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O ambiente social é claramente desfavorável à democracia

O que aconteceu que, de repente, legiões de pessoas (aliás, a maioria dos brasileiros, segundo pesquisa do Latinobarômetro) perguntam para que serve afinal a democracia? Essas pessoas sempre existiram, é claro, mas não participavam do debate público. Ingressaram nele – em parte via mídias sociais – a partir da movimentação pelo impeachment. Estavam querendo tirar Dilma e o PT do governo, mas não por motivos democráticos. Alguns queriam (e ainda querem) limpar o mundo, separando os bons dos maus. Outros ficariam felizes se fôssemos liderados por um autocrata do bem, capaz de por ordem na casa. Não é por outra razão que oportunistas eleitoreiros, como Bolsonaro, adquiram significativa popularidade. E que aumentou o número de seguidores da seita do autocrata religioso (e filósofo de baixo calão) Olavo de Carvalho. A questão é que nós, que somos atores políticos ou analistas políticos democráticos, não imaginávamos que esse pessoal existia. E politicamente eles não existiam mesmo, porque não eram agentes políticos. Mas agora são.

É improvável que Bolsonaro (mesmo apoiado por olavistas e por legiões de moralistas instrumentalizados por jacobinos, que também não apostam na democracia) consiga se eleger presidente da República. Mas o problema é a perturbação no campo social que eles já estão criando. E o mais curioso é que é o mesmo tipo de perturbação criada pela militância petista e de esquerda em geral. Ambos apostam num combate do bem contra o mal. São agentes da guerra-fria. Ora, o clima de guerra (seja qual for o tipo de guerra: quente, fria ou praticada como política pervertida como arte da guerra ou continuação da guerra por outros meios) reconfigura os ambientes sociais tornando-os avessos ao processo de democratização (que é o que devemos chamar propriamente de democracia). E reduz os nossos graus de liberdade, na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos (independentemente dos seus agentes terem ou não conseguido se instalar no Estado).

O que está acontecendo neste momento no Brasil é muito mais grave do que parece: é uma regressão importante em termos democráticos. Uma virtual disputa de segundo turno Lula x Bolsonaro, que é improvável, mas não impossível (e Lula venceria esse embate, com o pé nas costas), enterraria de vez as nossas esperanças de caminharmos em direção às novas democracias que queremos, mais conformes à emergente sociedade-em-rede. Mas mesmo que tal cenário não se configure, os termos da disputa, que já estão dados, são prejudiciais à democracia.

Os que se declaram de esquerda ou de direita não se dão muito bem com a democracia. Quando a direita não existia como força política ponderável, estávamos, por incrível que pareça, numa situação melhor do que hoje. Antes, tudo não passava de um embate de ideias de muitos contra alguns poucos. Por que? Ora, porque não havia propriamente uma guerra entre pessoas comuns, no piso da sociedade. Agora há. E não entre propostas, programas ou plataformas ideais e sim entre dois comportamentos políticos que são muito semelhantes do ponto de vista do modo de regulação de conflitos: ambos são autocráticos.

Como foi a esquerda que inventou a esquerda e, no mesmo ato, a direita, a direita (vamos dizer, social, mas seria melhor dizer, antissocial) brasileira adquiriu corpo, virando uma força política (embora minoritária), na segunda campanha presidencial de Dilma Rousseff. Alguns de nós percebemos na hora, na segunda metade do ano de 2014, que estava havendo uma mudança profunda, subterrânea, nos fluxos interativos da convivência social. Um dos indicadores mais perceptíveis dessa alteração foi a eclosão de inimizades entre amigos de longa data, familiares, colegas de estudo, de trabalho e de lazer – levando a uma dilapidação do nosso estoque de capital social. Outro indicador importante, relacionado ao primeiro, foi a diminuição da inovação: os inovadores, em todas as áreas, sobretudo os inovadores sociais, como que desapareceram. No seu lugar apareceram torcedores, sempre conservadores, sejam ditos de esquerda ou de direita. A partir do segundo semestre de 2014 viramos um país de torcedores que se digladiam. E foi o PT que criou isso.

