo de democratização. O chamado império da lei é um império mesmo, não uma democracia da lei. Ao coagular determinados procedimentos, o arcabouço legal seleciona os fluxos que são permitidos e elimina ou obstrui os que não são (isto é o que se chama de hierarquia), com isso dificultando a abertura de novos caminhos que seriam necessários para… mudar as leis! Ainda que nas democracias representativas os parlamentos possam mudar as leis, na prática isso é mais difícil do que dizem os discursos legitimatórios sobre elas: as Constituições têm cláusulas pétreas (expressão que já revela um absurdo diante do fluxo interativo da convivência social) e mesmo suas cláusulas ordinárias, por assim dizer, só podem ser mudadas por maiorias qualificadas dos representantes. Ou seja, o Estado refrata em vez de refletir (tendo sempre em vista os seus interesses como estamento separado da cidadania e soberano sobre ela, tendente a reconverter cidadãos em súditos), os movimentos da sociedade, com isso gerando um retardo institucional que é funcional para a manutenção e reprodução do status quo. Ademais, há muito atrito de gestão (por falta de caminhos em razão da centralização), altíssimos custos de transação (dado o caráter adversarial da disputa política) e, inclusive, perdas enormes de sinergia no sistema como um todo (pois essa história de harmonia entre os poderes é mais uma conversa mole: onde há poder de excluir nodos, eliminar conexões e separar clusters, há sempre disputa de poder, não sinergia). Isso nos leva à última questão.

Basta obedecer as leis democraticamente aprovadas para se ter um Estado democrático?

A resposta óbvia é: não! Mesmo no caso do Estado democrático de direito, tal como compreendido acriticamente pela maioria das pessoas, a legalidade é apenas um dos componentes da legitimidade dos regimes democráticos. Além da legalidade temos a liberdade, a eletividade, a publicidade (ou transparência), a rotatividade (ou alternância) e a institucionalidade. E, convenhamos, pelo menos alguns desses atributos da democracia dos modernos não são muito compatíveis com a estrutura e a dinâmica do Estado. Realizá-los exige sempre “forçar a barra” (e é isso que faz a democracia, no que concerne ao processo de democratização do Estado).

Em segundo lugar, parece claro que a democracia, tomada como movimento de democratização, é mais um processo do que propriamente um estado. Estado democrático seria então o Estado violável pela democracia, ou seja, o Estado que se democratiza ou que não impede ou dificulta demasiadamente (embora isso seja impreciso) a continuidade do processo de democratização (do próprio Estado, da sociedade e da relação entre Estado e sociedade). Obedecer às leis pode caracterizar um Estado de direito, mas não um Estado democrático, mesmo quando as leis sejam “democraticamente aprovadas” (ou seja, aprovadas por parlamentos livres e independentes do governo e do judiciário). Mas basta uma breve olhada nas iniciativas de lei do executivo que são aprovadas em comparação com as leis aprovadas à revelia do executivo, para se ter uma boa ideia do quanto é livre e independente o legislativo nas democracias hodiernas.

O Estado de direito é condição necessária, porém não suficiente, para o Estado democrático, tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista teórico (de uma visão social da democracia). A fórmula Estado democrático de direito seria redundante se não fosse assim e ela não é, ainda que o que há de democrático seja menos do que o que há de direito nos Estados democráticos de direito realmente existentes. O legalismo dos tribunais e do mundo jurídico em geral é menos democrático do que se pensa. E quando atores políticos adotam uma ideologia legalista, menos ainda a democracia estará garantida. Atores políticos que avaliam que se as leis forem cumpridas, tudo bem, se comportam como se a democracia já estivesse desenhada, normatizada, codificada e se trataria agora e doravante (até qual milênio futuro não se sabe) apenas de cumprir o código. O nome disso não é respeito às leis e sim legalismo, que não passa de uma ideologia conservadora (no sentido de que quer conservar, na verdade quase congelar uma disposição pretérita e pavimentar, segundo ditames dela derivados, um caminho para o futuro). Mas nenhum legalismo – obtuso ou esclarecido – é capaz de proteger a democracia dos que querem autocratizá-la.

Por isso pode-se dizer que a principal defesa do Estado democrático não são as instituições judiciais e políticas organizadas top down e sim a sociedade organizada bottom up, quando exige que o Estado se horizontalize, fique mais transparente, reconheça novos direitos, não dificulte a aprovação de novas leis mais acordes à vida social real, não queira educar a sociedade e se meta o menos possível na vida dos cidadãos e das comunidades.

Notas e referências

(1) ARENDT, Hannah (1959). “A questão da guerra” in O que é política? (Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

(2) ARENDT, Hannah (1958). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

(3) von HUMBOLT, Alexander (1792). Ensaio sobre os limites da atividade do Estado.

(4) SAINT-EXUPERY, Antoine (1929). Correio Sul. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

(5) Cf. ALTHUSIUS (1603). Política; SPINOZA (1670). Tratado Teológico-Político; e ROUSSEAU (1762). O Contrato Social. Cf. ainda: BURKE (1790). Reflexões sobre a Revolução Francesa. A citação de Burke é: “Uma democracia perfeita é portanto a coisa mais sem-vergonha no mundo”.

(6) DEWEY, John (1927). The Public and its Problems. Chicago: Gataway Books, 1946 (existe edição em espanhol: La opinión pública y sus problemas. Madrid: Morata, 2004). Existem alguns excertos traduzidos deste livro no livro de FRANCO, Augusto e POGREBINSCHI, Thamy (orgs.) (2008). Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre: ediPUCRS, 2008.

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Análise política #014 (10/07/2016)

C. Q. D.