Quando a preocupação principal dos eleitores é a segurança, a democracia já está correndo algum perigo. Se mais de 30% das pessoas estão dispostas a aceitar menos-liberdade em troca de mais-ordem é sinal de que um processo de autocratização já avançou na base da sociedade com energia suficiente para enfrear a continuidade do processo de democratização. Isso talvez não seja ainda forte o bastante para alterar a natureza do regime, mas se tal disposição perdurar por alguns anos, já será capaz de desestabilizá-lo no médio prazo. Estamos no limiar dessa zona cinzenta para a democracia no Brasil.
Convém definir melhor o que chamo de zona cinzenta no caso da democracia. É aquele estágio em que o regime continua sendo formalmente democrático, com a prevalência do Estado de direito, mas o processo de democratização do Estado e da sociedade fica como que paralisado ou congelado. Entrar numa zona cinzenta não significa, portanto, deixar de ser um regime democrático. Não, pelo menos, no curto prazo.
Como já assinalei em outro artigo, não há um modelo de democracia que possa servir de referência para se dizer o que é e o que não é democracia. Toda vez que o processo de democratização consegue, mesmo intermitentemente, prosseguir, dizemos que estamos numa democracia, devendo-se entender por isso o seguinte: estamos conseguindo tornar modos de regulação de conflitos menos autocráticos e padrões de organização menos hierárquicos, nada garantindo, porém, que vamos definitivamente para o céu: sempre pode haver retrocesso quando – no caso da democracia dos modernos (a democracia representativa realmente existente nos países que a adotam) – restringe-se a liberdade, viola-se a publicidade, frauda-se a eletividade, falsifica-se a rotatividade, descumpre-se a legalidade e degenera-se a institucionalidade. Quando algumas dessas coisas são feitas a partir de certo grau que começa a inviabilizar a continuidade do processo de democratização, dizemos que não estamos mais numa democracia (ou seja, que a democracia que temos não está mais conformando-se como um ambiente favorável a caminharmos em direção à democracia que queremos). Mas os limites não são fixos. E no Brasil não há indicações, no curto prazo, de que a continuidade do processo de democratização ficará inviabilizada.
Mas o fato de boa parte do eleitorado estar preocupada com segurança (por justificados motivos) ou mais-ordem (por analfabetismo democrático) não é um indicador desprezível. Há razões fundadas para a preocupação dos democratas. Na pesquisa do Ibope divulgada hoje (28/06/2018) a intenção de voto espontânea indica que só Bolsonaro tem voto (11%). Tirando Lula (que não é candidato) os demais estão todos na margem de erro: Marina e Ciro (com 2%), Dias, Alckmin e Amoedo (com 1%). E sabemos que dois em cada três eleitores de Bolsonaro – como mostrou a pesquisa do Ipespe contratada pela XP Investimentos – são favoráveis à intervenção militar, quer dizer, são pessoas que não valorizam a democracia.
Sobre o tema, um amigo comentou ontem no Facebook:
“É um problema isso. Mas talvez se a gente morasse na favela a gente entenderia melhor”.
Respondi:
“Não sei não. Já morei sete anos numa favela. Não é o que se diz, olhando do asfalto…”
Ele retrucou:
“Quando você morava você tinha dimensão do que afetava a democracia ou somente queria mais segurança?”
Esclareci então:
“Quando morava [numa favela, entre 1977 e 1984] jamais me preocupei com segurança. Ou melhor, todo dia me preocupei com segurança. Mas a ameaça era o Estado”.
Comento agora. Este é realmente o maior problema de segurança do ponto de vista da democracia: quando o Estado coloca seu aparato para perseguir os cidadãos. Por isso passei a defender com unhas e dentes o chamado Estado de direito. A turma hoje quer mais Estado para se proteger. Eu queria menos Estado para me proteger (porque o regime ditatorial era o grande perseguidor). Conclusão: a democracia é sempre o mais importante.
Os bandidos de lá – e eu conheci vários, como é óbvio depois de tanto tempo cruzando com eles – jamais me perseguiram. O Estado fora da lei era um perigo muito maior do que os meliantes, os chamados foras da lei.
Nada disso, evidentemente, vale para a situação atual. O crime nas favelas e periferias não era organizado (hierarquicamente) e não recrutava moradores como soldados (ou militantes, hehe). Tudo aquilo era metabolizado pela, como se diz hoje, “comunidade”. E havia, de fato, verdadeiras comunidades naquele meio (e eu pertencia a algumas delas: por isso me sentia, em parte e nessa medida, seguro ou protegido).
Faço tais referências à minha própria experiência para dizer que os níveis do capital social são a chave da questão. A hierarquização dilapidou localmente o capital social, esgarçou as comunidades e cortou os atalhos entre os clusters. O cara ficou sozinho (com sua família) e sozinho ninguém pode estar seguro.
Em uma frase: ninguém pode ter a segurança da Noruega ou da Nova Zelândia se vive na Somália ou na Nigéria. Mas o que garante a segurança nos dois primeiros países citados acima não é a prontidão ou o rigor da repressão estatal e sim a própria morfologia e dinâmica das sociedades norueguesa ou neozelandeza: é a configuração do ambiente que desestimula comportamentos delinquentes e isso tem a ver mais com os índices de capital social do que com o grau de invasão estatal na vida privada.
Aí vêm os autocratas bolsonaristas dizer que na época dos militares no Brasil podia-se andar a qualquer hora do dia e da noite em segurança. Ora, claro! Isso é a mesma coisa que andar hoje na Arábia Saudita ou na Coréia do Norte, onde a segurança é estabelecia pelos senhores do Estado. Mas esta não é a segurança da democracia, a segurança da pessoa livre numa sociedade aberta e sim a segurança dos rebanhos que são protegidos pelos seus donos (desde que não ousem criticar a sua autoridade).
Estamos, os democratas, correndo o grave risco de ficar imprensados entre dois projetos autocratizantes, ambos estatistas: o neopopulismo petista ou o nacionalismo retrógrado cirista x o populismo-autoritário bolsonarista. Se isso acontecer, quer dizer, se tal cenário de horror se configurar em 2018, avançaremos progressivamente para áreas mais escuras da zona cinzenta. Não é um evento banal. É como chegar num novo planeta hostil.
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