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Não há solução democrática fora da política

Rodando com sua lógica própria o velho sistema político não vai se auto-reformar

Diogo Mainardi concluiu ontem (12/04/2017), no final de sua reunião de pauta com os Antagonistas, que “a classe política está morta”. O problema é que ela está podre, sim, mas – infelizmente – ainda não morreu. E se tivesse morrido estaríamos em uma situação pior do que estamos.

Por que? Ora, porque não há substitutos, suficientemente independentes dos atuais atores políticos e de seus partidos (sejam organizações criminosas, como o PT, sejam empresas bandidas de coligações, como quase todos os demais) para ocupar o lugar dos atuais corruptos.

O que vai ocorrer não é bem uma substituição de velhos agentes por novos. Estamos numa transição e uma transição nunca é simples substituição. O velho está morrendo, mas ainda não deitou na cova e o novo está nascendo, mas não começou a andar. Sabem o nome disso? Crise! Estamos numa crise de longa duração. E vamos ter que conviver com ela na próxima década (numa expectativa otimista).

O judiciário não pode ocupar o lugar dos políticos (e se isso acontecesse, seria ruim para a democracia – além do quê ainda não começaram a aparecer, mas vão, juízes e promotores implicados nos malfeitos).

Os militares não podem ocupar o lugar dos políticos (e se isso acontecesse, seria a ditadura – além do quê muitos generais, brigadeiros e almirantes ainda vão aparecer mancomunados em crimes de licitações fraudulentas).

Se fechássemos o caixão e enterrássemos o defunto, quem assumiria? Jovens procuradores animados de um espírito meio robespierriano? Isso seria uma tragédia.

Sim, o velho sistema político apodreceu, mas não há solução democrática fora da política.

Não clamem por um salvador da pátria, porque ele pode acabar aparecendo: já pensaram ter de escolher entre Marina, Ciro e Bolsonaro (dando de barato que Lula será condenado duas vezes até lá e ficará inelegível)?

Ah! Vamos então de Dória. Não, meu amigos, não é assim tão simples, a não ser para mentes autoritárias (e sem muita intimidade com a inteligência): quantos Dórias estão disponíveis? Temos 27 deles para concorrer e ganhar os governos dos estados (e isso para não falar dos deputados estaduais)? Temos 513 deles para ocupar as vagas da Câmara dos Deputados? Temos 54 deles para preencher as cadeiras vacantes do Senado Federal?

Ou vocês acham que basta eleger um presidente? Esse presidente governará com quem, como aprovará as leis necessárias?

Se não vamos abolir o sistema representativo de um golpe ou de uma vez em 2018, é bom pensar com calma.

Em primeiro lugar, nada de salvadores, nada de líderes extraordinários, sejam dirigentes geniais dos povos (condutores de rebanhos), sejam administradores competentes.

Não precisamos para nada de condutores de rebanhos, líderes capazes de mesmerizar as massas. Não precisamos de gente como Peron, Fidel, Chávez ou Lula. Aliás, já passou da hora de aposentar quem cumpre tal papel manipulador, populista ou neopopulista. E não precisamos de mitos, nem na versão Marina, nem na versão Bolsonaro.

Precisamos de bons administradores, sim, mas essa não é a função precípua dos atores políticos, que são netweavers da rede de conversações que tece o espaço público, propriamente político, não gestores de empresas travestidos de dirigentes estatais. Os ingleses tinham a mania de distinguir governo como política e governo como administração. As duas coisas são necessárias e, às vezes, esses papeis podem ser desempenhados pela mesma pessoa. Tomara que Dória faça um bom governo na cidade de São Paulo, como política e como administração. Mas ele mal começou: e não é mil e sim apenas um.

Em segundo lugar, o sistema político apodreceu mesmo, mas não porque está cheio de pessoas podres. É o modo como se organiza e funciona o sistema político que é apodrecedor. Engana-se quem imagina que o sistema político pode ser renovado pela entrada de novas pessoas, pouco a pouco. Porque não é o que está dentro da cabeça dos agentes que determina o comportamento coletivo. É o modo como está configurado o ambiente. Por melhor que seja uma pessoa, ela se comportará escorrendo pelos creodos, os sulcos no campo que já estão cavados. Se a configuração do ambiente não mudar, a entrada paulatina de boas pessoas não vai melhorar significativamente a política.

Isso significa que está na ordem do dia uma reforma política (na verdade, seria necessária uma reforma da política, mas esta não pode ser feita no curto, e talvez nem no médio prazos).

