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Inventando o bolivarianismo

Vejam como a Venezuela, sobretudo em razão do seu petróleo, foi capturada pela ditadura cubana. Leiam mais um relato de Juan Reinaldo Sánchez, que foi guarda-costas pessoal de Fidel, no seu livro A vida secreta de Fidel (2014), disponível em PDF para download no link. Atenção para a seguinte passagem, no último parágrafo:

“Juntos, Castro e Chávez, graças ao gênio político de um e ao petróleo do outro, conseguiram relançar o internacionalismo — projeto do século XIX, inspirado em Simón Bolívar e no cubano José Martí (1853-95), grande teórico do anti-imperialismo que pregava a solidariedade internacional —, criando a Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), organização esquerdista que reunia essencialmente Bolívia, Equador e Nicarágua.”

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A OBSESSÃO VENEZUELANA

Os motores tinham sido desligados e ouvia-se apenas o marulho das ondas batendo no casco do Aquarama II. Sob o céu estrelado, o ar quente acariciava a pele e a lua cheia iluminava a paisagem. Já era tarde — talvez meia-noite. A bordo do iate de Fidel, a uma milha náutica de sua ilha privada, Cayo Piedra, ele e “Gabo” estavam fazendo uma memorável pescaria noturna. “Gabo” é Gabriel García Márquez, o escritor colombiano e Prêmio Nobel de Literatura, que Fidel, um ano mais velho, conhecia desde o início dos anos 1960, quando jornalistas latinos vindos de toda a América do Sul fundaram a agência de notícias cubana Prensa Latina. Correspondente dessa agência nos Estados Unidos por algum tempo, Gabriel García Márquez em seguida se distanciou do castrismo para se dedicar a sua vocação, a literatura, mas acabou voltando a Fidel nos anos 1970, fascinado pelo homem no poder e por seu discurso ancorado no nacionalismo continental, ou “panlatino”.

Um terceiro amigo também estava a bordo. Um convidado pessoal do comandante, um homem de negócios latino-americano cujo nome e nacionalidade não consigo lembrar.

A ideia de sair ao mar tinha sido de Fidel. Que alegria pescar à noite no Caribe, bebericando um uísque doze anos! Havia um único porém: com Fidel, uma inocente pescaria podia logo se transformar numa competição. Naquela noite, a sorte estava do lado do convidado. “Um!”, gritou sorridente o empresário sul-americano ao pegar seu primeiro peixe. “E dois! E agora três!”, continuou, triunfante, sem imaginar que o anfitrião poderia não gostar. E a litania continuou: “E quatro!”. E assim por diante… Duas horas depois, o convidado tinha no mínimo cinco peixes a mais no fundo de seu balde.

Com o canto do olho, eu observava el comandante, que parecia contrariado: fazia certo tempo que não abria a boca… Gabo começou a ficar cansado: bocejou. Naquela hora avançada da noite, o autor de Cem anos de solidão me puxou para um canto e sussurrou em meu ouvido: “Ei, diga a nosso camarada que pare com a pesca miraculosa, pois nesse ritmo nunca iremos para a cama…”. Gabo conhecia Fidel suficientemente bem para saber que ele era um mau perdedor tanto na pescaria e no basquete quanto em qualquer outra atividade competitiva. E que não entregaria as armas enquanto não tivesse pescado um peixe a mais que o convidado. Transmiti a mensagem a este último e, uma hora depois, Fidel, que recuperara o atraso, decretou: “Bom, acho que a pescaria foi boa. Agora está na hora de voltar!”.

A partir dos anos 1970, Gabriel García Márquez se dividiu entre o México, onde tinha uma casa, e Cuba, onde Fidel colocara a sua disposição uma “casa de protocolo” com piscina, Mercedes-Benz, motorista, cozinheiro e tutti quanti, na rua 46 do bairro Playa. Ao longo dos anos 1980, Gabriel García Márquez passou muito tempo em Cuba. Estava sempre com Fidel, seja visitando-o no Palacio ou recebendo-o em sua casa, e também quando o comandante em chefe e o Prêmio Nobel de 1982 partiam para um final de semana no paraíso insular de Cayo Piedra. Numa noite do ano de 1984, acho que por volta das dez horas, Fidel passou para ver Gabo em casa e, durante a conversa, el comandante, que pensava em política e fazia planos a todo minuto, sugeriu-lhe, um pouco de brincadeira, que ele se candidatasse à eleição presidencial colombiana, prevista para dali a dois anos.

