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O debate sobre o risco democrático

Por que Carlos Pereira e Fernando Schüler estão errados

Carlos Pereira e Fernando Schüler estão empenhados em uma verdadeira cruzada para dizer que não paira qualquer ameaça sobre a nossa democracia. Quase toda semana publicam um artigo sobre isso, alguns inclusive não dando muito crédito aos relatórios dos mais respeitados centros de pesquisa sobre a democracia no mundo, como a Freedom House, a The Economist Intelligence Unit e o V-Dem da Universidade de Gotemburgo.

De certo modo, eles estão pondo em dúvida as conclusões de uma plêiade de estudiosos que, na última década, vêm alertando para os problemas e impasses da transição para a democracia (e. g., Diamond, Fukuyama, Horowitz, Plattner: 2013) (1), da recessão democrática (novamente Diamond: 2015) (2), da desconexão (3) e desconsolidação (4) democráticas (Mounk e Foa: 2016-2017), dos novos processos pelos quais as democracias morrem (Levitsky e Ziblat: 2018) (5) ou chegam ao fim (Runciman: 2018) (6).

A maior parte dos pesquisadores de todos os institutos que monitoram a democracia no mundo está avisando que o Brasil, sob Bolsonaro, corre o risco de entrar em processo de autocratização, enquadrando-se na categoria dos populismos-autoritários que florescem no século 21.

Claro que continuamos sendo uma democracia. Um regime pode ser democrático mesmo que, eventualmente, seu chefe de governo – como é o caso – não seja um democrata (enquanto ele permanecer aceitando as regras da democracia, por qualquer motivo, inclusive por falta de força para violá-las).

Estados Unidos (com Trump), Israel (com Bibi), Polônia (de Kaczynski) e Índia (com Modi), são exemplos, mas o Brasil (com Bolsonaro) também é um exemplo. Hungria (com Orbán) está se aproximando perigosamente da fronteira. Turquia (com Erdogan) cruzou a fronteira e virou uma ditadura, assim como a Venezuela (de Maduro) e a Nicarágua (de Ortega).

Ninguém discute que existem algumas dezenas de regimes democráticos liberais cujos chefes de governo são democratas convictos. Numa lista de 30 países, por exemplo – de democracias liberais, que valem realmente a pena – não costumam faltar (em ordem alfabética): Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Coréia do Sul, Costa Rica, Dinamarca, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Islândia, Iceland, Ireland, Itália, Japão, Lituânia, Luxemburgo, Nova Zelândia, Noruega, Portugal, Reino Unido, República Checa, Suécia, Suíça, Tunísia, Uruguai. O que se discute aqui é: os regimes democráticos cujos chefes de governo não são democratas, como se comportarão ao longo do tempo? Até quando um regime pode manter seus indicadores democráticos – de direitos políticos e liberdades civis – num nível que permita classificá-los como democracias liberais ou democracias eleitorais, quando o governo (ou o chefe de governo) não é democrata e ataca a democracia? Eis a questão.

Mas Pereira e Schüler – como mostram dois de seus recentes artigos, no Estadão e na Folha, reproduzidos abaixo – insistem em dizer que tudo o que vem acontecendo no Brasil prova o contrário do que aparenta: a força, a vitalidade, a resiliência da nossa democracia. Claudio Couto, em artigo de hoje (16/01/2020), publicado no Valor Econômico – também reproduzido abaixo – tenta fazer um contraponto.

É como se, para eles (os dois primeiros), as investidas de Bolsonaro contra a nossa democracia fossem feitas sob medida para provar que ela vai muito bem, obrigado. Ou seja, os ataques bolsonaristas apenas fortaleceriam, ao testa-los, as instituições e os mecanismos de freios e contrapesos que garantem a boa saúde do nosso regime. “Normal” – diz nosso amigo Fernando.

