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O fantasma do globalismo

O fantasma do neoliberalismo foi criado pela esquerda nos anos 90 do século 20 para refugar o liberalismo (não apenas o econômico, mas o político, quer dizer, a democracia). O fantasma do globalismo foi criado pela direita nos anos 10 do século 21 para rejeitar á globalização política e cultural (quer dizer – pulando algumas passagens da argumentação – também a democracia).

Ambas são ideologias bicho-papão construídas instrumentalmente por adversários da democracia (não importa se ditos de esquerda ou de direita) para estabelecer uma guerra (ou manter a perversão da política como continuação da guerra por outros meios) e para fornecer doses do veneno do ódio necessárias para arregimentar e reproduzir contingentes de militantes cuja função precípua é espalhar inimizade no mundo.

Percebam que sempre há um plano para dominar o mundo, contra o qual devemos instituir corpos de combatentes e empreender cruzadas (para eliminar ou segregar os infiéis).

Para a velha esquerda, esse era o plano do capitalismo internacional, do imperialismo norte-americano e das grandes corporações transnacionais. Para a nova direita esse é o plano do comunismo internacional e, novamente… das grandes corporações transnacionais.

Observem os isomorfismos. Do ponto de vista da estrutura do discurso, estamos diante da mesma coisa. Parece óbvio que tanto faz se esse inimigo universal da espécie humana se chame Eurásia ou Lestásia (como já havia sacado George Orwell no romance distópico 1984). O que importa realmente é mobilizar corações e mentes contra um grande inimigo e manter a vibe da guerra.

Vejamos um exemplo. Leiam o que escreveu o autocrata religioso Olavo de Carvalho, ontem (14/11/2017), na sua página do Facebook:

“O Catecismo da Igreja Católica ensina que a divisão da humanidade em nações e povos é parte essencial do plano divino para a salvação das almas, e que o amor à pátria é uma decorrência lógica do dever de honrar pai e mãe. Deus ODEIA todo globalismo”.

Não seria necessário ler mais nada do que disse esse sujeito para entender o que ele pensa. Ele costuma afirmar (pretensiosamente) que não se pode criticar o seu pensamento sem ler sua obra toda, mas isso é apenas uma maneira de fugir da crítica (e de vender livros). Não, não é necessário. Em um parágrafo ele se define. Todo o resto é mais do mesmo. Aqui está o núcleo do seu pensamento autocrático religioso.

O que isso significa? Nada menos do que a fuga para trás diante da emergência da sociedade-em-rede. Por incrível que pareça foi esta a razão para o nascimento da Al Qaeda, financiada inicialmente por chefetes locais da Arábia Saudita com medo de perder o controle sobre as populações que mantêm sob domínio diante da TV e do rádio (e, talvez, da internet) que introduziam costumes ocidentalizantes e deletérios num rebanho que deveria permanecer separado do resto do mundo, para continuar submisso aos seus senhores.

E é esta a razão (ou desrazão) de todos os fundamentalismos nacionalistas (quer dizer, estatistas). Como a nação é uma comunidade imaginária, o que existe mesmo é a autocracia, o rebanho controlado por um senhor, cercado por fronteiras físicas e culturais.

A construção de uma ideologia globalista é apenas um truque para se opor à globalização e, mais do que isso, à glocalização, à miscigenação cultural (confundida de propósito com o multiculturalismo), aos intercâmbios políticos.

É o horror. E é o horror porque é a normalização do estado de guerra permanente, com a conversão artificial de diferenças em separações para manter o mundo sob controle dos hierarcas.

Os democratas não estamos preocupados com Olavo e sim com os olavistas (e com o olavismo). Boa parte das pessoas que se mobilizaram para convocar manifestações pelo impeachment de Dilma, está sob a influência das ideias autocráticas do olavismo e a um passo de aderir ao bolsonarismo. Isso impede a formação de um pensamento liberal-conservador sério no Brasil, ao estilo Thatcher ou Reagan (que alguns gostariam de chamar de direita, embora tal denominação seja tola no século 21).

Cai tudo no retrogradacionismo (que, além de iliberal, não é a mesma coisa que o conservadorismo).

Cai tudo na vala comum do nacionalismo (anti-globalização) e dos fundamentalismos religiosos ou laicos.

Cai tudo no trumpismo patriotista mais boçal, no localismo não-cosmopolita tipo America First.

Cai tudo no conspiracionismo anti-nova ordem mundial.

Cai tudo no anacrônico anticomunismo (na vibe da guerra fria).

Cai tudo no armamentismo irresponsável da população (que não se confunde com o direito das pessoas de ter uma arma – que deve ser defendido).

Vamos à prova.

Se fizermos uma lista dos trinta atores – pessoas e movimentos – mais influentes durante as manifestações em prol do impeachment, que continuam publicando regularmente, na mídia broadcasting e nas mídias sociais, veremos que cerca de 70% são olavistas (ou bolsonaristas). Então isso é um dado significativo da realidade, não uma opinião marginal, mas uma corrente antidemocrática de pensamento e ação que vem crescendo no meio dos ativistas ditos da “nova direita” e que, como tal, não pode ser desprezado pelos democratas.

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