— Ouça, Gabo, me parece que você poderia legitimamente apresentar sua candidatura à presidência da Colômbia… Você tem todas as chances, sabe… Seria um excelente candidato. Além disso, nós o apoiaríamos de Cuba com todos os meios a nossa disposição.

Lembro que, naquela hora, Pepín, o assistente de Fidel, me puxou de lado e disse, um pouco entretido e um pouco incrédulo:

— Você ouviu? O chefe está tentando convencê-lo a se tornar presidente… Vamos ver no que isso vai dar…

Não deu em nada, para falar a verdade, pois Gabo logo dispensou a ideia “luminosa” de Fidel. Ciente de não ter instintos eletivos, o escritor colombiano sempre preferiu, parece-me, gozar dos prazeres da vida, mantendo-se confortavelmente afastado da política, em vez de se lançar numa aventura incerta que não combinava com seu temperamento. Caso mudasse de ideia, é claro que Fidel o teria apoiado com todas as suas forças. E com toda a ciência política do jefe, não duvido que García Márquez, então no auge da glória, teria vencido a eleição em seu país. Depois disso, teria sido muito fácil para Fidel aconselhar, influenciar e manipular o amigo para fazer a Colômbia entrar definitivamente na órbita de Cuba, e isso da forma mais democrática possível.

A História foi diferente. Mas contei isso para mostrar a que ponto Fidel Castro, de criatividade desenfreada, era capaz de ir para redistribuir as cartas do grande jogo da política, a todo momento e por todos os meios existentes — seja pela subversão, pelas eleições, ou graças a um cavalo de troia como poderia ter sido Gabo.

Tendo fracassado em instrumentalizar o amigo Gabriel García Márquez, foi no país vizinho, a Venezuela, que el comandante conseguiu o que queria, mas muito mais tarde, adquirindo ascendência sobre o coronel Hugo Chávez, que, no fim da década seguinte, em 1999, chegou ao poder em Caracas.

A Venezuela sempre ocupou um lugar de destaque no pensamento geoestratégico de Fidel. El comandante sempre teve o petróleo venezuelano na mira, pois sabia desde o início que ele seria a chave para financiar seu sonho internacionalista e enfrentar os americanos. Não foi um acaso, portanto, que apenas três semanas depois do Triunfo da Revolução Cubana em Havana ele tenha viajado para a Venezuela, à qual reservou sua primeira viagem internacional, em 23 de janeiro de 1959. Esse deslocamento tinha uma dupla dimensão simbólica. Por um lado, devia-se ao fato de que Fidel reivindicava uma filiação com el libertador Simón Bolívar (1783-1830), herói da independência da Espanha que já sonhava em realizar a união de todos os países da América hispânica. Por outro lado, a identificação dos venezuelanos com o jovem Fidel Castro se devia a um passado similar: eles também tinham derrubado uma ditadura, a de Marcos Pérez Jiménez, um ano antes, em 23 de janeiro de 1958. Ou seja, Fidel e a delegação cubana, onde figurava sua companheira informal Celia Sánchez, foram recebidos como heróis por uma multidão de homens e mulheres, para os quais el comandante fez discursos de tom profético. Mesmo assim, Fidel Castro sofreu um revés. Tendo ido buscar a ajuda financeira do presidente venezuelano Rómulo Betancourt (1908-81), eleito pela segunda vez, deparou com uma negativa. Data dessa época o desentendimento entre os dois dirigentes. Depois do encontro, Betancourt teria dito a seguinte frase: “Não deparei com um homem; mas com um ciclone tropical”.