Tudo que estamos vendo há um ano, todas as propostas autoritárias, todo o aparelhamento do Estado, toda a ideologização na política externa, na educação, na cultura, nos direitos humanos e, sobretudo, toda a articulação policial-miliciana (e inclusive militar de baixo escalão) para construir um novo partido fascistoide – tudo isso não passaria de tentativas fadadas ao fracasso. As diretivas de Bolsonaro seriam apenas arroubos retóricos, sem consequências práticas, de um capitão ignorante que nossa democracia está colocando no seu devido lugar. E a crescente manipulação bannonista das mídias sociais (contra as redes sociais) causa apenas um zum-zum-zum de internet, ruídos, inofensivos ou quase, para o que verdadeiramente conta: as instituições, que não se deixariam levar pela algazarra.

Se não virou ditadura (autocracia fechada ou autocracia eleitoral), se o Congresso, o STF e a imprensa continuam funcionando – pensam eles – então tudo bem. Não! Se olharmos o filme em vez da foto, pode não estar tudo bem.

Essa posição está errada. Ela parte da ideia de que a democracia é um modelo institucional e não um processo (o processo de democratização) que deve continuar não apenas mantendo, mas tensionando as instituições (no sentido da sua democratização). A rigor, dizemos que um regime é democrático quando o metabolismo das suas instituições não cria obstáculos ou muito atrito para a continuidade do processo de democratização, não quando conserva em formol o modelo reinventado pelos modernos no século 17.

Do ponto de vista liberal, não é de montar escudos, recipientes para preservação, in vitro, que se trata e sim de configurar ambientes abertos favoráveis à floração, in sito. Ou, para usar outra metáfora, a democracia é como a bicicleta, que só se equilibra instavelmente, em movimento (e não tem marcha-à-ré).

Claro que há uma crise da democracia representativa ou da forma Estado-nação (e não é o caso aqui de mostrar por quê). Claro que, cedo ou tarde, surgirão novas formas de democracia. Claro que essas novas formas de democracia não surgirão por desenvolvimento natural das formas atuais de democracia. Claro que sem as formas atuais de democracia não é possível avançar para novas formas de democracia (e por isso é necessário defender a democracia que temos para chegar às democracias que queremos). Ou seja, a democracia que temos não é suficiente, mas é necessária para alcançarmos as democracias que queremos. Mas isso desde que as formas atuais, que temos, não impeçam essa caminhada (em direção às novas formas de democracia que queremos). A democracia é o tipo de regime que não pode ser mantido pela repetição de passado e sim pela antecipação, constante ou intermitente, de futuro. Basta ver as transformações por que passaram a primeira e a segunda democracias. A segunda Boulé em comparação com a primeira e as diversas formas de Ecclésia (e o percurso da Agora para a Pnyx) em Atenas. Da embrionária resistência parlamentar dos Bill of Rights ao poder despótico de Carlos I na Inglaterra até o sufrágio universal e o voto feminino. Nunca é a mesma coisa.

Bolsonaro não vai abolir nossa democracia, por certo. Mas pode, sim, drenar parte do seu conteúdo liberal, até que ela continue sendo uma democracia eleitoral menos liberal do que é hoje (e já não é muito) e não consiga mais andar para frente (pois ser liberal, em termos políticos, é isso: tomar a liberdade como sentido da política, o que só é possível fazer andando). E isso pode acontecer mesmo que, formalmente, as velhas instituições continuem funcionando. Pois a questão é que a democracia pode continuar funcionando, pelo menos durante um tempo, enquanto avançam ideias e práticas autoritárias na sociedade (como estão avançando). Até quando não se sabe. Mas é bom acompanhar os indicadores usuais de democracia, sobretudo os que compõem os índices de liberdades civis (e em especial os relacionáveis ao capital social).