Percebendo essa vibe, que provocou uma clivagem de cima a baixo na sociedade brasileira, ideólogos autocráticos de direita, que falavam para minorias insignificantes, resolveram conquistar seguidores aproveitando-se da insatisfação popular com o governo do PT e ingressando nas grandes manifestações de 2015 e início de 2016 pelo impeachment com suas próprias bandeiras. Foi aí que apareceram maluquices de seita, como cartazes “Olavo tem razão”, intervenção militar, nacionalismo militarista, volta da monarquia e bolsomito. Tudo isso, se existia, era vestigial. Mas vampirizando energias dos grandes protestos (os maiores de toda nossa história), essas diretrizes anti-democráticas ganharam a significativa base social que nunca tiveram.

Projetos políticos se conformaram a partir daí, pegando uma carona na sede de justiça de pessoas comuns inconformadas com a corrupção que, até antes do impeachment, não se importavam muito com a política, a maioria das quais composta por analfabetos democráticos e sem qualquer vivência prática do debate na esfera pública. E, para não perder base social e crescer ainda mais, algumas novas lideranças surgidas na oposição popular ao PT, resolveram instrumentalizar os sentimentos de vingança dessas pessoas, organizando verdadeiras cruzadas para limpar a política de todos os corruptos. Alimentou-se a impressão de que os corruptos são todos os políticos e que não há salvação – nem qualquer transição possível – para um sistema que apodreceu. Isso concorreu para confundir a corrupção com motivos estratégicos de poder, praticada pelo PT, com a corrupção endêmica que já era comum nos nossos meios políticos.

A Lava Jato contribuiu para tornar visível a extensão da corrupção endêmica na política tradicional e, desgraçadamente, também para confundir esse tipo de corrupção com a corrupção sistêmica que foi praticada pelo PT como método de governo, para tomar o poder em doses homeopáticas e bolivarianizar o nosso regime político. Com isso diluiu a culpa da verdadeira organização política criminosa, dirigida por Lula, Dirceu e seus sequazes, dentro da corrupção oceânica do PMDB, do PP, do PSDB e de outros velhos partidos tradicionais. De repente, Lula ficou igual (ou até menos culpado) do que Sergio Cabral. Dirceu ficou igualado a Cunha. A prova disso é que – a despeito do festival de denuncias, delações, investigações, condenações e prisões da Lava Jato – do núcleo duro da organização política criminosa só há um preso em regime fechado: João Vaccari.

Tanto a esquerda quanto a direita investem pesadamente nessa confusão: a primeira para se salvar, fugindo por dentro, escorregando pelos desvãos da carcaça podre do velho sistema político e a segunda para não perder apoio da massa dos moralistas que votarão em 2018 e que repetem tolamente que todos são farinha do mesmo saco, que todos os que erraram devem ser punidos, que não se pode ter corrupto de estimação, que a Lava Jato não pode ter lado ou tomar partido. Mal sabendo que esses lemas foram criados pelo próprio PT para uso dos trouxas.

Os democratas ficamos imprensados entre essas duas correntes autocráticas. Por mais que repitamos que as coisas não são assim, poucos são os que nos ouvem, não propriamente porque não queiram e sim porque estão entendendo quase nada mesmo da conjuntura.

Com a armação Janot-Fachin, apoiada por grandes meios de comunicação, pela maioria dos jornalistas e por oito em cada dez analistas políticos conhecidos, o astral piorou ainda mais. Tanto a esquerda, quanto boa parte da chamada direita (a nova direita que emergiu nos dois últimos anos), engrossaram o Fora Temer, como se o atual presidente constitucional (que é apenas um representante do velho sistema político e por isso foi escolhido duas vezes para vice-presidente pelo PT) fosse o chefe da mega-organização criminosa que assaltou o Estado brasileiro na última década e o maior bandidão da galáxia. Enquanto isso, Lula continua solto, Dirceu não volta para a cadeia e 90% dos dirigentes da organização política criminosa sequer são investigados.

Ainda que o povo não tenha aderido ao Fora Temer do PT, nem ao Fora Temer industriado pela PGR, por parte do STF e pelo “partido dos jornalistas e analistas”, o grau de confusão aumentou. E o ambiente social ficou ainda mais desfavorável à democracia.

Não se vê nada, no horizonte próximo, que possa alterar esse quadro. A não ser a volta das pessoas às ruas, quando (e se) descobrirem que estão sendo barbaramente manipuladas pela esquerda e pela direita.

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