A coisa mais importante numa reforma política, viável no curto prazo, é o que não fazer: não aprovar nada que leve à partidocracia, como o voto em lista pré-ordenada, financiamento exclusivamente estatal de campanha e fidelidade partidária.

As propostas mais razoáveis já são – em sua maioria – conhecidas: voto distrital, parlamentarismo, fim da voto obrigatório, sistema de apuração eleitoral fiscalizável (com comprovante impresso do voto em urna eletrônica), cláusula de barreira, fim dos programas eleitorais gravados (só ao vivo), limites de gastos eleitorais, fim dos suplentes de senadores, fim do oligopólio partidário (com a aceitação de candidaturas avulsas), fim da reeleição para prefeitos, governadores e presidente, limite ao número de reeleições para parlamentares, revocabilidade, novos mecanismos interativos que viabilizem a accountability etc.

Ainda se poderia acrescentar, às propostas acima, várias outras. Por exemplo, algumas das que foram apresentadas pelo Manifesto à Nação dos juristas Modesto Carvalhosa, Flávio Bierrenbach e José Carlos Dias (escoimado o “referendismo” ou “plebiscitarismo”) como: eliminação do foro privilegiado, eliminação da desproporção de deputados por estados da Federação, proibição para um parlamentar de exercer cargos na administração pública durante o seu mandato, eliminação dos cargos de confiança na administração pública, devendo todos os cargos ser ocupados por servidores concursados, eliminação do Fundo Partidário e do financiamento público das eleições: serão os partidos financiados unicamente por seus próprios filiados, eliminação das emendas parlamentares, que tornam os congressistas sócios do orçamento, e não seus fiscais, fim das coligações para quaisquer eleições, eliminação da estabilidade no exercício de cargo público, com exceção do Poder Judiciário, do Ministério Público e das Forças Armadas, devendo os servidores públicos se submeter às mesmas regras do contrato trabalhista do setor privado, eliminação dos privilégios por cargo ou função (mordomias, super salários, auxílios, benefícios, etc.), devendo o valor efetivamente recebido pelo servidor estar dentro do teto previsto na Constituição etc.

A questão central é: quem fará tal reforma política? Os mesmos componentes do sistema político que apodreceu? Eis o impasse: adianta convocar uma Constituinte para fazer a reforma política na vigência das regras antigas (quer dizer, sem ter sido antes aprovada a reforma política)? As soluções propostas pelos juristas que assinaram o tal Manifesto à Nação não são exequíveis e seriam mesmo prejudiciais ao processo democrático. Eles incluíram muitos referendos e plebiscitos, que são mecanismos altamente manipuláveis e vulneráveis ao controle, além de poderem ser instrumentalizados para bypassar as instituições. É complicado. Democracias plebiscitárias caminham rapidamente para protoditaduras ou ditaduras.

Ocorre que há um impasse no sistema representativo que é muito mais profundo. Uma reforma política em termos usuais, baseada em propostas como as apresentadas acima, não é suficiente para reconfigurar o ambiente. Como reconfigurar o ambiente seria uma reforma da política, impossível de ser feita de chofre ou por um golpe brusco, a única saída parece ser introduzir progressivamente novos mecanismos interativos que encaminhem, viabilizem e potencializem a pressão da sociedade sobre o sistema político. Rodando com sua lógica própria o velho sistema político não vai se auto-reformar. Logo, trata-se de encontrar formas de viabilizar a influência da sociedade, criando uma corrente renovadora, um vento fresco que sopre de fora para dentro.

Há aqui, todavia, um perigo: nada de mecanismos participativos, tipo conselhos e outras urdiduras assembleístas vulneráveis à manipulação e ao controle. Os mecanismos cogitados aqui devem ser interativos, não participativos. Os cidadãos devem podem interagir sempre nos seus próprios termos, quando quiserem, de onde estiverem e não apenas respondendo a consultas, mas também solicitando esclarecimentos e fazendo propostas.

Tudo isso, todavia, também não poderá ser introduzido da noite para o dia. Enquanto novos mecanismos-ponte entre a cidadania política e o sistema político não existem, a voz das ruas é imprescindível (na verdade, ela sempre será imprescindível, inclusive para forçar a adoção de novos mecanismos mais interativos e mesmo depois de eles terem sido instalados).

Só as manifestações sociais – nas ruas e em todo lugar – poderão garantir que a transição em curso seja democratizante. Mas esse processo é essencialmente político, depende da interação entre os agentes políticos que estão dentro do sistema e os novos atores políticos, sobretudo coletivos, que vão emergindo fora do sistema.

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