O Brasil sob Bolsonaro dilapida aceleradamente capital social, o que vai retirando as bases sociais para a continuidade do processo de democratização. Mesmo que nossas instituições resistam por algum tempo, dificilmente sairemos desta em condição melhor do que entramos. No final, seja em 2022 ou 2026, terão sido produzidos mais inimizade e menos confiança. Ora, isso é risco, sim. É risco democrático. Os tanques não desfilarão pelas avenidas, mas o retrocesso em curso – no Brasil e em vários países neste dealbar do século 21 – não precisa mais de tanques.

Leiam os artigos citados. Em primeiro lugar o de Cláudio Couto.

As instituições estão funcionando?

Cláudio Gonçalves Couto, Valor Econômico (16/01/2020)

Corrosão democrática se dá não só entre os três poderes; importam fronteiras entre religião e Estado, civis e militares

Já há muitos anos que se debate no Brasil sobre a qualidade do funcionamento de nossas instituições: se funcionam bem, se funcionam mal, ou se simplesmente funcionam. Por óbvio que pareça, nunca é demais lembrar que “funcionar” significa cumprir alguma função. Portanto, a dúvida sobre a operação das instituições diz respeito a quão capazes são elas de resolver os problemas para os quais foram criadas.

A renitente insatisfação, expressa nos infindáveis clamores por alguma reforma política, provém de uma série de fatores: a percepção negativa de nossa estrutura institucional e de seus atores pela população, os seguidos escândalos de corrupção, o custo proibitivo (ou mesmo obsceno) de campanhas eleitorais, a baixa representatividade de um sistema em que eleitores sequer se lembram daqueles nos quais votaram, os muitos abusos cometidos por diferentes agentes do Estado, a ineficiência e a ineficácia do setor público, os privilégios de corporações estatais, a politização da Justiça, a insegurança jurídica Enfim, a lista é longa.

Se tivermos como métrica o bom funcionamento absoluto, nunca estaremos satisfeitos – nem aqui, nem alhures. Não à toa, em trabalho já antigo, o filósofo político e jurista, Norberto Bobbio, dizia que a democracia tinha diversas promessas não cumpridas – e segue tendo. Mas podemos nos perguntar se, mesmo não funcionando de forma ideal, as instituições democráticas dão conta minimamente dos problemas que devem resolver ou evitar – como a própria destruição da democracia.

A pergunta segue pertinente no Brasil atual diante dos temores do autoritarismo bolsonarista, por um lado, e da crença de que as estruturas organizacionais do Estado brasileiro, bem como os atores políticos, dão conta de conter os ímpetos mais perigosos do atual governo. Numa leitura mais otimista, como a de meu colega da FGV Ebape, Carlos Pereira, a democracia brasileira não ruiu e provavelmente não ruirá, pois atores judiciais e políticos têm operado eficazmente para conter ou mesmo reverter excessos do governo, corrigindo seus rumos. Congresso e Judiciário têm tomado decisões concretas nessa direção, impondo derrotas ao Executivo, moderando políticas e resguardando direitos.

Analistas mais pessimistas, como Celso Rocha de Barros, apontam a vocação autoritária do governo e suas medidas concretas de desmonte de instituições e perseguição a atores relevantes no âmbito de suas atribuições. Se considerarmos a forma como se destrói o aparato fiscalizador na área ambiental, o aparelhamento ideológico e a censura que ocorrem na cultura, a diluição da fronteira entre o Estado laico e certas denominações religiosas, ou mesmo o estímulo da retórica presidencial a ações violentas na cidade e no campo, temos razões para nos preocupar. Nessas frentes, o funcionamento dos freios e contrapesos da democracia tem sido menos efetivo e a lenta e gradual erosão do ambiente democrático ocorre, dia após dia.

Já que há uma metáfora física na ideia clássica dos freios e contrapesos, levemo-la um passo adiante. Mecanismos desse tipo são sujeitos a tensões, desgaste e têm limite para sua resistência. Assim como o não uso tende a deteriorar um mecanismo, o uso abusivo pode causar seu colapso. O estilo de governo do bolsonarismo exige uma operação severa dos dispositivos institucionais, que operam sob tensão constante, precisando limitar, corrigir ou frear as iniciativas governamentais incessantemente. Os freios de um veículo existem para pará-lo ou controlar sua condução, mas quem desce a serra com o pé no breque corre o risco de não conseguir frear justamente quando chegar à planície.

