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Ideologia: você não precisa de uma para ser democrata

“Meus heróis
Morreram de overdose
Meus inimigos
Estão no poder
Ideologia!
Eu quero uma pra viver
Ideologia!
Eu quero uma pra viver”

Ideologia, Cazuza & Roberto Frejat

Pois é. Embora a ideologização seja inevitável em qualquer processo de pensamento, isso é muito diferente de construir ou esposar uma doutrina que explique tudo – ou segundo a qual o mundo faça sentido, em termos mecânicos, com cada peça no seu lugar cumprindo a sua correta função -, aderir a um credo que indique o que se deve fazer ou adotar um conjunto de critérios axiológico-normativos para reconfirmar, a cada instante, que se está no caminho certo, do lado do conhecimento contra a ignorância ou do lado do bem contra o mal.

Vejamos agora o caso do combate à corrupção no Brasil, apoiado pela maioria da população. É claro que a corrupção não é uma coisa boa. Mas a partir da constatação de que tudo está corrompido no mundo político, ressurge nas consciências o padrão mítico de que deve-se corrigir a malfunction para regenerar a política (e o mundo).

Quem pensa assim, acaba confundindo o corrupto Berlusconi com Mussolini. Berlusconi, além de ser uma pessoa concreta, um político eleito após a imensa operação de limpeza chamada Mani Pulite, na Itália dos anos 1990, é também uma metáfora. Pode ser trocado, por exemplo, por José Sócrates (o político português contemporâneo processado por corrupção) para dizer que este último não deve ser confundido com Salazar. Ou por Rafael Caldera – o político venezuelano, corrupto como qualquer outro político venezuelano – para dizer que este antecessor de Chávez não deve ser confundido com seu sucessor. Ou, ainda, por Péricles, o principal expoente da primeira democracia, inventada pelos atenienses, que foi acusado de corrupção, prevaricação e nepotismo. Tudo isso é para mostrar que não se pode pretender limpar as pessoas. Reformadores morais – de farda, de toga, de terno ou sans-culotte – sempre levaram a humanidade a mais autocracia, nunca a mais democracia. A democracia é imperfeita, suja e curva mesmo. Não é um regime sem corrupção e sim um regime sem um senhor.

A ideia de que há um mal funcionamento que possa ser consertado pela ação voluntária de pessoas imbuídas de um conhecimento verdadeiro e de boas-intenções, de uma doutrina correta (uma orto-doxa, na verdade uma ideologia) ou de honesta dedicação a uma causa, é problemática. É como se as pessoas que soubessem mais (ou possuíssem o verdadeiro conhecimento) ou de que as pessoas que são mais éticas do que as outras tivessem o condão de consertar o mundo.

Aí aparecem “soluções” autocráticas, como a da meritocracia e a do governo dos bons, que querem instituir alfândegas ideológicas para selecionar os que podem entrar na cena política.

Mas a democracia não aceita nenhum desses dois tipos de alfândega ideológica:

1 – Nem um vestibular propriamente dito, para aferir se a pessoa sabe alguma coisa (que confunde o justo reconhecimento do mérito com meritocracia, ou seja, com um modo de regulação que confere a quem sabe mais poderes aumentativos em relação a quem sabe menos). Para entrar, basta ter opinião (doxa), não conhecimento (episteme ou techné) atestado por currículos, títulos, certificados, diplomas e verificado em provas, testes e concursos.

2 – Nem uma espécie de “vestibular” moral, para aferir se a pessoa é boa ou limpa o bastante. A democracia não é um sodalício dos puros e perfeitos e sim um regime que aceita na comunidade política os seres humanos realmente existentes, sujos e imperfeitos.

Essas duas alfândegas, interpostas para bloquear ou filtrar os fluxos de entrada, levam diretamente à autocracia, não à democracia. E, sim: são alfândegas ideológicas porque tudo isso – acreditar que uma pessoa mais sábia ou mais ética tem mais condições de governar as outras – não passa de ideologia. Mas você não precisa de ideologia para ser um democrata: basta não desejar ser conduzido por nenhuma pessoa concreta e sim por normas livremente pactuadas na esfera pública – e por isso a democracia foi chamada de império da lei (à qual todos devem se submeter), para dizer que não é o império de um ser humano sobre os demais (acima da lei construída por seus iguais em termos políticos ou abaixo de uma espécie de sharia, outorgada por qualquer ente sobre-humano).

A democracia não é governo dos sábios, nem o governo dos bons. Não é o governo dos que possuem a ideologia correta, nem o governo dos que querem aperfeiçoar a si mesmos e os outros. É o governo de qualquer um, independentemente da ideologia que abraça (mesmo que ache que precise dela para viver). Ainda que todo governo seja, em alguma medida, oligárquico, a democracia é o único regime político construído para funcionar sem um senhor.

Não tem nada a ver com saber defender uma ideia (ou ideologia). Os que sabiam defender a democracia como ideia (para usar uma expressão de John Dewey) não eram maioria na Atenas do século 5 A. C. E continuam sendo minoria nas democracias realmente existentes na atualidade.

 

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