A viagem a Caracas chegou ao fim com um acontecimento de outra natureza, porém bastante significativo. Logo antes de embarcar no bimotor que levaria a delegação de volta a Havana, o chefe da escolta de Fidel, el barbudo Paco Cabrera, voltou para buscar uma arma que tinha esquecido. Foi então atingido por uma hélice, que partiu seu crânio e o jogou no chão em meio a um mar de sangue. Segundo alguns relatos, Fidel teria reagido sem compaixão à morte do guarda-costas que o acompanhava desde a Sierra Maestra, dizendo apenas “Que imbecil!”. Não sei se é verdade, porém uma coisa é certa: Fidel não tem muito reconhecimento pelas pessoas que dedicam suas vidas a protegê-lo. A maneira como me jogou na prisão é prova disso, mas há outros exemplos, como o de um colega, o capitão Armín Pompa Álvarez, falecido no início dos anos 1980 devido a uma doença fulminante — nunca se soube de fato qual —, depois de ter sido picado por mosquitos durante uma pesca a tartarugas organizada por Fidel perto de uma ilha cheia delas. El comandante compareceu ao enterro, no cemitério Colón de Havana, onde mandou entregar uma coroa de flores. Chegou mesmo a apresentar suas condolências à viúva inconsolável e à família do guarda-costas, demonstrando tal aflição que sua emoção parecia real e sincera. No entanto, assim que a cerimônia chegou ao fim ele foi passar bons momentos com a amante, a intérprete Juanita Vera, na casa de encontros da Unidade 160. O fato de el jefe querer fazer amor logo depois do enterro de alguém que lhe fora tão próximo e devoto ia muito além do nosso entendimento. Alguns dos membros da escolta não esconderam seu mal-estar. Um dos guarda-costas desabafou: “Pois é, aqui, a última coisa que devemos fazer é morrer. Quando você morre, é esquecido no minuto seguinte…”. De fato, três semanas depois da morte do capitão Armín, ninguém mais falava dele…

Voltando aos planos de Fidel para a Venezuela, precisamos lembrar que no início dos anos 1960 el líder máximo, não tendo obtido o apoio do presidente Rómulo Betancourt, começou a apoiar ativamente a guerrilha por meio de conselhos, treinamento militar em Cuba e entrega de armas clandestinas à Venezuela. Quando Betancourt, um social-democrata convicto, percebeu e conseguiu provas disso, deu início a uma queda de braço que resultou, em 1962, na expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA), a instância que reúne todos os países das Américas do Norte e do Sul. Fidel se viu isolado na cena diplomática. Mas nem por isso abandonou sua ideia fixa venezuelana.

Em 1974, fez amizade com o novo presidente Carlos Andrés Pérez, apelidado de CAP, que restabeleceu as relações com Cuba, apesar de manter laços amigáveis com Washington. Vice- presidente da Internacional Socialista, o chefe de Estado se opunha, como Fidel Castro, à ditadura de Somoza na Nicarágua. Fidel adquiriu um aliado de peso na região, que o apoiava nas Nações Unidas e em outros fóruns internacionais. Graças ao “choque petroleiro” e à disparada dos preços do ouro negro, o primeiro mandato de Carlos Andrés Pérez (1974-9) correspondeu a uma era de inédita prosperidade. É a época em que o país é chamado de “Venezuela saudita”, e os venezuelanos de “damedos” (“dame dos”, ou “dê-me dois”), devido ao poder de compra superior ao de todos os países da região.

Aureolado pelo primeiro mandato, CAP voltou ao poder para um segundo mandato entre 1989 e 1993. Fui eu, aliás, enquanto batedor (ou “precursor”), o encarregado de organizar a segurança da viagem de Fidel a Caracas para a cerimônia de posse, em 1989. Depois de alguns dias no hotel Caracas Hilton, o ministro do Interior José Abrantes sugeriu a Fidel que toda a delegação cubana fosse transferida para um outro hotel, o Eurobuilding, um pouco fora do centro, mas que acabara de abrir as portas e que era mais calmo. Um clima de balbúrdia de fato reinava no Hilton, onde estavam quase todos os presidentes: o saguão de entrada transbordava de jornalistas que saltavam sobre Fidel, de conselheiros presidenciais ocupando as poltronas e oficiais de segurança vindos de todos os países. Além disso, os elevadores estavam sempre lotados. Resultado: a segurança cubana, sem controle sobre a situação, não conseguia trabalhar com tranquilidade.

Fidel aceitou a proposta de Abrantes e me enviou à frente para resolver as questões práticas da transferência. Quando cheguei lá, porém, fiquei preso no elevador que meu chefe deveria usar duas horas depois. Pensei imediatamente num plano B: Fidel utilizaria o elevador de carga, que ficava perto. Testei-o, verifiquei seu estado e funcionamento com os técnicos, passei-o no pente-fino para detectar a eventual presença de explosivos e, por fim, coloquei um guarda cubano à porta, outro no andar de Fidel e um terceiro no subsolo. Nesse meio-tempo, el comandante entrou no saguão do hotel sem que eu tivesse tempo de avisar Abrantes ou o chefe da escolta sobre todas essas mudanças. Dirigi-me então até Fidel e coloquei-me a sua frente para que parasse no meio do hall. Com um movimento do queixo e sem nenhuma palavra, indiquei que me seguisse até o elevador de carga, sob o olhar desaprovador de Abrantes, que se interpôs para me contradizer, mas sua atitude foi em vão. Com toda confiança, Fidel seguiu meus passos e, no elevador de carga, deparei com o olhar glacial de Abrantes e seu rosto desfigurado de contrariedade: não tolerou que minha opinião contasse mais que a sua. Quando chegamos ao andar, os dois homens se fecharam no quarto de Fidel e, cinco minutos depois, fui convocado e intimado a justificar minha iniciativa. Expliquei tudo de A a Z, e Fidel, sem dizer palavra, olhou para Abrantes sorrindo, como se dissesse: “Viu só, Sánchez é um profissional, ele sabe o que faz”. O ministro do Interior não me dirigiu a palavra até voltarmos para Havana…