O governo mediante confronto contínuo força os demais atores a operar quase que todo o tempo na contenção, aumentando o desgaste e desperdiçando energias que poderiam ser mobilizadas de forma mais construtiva. O Congresso derruba vetos presidenciais como nunca, deixa caducar Medidas Provisórias de forma inaudita, reverte decretos presidenciais em montante inédito – sobretudo para um primeiro ano de governo. O Judiciário, em particular o STF, é mobilizado para por freio a seguidas iniciativas do governo que violam direitos ou desrespeitam preceitos legais. Se existe a máxima jornalística de que quando um cão morde um homem não há notícia, mas quando o inverso ocorre há, vivemos num país em que todos os dias a imprensa, atacada pelo presidente, noticia mordidas governamentais em cachorros e humanos.

E, nesse sentido, o tempo interessa, pois relações humanas são sensíveis a ele. O modus operandi belicoso do governo produz mais desgaste quanto mais o tempo passa. Resistir um ano é possível; será possível seguir mais três no mesmo ritmo? Qual o limite da paciência dos demais atores? Qual o limite da paciência do governo com as contenções que lhe são impostas? E, para além dos enfrentamentos com os outros poderes do Estado, há também aspectos preocupantes na partidarização das forças de segurança. Em matéria desta semana na Supercoluna de O Estado de S. Paulo, Marcelo Godoy aponta que o “Bolsonarismo invade os quartéis da PM”.

Ou seja, além da fronteira borrada entre governo e religião, o bolsonarismo também tem produzido o transbordamento da disputa política para dentro dos batalhões. Em evento de outubro, na PM paulista, familiares de sargentos que se formavam vaiaram o governador e receberam o presidente aos gritos de “mito”. Em discurso nesse mesmo evento, Bolsonaro associou a atuação da PM ao combate à esquerda, arrancando aplausos do público. Note-se que não se trata apenas das Forças Armadas, mas das polícias militares nos estados, mais capilarizadas, atuantes e acostumadas a lidar cotidianamente com a violência. Que instituições operam para conter esse processo em curso, de partidarização dos agentes armados do Estado? Há mecanismos institucionais capazes de fazer isso? Difícil de ver.

O tempo dirá se temos mais razão para sermos otimistas ou pessimistas. Neste momento, o que se vislumbra nesta seara são sinais bastante ambíguos.

Agora o de Carlos Pereira.

Ih… a democracia brasileira não ruiu…

Carlos Pereira, O Estado de S. Paulo (14/01/2020)

As chances de erosão da democracia brasileira são quase nulas

Nove em cada dez cientistas ou analistas políticos, no Brasil e no exterior, esperavam o pior da chegada à presidência de um populista de direita. Com bazófia autoritária e retórica belicosa e polarizada, Jair Bolsonaro colocaria em risco a sobrevivência da democracia.

Afirmavam que a derrocada da democracia não se daria por rupturas institucionais drásticas, golpes, tanques nas ruas, censura à imprensa, e o fechamento do Congresso. A ruina viria de forma insidiosa. Como se um miasma de espectro autoritário fosse se apoderando de maneira imperceptível de uma sociedade indefesa e fosse solapando as frágeis instituições democráticas, até ser tarde demais.

Até que ponto líderes populistas, sejam eles de direita ou de esquerda, ameaçam democracias?

Em pesquisa que acaba de ser publicada no periódico Perspective on Politics, com o título “Populism’s Threat to Democracy: Comparative Lessons for the United States”, o professor da Universidade do Texas, Kurt Weyland, demonstra que os riscos que a democracia liberal corre com a eleição de populistas têm sido superestimados.

