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O conceito de desliberdade

Fale-se tanto de desigualdade que talvez seja bom cunhar o neologismo ‘desliberdade’. Claro que não se espera que este novo construct vá colar. Mas serve para chamar a atenção para o que se expõe a seguir:

Diz-se que o problema dos que não são socialistas é que eles fecham os olhos para as desigualdades (tomadas, sempre, como desigualdades sócio-econômicas). Os que dizem isso perguntam como podemos não nos escandalizar com o fato de que apenas oito pessoas possuem a mesma renda que metade da população mundial. Burocratas de organizações como a Oxfam fazem carreira urdindo levantamentos para mostrar que o 1% mais rico do planeta detém mais riqueza do que os 50% mais pobres. Nos seus rankings dificilmente aparece uma comparação entre desigualdade e democracia. Não é por acaso.

Porque o problema não é combater a desigualdade (o que é correto) e sim colocar a igualdade sócio-econômica como pré-condição para a igualdade política (quer dizer, para a liberdade).

Quem pensa assim pensa em termos de desliberdade, ou seja, de desigualdade política. Imagina que uma sociedade deveria chegar a patamares mínimos de igualdade sócio-econômica para – só então – poder experimentar a liberdade, o que é uma contradição em termos ao admitir um caminho autocrático para a democracia. Quem levaria a sociedade para uma condição de mais igualdade a partir da qual ela poderia experimentar a democracia? Um déspota esclarecido? O sultão de Brunei? O líder do partido revolucionário transformado em ditador (como Fidel Castro)?

A ideia de igualdade como ideal supremo (e como pré-condição para a liberdade); ou a ideia de que não pode haver (verdadeira) liberdade sem (ou até que se alcance a perfeita) igualdade – levam, ambas, inexoravelmente à autocracia, não à democracia. Sociedades menos desigualitárias não são necessariamente sociedades mais livres. Não são mais democráticas, nem melhores para se viver. Do contrário a Etiópia seria melhor do que a Nova Zelândia (que é muito mais desigual): e o pessoal da Oxfam não quer morar na Etiópia, certo?

Isso significa que não devemos nos esforçar para ter mais igualdade? Não! Quanto mais igualdade melhor, desde que essa igualdade seja alcançada com liberdade; ou seja, desde que mais igualdade sócio-econômica seja alcançada com menos desliberdade (falta de igualdade política).

O que não pode é haver restrição da liberdade no presente em nome do combate à desigualdade ou como condição para que se alcance liberdade no futuro. Mas democracia não tem nada a ver com isso e sim com não ter um senhor, não ser súdito de ninguém (por melhor que seja, por mais ideias generosas que proclame, inclusive a ideia de se chegar algum dia a uma democracia plena e perfeita).

Sim, é disso que trata a democracia, de não ter um senhor: nem hoje, nem amanhã. Não vale ter um senhor hoje para não ter um senhor amanhã. Não vale ter um bom senhor hoje que nos leve para um amanhã radiante. Esse é o problema da esquerda, que Bobbio (1994) – no seu opúsculo Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política – infelizmente, não entendeu. Assim como não entendeu que não se pode fazer tal distinção apenas em termos políticos, sem uma boa dose de doping ideológico.

A ideia de que a igualdade sócio-econômica é pré-condição para a liberdade, juntamente com a ideia de que a luta de classes é o motor da história, definem o pensamento da esquerda. Um pensamento que é autocrático porque não aceita que a democracia seja meio e fim, ou seja, que só se pode alcançar democracia através da democracia e que isso jamais poderá ser feito por meio da guerra ou da política pervertida como continuação da guerra por outros meios (posto que isto já é a autocracia).

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