Chegando em Cuba, Fidel nos anunciou, alguns dias depois, que voltaríamos à Venezuela, mas dessa vez para uma viagem ultrassecreta a La Orchila, uma ilha de quarenta quilômetros quadrados situada em águas cristalinas, 160 quilômetros ao norte da capital. O lugar, paradisíaco, abrigava uma base militar e uma base aeronaval; o acesso era exclusivamente reservado aos presidentes venezuelanos, a seus familiares, amigos, ao pessoal militar e a algumas autoridades do governo.

De maneira atípica, viajamos a bordo de um único avião, o Iliouchine-62 presidencial, sem a companhia dos dois aviões de reserva que geralmente seguiam o de Fidel, para substituí-lo em caso de pane, mas também para despistar e não permitir que soubessem em que aeronave ele viajava. Chegando ao local, distribuímos os tradicionais presentes a nossos colegas venezuelanos: garrafas de rum e caixas de charuto. Em troca, eles nos ofereceram bonés de beisebol com a marca “La Orchila”… que o assistente de Fidel, José Pepín Naranjo, confiscou quase que imediatamente, pois devíamos, segundo ordens de Fidel, manter segredo absoluto em torno daquela viagem.

Seja como for, pouco depois, Fidel expôs a CAP a ideia “genial” que tinha em mente fazia algum tempo. Sempre obcecado pelo petróleo venezuelano, el comandante explicou como seria vantajoso a todos se a Venezuela fornecesse petróleo a Cuba em vez de à Europa Ocidental, enquanto a União Soviética entregasse os hidrocarbonetos à Europa Ocidental em vez de a Cuba. Assim, sem que nenhum fornecedor — nem a Venezuela nem a URSS — fosse lesado, os custos do transporte seriam reduzidos para todos os interessados, e a segurança energética de cada um deles seria mantida. Engenhosa e audaciosa, a ideia pareceu irrealista aos olhos de Carlos Andrés Pérez, que a dispensou. Mas o simples fato de ter germinado na mente de Fidel Castro confirma tanto seu vivo interesse pelo petróleo venezuelano quanto seu senso de antecipação, num momento em que, alguns meses antes da queda do muro, a URSS de Gorbatchóv se tornaria um fornecedor cada vez mais incerto. Também mostra a dimensão planetária de suas reflexões, como se ele se sentisse sem espaço na ilha caribenha.

No fim, ele precisou esperar mais dez anos, e a posse de Hugo Chávez (1954-2013), em 1999, para pôr as mãos numa parte do ouro negro venezuelano. Fidel realizou, com esse novo sócio, uma das alianças estratégicas mais sensacionais da história do castrismo: o eixo Caracas-Havana. Desde 2006, a Venezuela fornece a Cuba petróleo a um preço amigo, numa razão de 100 mil a 150 mil barris por dia, em troca do envio de médicos cubanos para as favelas, além de “conselheiros”. Mais de quarenta anos depois da primeira viagem a Caracas, Fidel obteve, com seu discípulo Hugo Chávez, a ajuda que fora buscar sem sucesso com Rómulo Betancourt. Mas isso não foi tudo. Juntos, Castro e Chávez, graças ao gênio político de um e ao petróleo do outro, conseguiram relançar o internacionalismo — projeto do século XIX, inspirado em Simón Bolívar e no cubano José Martí (1853-95), grande teórico do anti-imperialismo que pregava a solidariedade internacional —, criando a Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), organização esquerdista que reunia essencialmente Bolívia, Equador e Nicarágua. Podemos com isso ter a medida de um dos traços mais marcantes do castrismo: a perseverança obsessiva de seu chefe.

Fidel Castro pode ter esperado quarenta anos para pôr a Venezuela no bolso, mas acabou conseguindo.

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