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Estamos sendo envenenados

O processo de redução do conteúdo liberal da nossa democracia já foi desencadeado, está em curso e avançará – se não for parado

Esta nota vai para alguns analistas políticos que acham que a democracia no Brasil não está ameaçada e nem sob ataque porque as instituições estão contendo, filtrando e metabolizando as investidas autoritárias do bolsonarismo.

É claro que as instituições – como o Congresso, o STF e a imprensa – estão fazendo isso. Se não estivessem não estaríamos nem discutindo a questão. O Brasil já teria virado uma autocracia eleitoral (ou quase, como a Hungria) – que é o perigo real no horizonte, já que dificilmente deixaremos de ser um regime eleitoral (virando uma autocracia fechada como a Coréia do Norte).

Mas é preciso ver que do fato das instituições continuarem funcionando de acordo com a Constituição não se pode derivar a conclusão de que, então, tudo bem: nossa democracia está apenas exibindo seu vigor.

Porque ainda que as instituições estejam contendo, até agora, os arroubos incivis de Bolsonaro e impedindo que ele imponha suas propostas autoritárias – como a liberação do porte de armas, a licença policial para matar, a censura às atividades artísticas e culturais, o estrangulamento financeiro às atividades científicas e a redução da autonomia das universidades, a militarização do ensino e a imposição de uma ideologia bolsonarista nas escolas, o fim dos controles ambientais e a invasão das terras dos indígenas e quilombolas, a asfixia econômica dos meios de comunicação não-alinhados e das organizações não-governamentais, a restrição dos direitos das chamadas minorias, a criminalização dos movimentos sociais como organizações terroristas, a redução dos programas de combate à pobreza e de proteção social e o aparelhamento do Estado por militares e por sequazes da ideologia chapa-branca, o alinhamento da política externa brasileira ao movimento nacional-populista, autoritário e reacionário, de extrema-direita de Steve Bannon e Olavo de Carvalho, para citar apenas alguns exemplos – isso não significa que o bolsonarismo não esteja corroendo as bases sociais da democracia liberal, ou seja, não significa que não esteja dilapidando velozmente o nosso estoque de capital social.

Isso significa que mesmo que não deixemos de ser uma democracia eleitoral, seremos, ao final do primeiro mandato de Bolsonaro (para não falar de um segundo mandato, se houver) – ainda que nossas instituições continuem funcionando como estão -, uma democracia eleitoral menos liberal do que é hoje. Na melhor das hipóteses nossos indicadores de direitos políticos e, sobretudo, de liberdades civis, vão assinalar quedas relevantes (que serão registradas por todos os institutos que monitoram a democracia no mundo).

A democracia (no que tem de substância liberal) precisa de um estoque mínimo de capital social para poder funcionar. Dentre os exterminadores de capital social um dos mais perigosos é o clima adversarial instalado na base da sociedade quando é capaz de alterar o comportamento cotidiano dos cidadãos. Quando o próprio governo investe na polarização política, instaurando um ambiente de guerra civil fria, ainda que no formato de guerra cultural, a destruição de capital social aumenta exponencialmente.

As instituições – a menos que removam o chefe do governo – podem fazer muito pouco para deter esse processo lento de degeneração que deforma o ambiente social (ou esgarça o tecido social) responsável por permitir que se expresse o conteúdo liberal da democracia. Elas, de fato, como vêm fazendo, obrigam o governo a recuar em suas propostas mais flagrantemente autoritárias, mas esse recuo nunca é uma volta exatamente à posição anterior. A cada investida seguida de um recuo há um pequeno avanço autoritário, milimétrico que seja. As instituições democráticas continuam funcionando formalmente, mas o processo de democratização é enfreado, um pouco de cada vez. É como se estivéssemos sendo envenenados.

Sim, estamos sendo envenenados. Um envenenamento lento e progressivo, às vezes homeopático, vai alterando o DNA da democracia. O bolsonarismo secreta uma espécie de arsênico político, que – se administrado continuamente por tempo suficiente – não pode ser metabolizado pela democracia.

É, antes de qualquer coisa, um envenenamento das relações humanas provocado pelo aumento da desconfiança. Mas é também um envenenamento dos campos de relacionamentos que chamamos de social, ou seja, não somente dos indivíduos, mas do que acontece entre eles para virarem pessoas. Se o que acontece entre eles diminui a taxa de associação espontânea para contender com problemas comuns ou para realizar projetos que nasçam da congruência de seus desejos, então é sinal de que há uma recessão ou depressão no capital social. É claro que algum dia isso chega às instituições. Quando uma pessoa acredita e confia menos nas outras, está mais próxima de desacreditar e desconfiar também das instituições.

É assim que, no mundo atual, as democracias vêm sendo corroídas por dentro. Não há mais golpes de Estado, com ações disruptivas concentradas no tempo, resultando em ditaduras clássicas. Agora trata-se de retardar o processo de democratização e isso não se dá apenas pela corrosão das instituições formais e sim também, senão principalmente, por alterações nos fluxos interativos da convivência social que aumentam o grau de inimizade política na base da sociedade e no cotidiano do cidadão. Quando o chefe do governo tem liberdade para se comportar como um chefe de facção (em guerra), é sinal de que o processo já está em curso. Ou seja, é sinal de que os constrangimentos institucionais não estão funcionando a contento.

Com o tempo, as próprias instituições formais da democracia também vão tendo sua dinâmica modificada. E se esse ataque perdurar por tempo suficiente, haverá alteração, inclusive, da composição dessas instituições. Ou seja, as instituições que dependem de decisões arbitrárias do governo, serão assaltadas por dentro. Por exemplo, no seu primeiro mandato, Bolsonaro já pode mudar a atual correlação interna de forças no STF (nomeando dois ministros alinhados ao governo) e pode se apossar, igualmente, de importantes órgãos de controle do Estado, como a Polícia Federal, o Coaf, a Receita Federal, a Procuradoria Geral da República, as agências reguladoras etc. Ademais, pode colocar os organismos de inteligência do Estado (como a Abin) a serviço do seu projeto político antidemocrático. Tudo isso já vem sendo feito pelo governo Bolsonaro.

Para ilustrar tudo isso basta um exemplo. As modificações na composição dos tribunais superiores podem anular, pelo menos em parte, a resistência parlamentar e neutralizar a oposição formal. Leis aprovadas pelo Congresso podem ser anuladas pelo Supremo Tribunal Federal, assim como vetos parlamentares a decretos e medidas provisórias do executivo podem ser derrubados pelo judiciário atrelado. Basta ver como Viktor Orbán e Recep Erdogan fizeram e continuam fazendo na Hungria e na Turquia.

Esta é a via bolsonarista. Não se a percorre da noite para o dia, mas acontece. Esse processo de degeneração da democracia, ou melhor, de redução do conteúdo liberal da democracia, pode levar uma década ou mais, mas avança – se não for parado. E ele não será parado sem a resistência democrática dos cidadãos, exercida em todo lugar.

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