Weyland argumenta que líderes populistas conseguem sufocar democracias apenas quando duas condições cruciais estão presentes.

A primeira seria a fraqueza institucional. Em alguns países, as instituições são razoavelmente abertas a mudanças, sem pontos de veto robustos e, portanto, incapazes de resistir a interferências de executivos poderosos, podendo assim ser facilmente desmanteladas ao longo de um ciclo eleitoral. Entretanto, mesmo em ambientes institucionais mais frágeis, iniciativas iliberais só teriam sucesso diante de uma segunda condição: a presença de crise econômica aguda que tenha sido rapidamente resolvida ou, seu oposto, bonança exagerada, que tenha o potencial de proporcionar apoio político massivo para o governo.

Como nenhuma dessas condições é encontrada no Brasil, um retrocesso antidemocrático, mesmo que soturno, como temem alguns, seria muito improvável.

Em primeiro lugar, o sistema de freios e contrapesos na Constituição permanece operando em pleno vapor. O Brasil, na realidade, possui um mosaico muito sofisticado de organizações de controle com graus variados de independência das escolhas do Executivo e com força de impor limites ao presidente – Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, Polícia Federal, Banco Central, agências reguladoras, dentre outras.

O STF, por exemplo, tem imprimido derrotas expressivas ao governo, envolvendo a extinção dos conselhos, a transferência da demarcação de terras indígenas da Funai, publicação de editais de licitação em jornais, compartilhamento irrestrito de dados coletados pela Receita Federal e pela UIF, manutenção do DPVAT e do Conanda etc. Além do mais, estando à frente de um governo minoritário e sem uma coalizão estável, Bolsonaro vem acumulando derrotas importantes no Congresso, tais como, reforma da previdência sem regime de capitalização, orçamento impositivo, decreto das armas, Coaf no Ministério da Economia, Funai no Ministério da Justiça, decreto sobre informações em sigilo, medidas provisórias que caducaram e perderam a validade etc.

Bolsonaro também não encontrou crises agudas, já que o pior já havia sido sanado no governo Temer. Nem teve grande e súbito ganho econômico. Consequentemente, seu apoio junto à população tem sido limitado. Também tem enfrentado forte resistência de uma sociedade civil vibrante e de uma imprensa vigilante para denunciar desvios ou excessos do governo.

Portanto, as chances de o populista brasileiro destruir a democracia são mínimas. Em vez disso, é possível que as reações da sociedade às transgressões de Bolsonaro às normas de civilidade democrática possam fortalecer ainda mais a democracia.

Mas, os descrentes na resiliência das instituições brasileiras não precisam se desesperar… Ainda há três anos de governo para que suas profecias alarmistas de erosão sorrateira da democracia possam se concretizar.

Por último o de Fernando Schüler.

Apesar dos alarmistas, um país normal

Fernando Schüler, Folha de S. Paulo (16/01/2020)

Boa parte das pessoas julga a qualidade da democracia a partir de seu humor político

As teorias sobre o “risco democrático” inundaram os jornais brasileiros desde a eleição de Bolsonaro. Perdi a conta de quantas vezes me perguntaram, em debates ou entrevistas, sobre o “grau de risco” em que se encontravam nossas instituições.

Uma variação desse discurso é a ideia de que vivemos uma fase de “anormalidade”. Em certos momentos, eram as derrotas do governo no Congresso; em outros, algum bate-boca na internet. Visto com a pátina do tempo, tudo isso parece incrivelmente tedioso. Difícil situar o Brasil em um ranking imaginário de normalidade democrática. É provável que nos situássemos bem à frente do Chile ou da Bolívia, e seguramente atrás do Uruguai. Confesso não ter o instrumento que mede essas coisas.

Boa parte das pessoas julga a qualidade da democracia simplesmente a partir de seu humor político. É o que mostrou o The Democracy Project, apresentado em 2018 pelo Penn Biden Center, pela Freedom House e pelo George W. Bush Institute. Perguntados se consideravam haver um “perigo real dos Estados Unidos se tornar um país autoritário”, 57% dos simpatizantes democratas respondiam que sim. Pela mesma margem, os simpatizantes republicanos diziam que não.

É interessante perceber como o mesmo sentimento de “risco democrático”, na direção oposta, funcionou à época do governo Dilma, quando já se formava a onda conservadora que daria na vitória de Bolsonaro, em 2018. A ideia difusa de que “estivemos prestes a nos tornar uma Venezuela”.

Tanto naquela época como agora, sempre achei isso uma imensa bobagem. Quem acha “ameaça democrática” em qualquer coisa termina por banalizar o próprio debate em torno da democracia e, por fim, por perder a capacidade de identificar ameaças reais quando elas de fato aparecerem.

O professor Carlos Pereira, em um artigo recente, fez referência à pesquisa de Kurt Weyland, da Universidade do Texas, mostrando que os “riscos que a democracia liberal corre com a eleição de populistas têm sido superestimados”. É o caso típico de Trump, nos Estados Unidos.

O risco não viria da simples disposição autoritária de quem governa, mas da combinação muito especial de fragilidade institucional em contextos de forte expansão econômica ou seu contrário, de crise aguda e instabilidade.

O professor Carlos observa que nenhuma dessas condições surgem no Brasil atual. Estamos em um processo de recuperação econômica, com inflação e juros baixos e perspectivas de um crescimento mais robusto no próximo biênio. Mas ainda metidos em uma brutal enrascada, com 4,5 milhões de pessoas tendo ultrapassado, para baixo, a linha da extrema pobreza desde a crise de 2014-2016, segundo o IBGE.

Coisas tristes que não aparecem no filme bacana da Petra Costa, mas gritam em silêncio na vida real do Brasil. Independentemente da narrativa política de quem quer que seja.

Nossa democracia, em 2019, reagiu bem aos impulsos de um presidente de gosto autoritário. O ano foi marcado pelo protagonismo do Congresso, pelo avanço de pautas associadas ao garantismo jurídico, como a lei contra abuso de autoridade e o juiz das garantias (com a chancela de Bolsonaro), e no qual o tema “direitos humanos e minorias” foi dominante nos projetos aprovados pela Câmara dos Deputados, conforme mostrou o site Poder360.

A importância dessas coisas aprendi de uma lição dada por Barack Obama: um país que não sabe onde errou no passado é tão estúpido quanto um país que não reconhece onde soube avançar ao longo do tempo. Sabedoria política demanda um delicado senso de proporção.

Obama se referia ao avanço da igualdade racial e de gênero nos Estados Unidos, em uma época de aguda tensão social, no seu segundo mandato.

No Brasil de hoje, vale o mesmo raciocínio. Soubemos fazer uma dura reforma da Previdência, mas há uma enorme agenda pela frente no Congresso. Nossos sistemas de freios e contrapesos fizeram valer sua força, mas a democracia supõe um permanente estado de alerta.

Tudo perfeitamente normal, a despeito dos alarmistas e teóricos do caos, que prosseguirão praticando, não tenho dúvidas, seu esporte preferido de atirar pela janela, todos os dias, a criança com a água do banho.


Notas e referências

(1) Cf. https://dagobah.com.br/repensando-o-paradigma-da-transicao/

(2) Cf. https://dagobah.com.br/facing-up-to-the-democratic-recession-o-artigo-historico-de-larry-diamond/ Cf. também uma sinopse (em português): https://dagobah.com.br/uma-sinopse-do-artigo-de-larry-diamond-enfrentando-a-recessao-democratica/

(3) Cf. https://dagobah.com.br/a-desconexao-democratica/

(4) Cf. https://dagobah.com.br/a-corrosao-das-normas-e-a-desconsolidacao-democratica/ e também: https://dagobah.com.br/os-sinais-de-desconsolidacao/

(5) Cf. https://dagobah.com.br/como-as-democracias-morrem-1-aliancas-fatidicas/

(6) Runciman, David (2018). Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia, 2018.


Post Scriptum

Em 20/01/2020, Celso Rocha de Barros, na Folha, vai na mesma linha do artigo acima, publicado quatro dias antes.

Não há nada de normal em nada disso

Celso Rocha de Barros, Folha de S. Paulo (20/01/2020)

As instituições estão rechaçando o autoritarismo, mas não é normal que sejam testadas todo dia

Na semana passada, dois artigos foram publicados colocando em questão a tese de que a democracia brasileira está ameaçada. Eu defendo que está, por isso vou discuti-los.

Os artigos são “Apesar dos alarmistas, um país normal”, de Fernando Schüler, publicado nesta Folha, e “Ih…A democracia brasileira não ruiu”, de Carlos Pereira, publicado no Estadão.

O artigo de Pereira se baseia em um estudo do cientista político Kurt Weyland que concluiu que populistas só ameaçam a democracia quando as instituições são fracas e quando seus governos transcorrem na recuperação de uma crise econômica aguda.

O artigo de Weyland é muito interessante, mas tem problemas. Em um dado momento, argumenta que Collor não conseguiu consolidar-se como populista porque não resolveu a crise econômica da hiperinflação (correto) e porque o Brasil tinha um histórico de 20 anos em que todos os presidentes terminaram seus mandatos, o que é errado.

Não se pode usar estabilidade da ditadura como índice de robustez da nova institucionalidade democrática. E Weyland não fez uma análise estatística, mas de uma comparação usando o método booleano de Charles Ragin. Não desqualifico o método, que é uma tentativa de lidar com amostras pequenas, mas sugiro cautela em citar as conclusões obtidas dessa maneira como “demonstrações”. Nem análises estatísticas são isso.

Mas mesmo se aceitarmos as conclusões de Weyland, a aplicação ao caso brasileiro exige cuidado. O argumento do autor é sobre os Estados Unidos, em que Trump, de fato, herdou de Obama uma economia muito boa, e as instituições são notoriamente fortes.

Aqui Bolsonaro pegou a economia ainda fraca, e é difícil que não colha dividendos de popularidade se houver uma recuperação. Isso é verdade mesmo se, como argumenta Pereira, a responsabilidade pela melhora for de Temer (permaneço agnóstico).

Quanto às instituições, concordo com o excelente artigo do cientista político Cláudio Gonçalves Couto (“As instituições estão funcionando?”), publicado no Valor Econômico da última quinta-feira. Sim, diz Couto, as instituições estão rechaçando o autoritarismo bolsonarista, mas não é normal que elas sejam testadas todo dia. E cada teste as desgasta.

Por sua vez, Fernando Schüler argumenta que o Brasil atual comporta-se como um país “normal”. Schüler cita em sua defesa o artigo de Pereira e argumenta que os estudos sobre a crise da democracia têm viés partidário, refletindo a insatisfação de seus autores quando seus candidatos perdem (por exemplo, para Trump).

Não teria impacto sobre a hipótese se fosse verdade, mas, de qualquer forma, não é. A primeira formulação clara da tese da “recessão democrática” foi escrita por Larry Diamond e publicada no Journal of Democracy em janeiro de 2015, bem antes da vitória de Trump. Tratava sobretudo de retrocessos democráticos em países pobres. Não tenho informação de que Diamond tivesse um candidato favorito, digamos, na eleição fraudada no Burundi em 2010.

Finalmente, chamo atenção para um fato: nem Pereira nem Schüler apresentam qualquer evidência contrária a uma outra tese, a de que Jair Bolsonaro está tentando desmontar a democracia brasileira. Se não fosse pelo interesse nas reformas de Guedes, todo o establishment já o teria reconhecido.

Como me expulsei da academia

Como a tecnologia pode ajudar governos a virarem ditaduras?