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Duas divergências entre Sócrates e os democratas – O Julgamento de Sócrates de I. F. Stone – 1

Começamos a transcrever o excelente livro de I. F. Stone (1988), O Julgamento de Sócrates, tradução brasileira de Paulo Henriques Britto, do original em inglês The Trial of Socrates, publicada pela Editora Schwarcz (São Paulo: Companhia das Letras, 2005).

Nesta primeira parte vamos publicar o Prefácio, o Prelúdio e três primeiros capítulos da Primeira Parte, intitulada Sócrates e Atenas.

Prefácio

COMO ESTE LIVRO VEIO A SER ESCRITO

O PRESENTE LIVRO É, na verdade, um fragmento do que foi originariamente concebido como uma obra maior — muito maior.

É impossível compreender um livro completamente se o autor não revela a motivação que o levou a empreender uma tarefa tão onerosa. Como foi que, após toda uma vida dedicada ao jornalismo investigativo crítico e independente — designado em inglês pelo termo pejorativo muckraking —, fui levado a me dedicar aos estudos clássicos e à questão do julgamento de Sócrates? Quando tive que abandonar meu periódico I. F. Stone’s Weekly no final de 1971, após dezenove anos de publicação, por estar sofrendo de angina do peito, resolvi utilizar minha aposentadoria para empreender um estudo da liberdade de pensamento na história da humanidade — não a liberdade em geral, conceito que encerra ambiguidade demais, podendo até mesmo ser identificada com a liberdade dos fortes de explorar os fracos, mas a liberdade de pensamento e expressão. Este projeto tinha suas raízes na ideia de que nenhuma sociedade é boa, quaisquer que sejam suas intenções e pretensões utópicas e libertárias, se as pessoas que nela vivem não têm liberdade para manifestar o que pensam. Meu objetivo era, com esse estudo, ajudar uma nova geração não apenas a preservar a liberdade de expressão nos lugares onde ela existe — e ela está constantemente sendo ameaçada por intenções boas e más —, mas também ajudar os dissidentes combativos do mundo comunista a promover uma síntese libertadora entre Marx e Jefferson.

Quando jovem, senti-me atraído tanto pela filosofia quanto pelo jornalismo. Li os fragmentos de Heráclito no verão após a conclusão de meu curso secundário. Fui estudar filosofia na universidade, porém já trabalhava como jornalista full time quando abandonei os estudos no terceiro ano para me dedicar ao jornalismo o resto da vida.

No entanto, jamais perdi o interesse pela filosofia e pela história, e assim que me aposentei voltei a elas. Minha investigação sobre a liberdade de pensamento começou com um ano dedicado ao estudo das duas revoluções inglesas do século XVII, as quais vieram a exercer grande influência sobre o desenvolvimento do sistema constitucional americano.

Logo passei a achar que não me seria possível compreender integralmente as revoluções inglesas seiscentistas se não conhecesse melhor a Reforma protestante e as íntimas ligações entre a luta pela liberdade religiosa e a luta pela liberdade de expressão.

Para compreender a Reforma, foi necessário andar para trás mais uma vez e estudar os movimentos premonitórios e os pensadores ousados da Idade Média que semearam as sementes da liberdade de pensamento. Isso, por sua vez, estava intimamente ligado ao impacto que teve sobre a Europa ocidental a redescoberta de Aristóteles, através de traduções e comentários em árabe e hebraico, no século XII.

Daí fui levado às fontes dessas influências libertadoras, situadas na Atenas da Antiguidade, uma sociedade em que a liberdade de pensamento e de expressão floresceu num grau jamais visto antes e que pouquíssimas vezes foi igualado posteriormente. E então, como já aconteceu com tantos outros antes de mim, apaixonei-me pelos gregos.

Quando voltei à Grécia antiga, julguei de início, em minha ignorância, que poderia fazer um apanhado rápido da liberdade de pensamento na Antiguidade clássica, baseado nas fontes canônicas. Mas logo descobri que não havia fontes canônicas. No campo dos estudos clássicos, quase todas as questões eram profundamente controvertidas. Nossos conhecimentos formam uma espécie de quebra-cabeça gigantesco, do qual muitas peças estão irremediavelmente perdidas. Com base nos fragmentos restantes, estudiosos igualmente eminentes constroem visões contraditórias de uma realidade desaparecida, as quais tendem a refletir as ideias preconcebidas que tomaram como ponto de partida.

Assim, resolvi estudar as fontes eu mesmo. Então constatei que não se podiam fazer inferências políticas ou filosóficas que fossem válidas com base em traduções, não porque os tradutores fossem incompetentes, mas porque os termos gregos não eram inteiramente congruentes — para empregar um conceito de geometria — com os termos equivalentes do inglês. O tradutor era obrigado a optar por uma entre várias alternativas apenas aproximadamente satisfatórias. Para compreender um termo conceitual do grego, seria necessário aprender ao menos o suficiente do idioma grego para poder trabalhar com o original, pois era apenas nele que se podiam captar todas as implicações e conotações potenciais do termo.

Assim, por exemplo, como entender a palavra logos com base em uma tradução inglesa, quando a definição desse termo famoso — com toda a sua rica complexidade e evolução criativa — exige mais de cinco colunas, em letras miúdas, na edição integral do enorme Greek-English lexicon, de Liddell, Scott e Jones? Um milênio de pensamento filosófico está contido num termo que começa, em Homero, designando a ideia de “fala”, transforma-se em “Razão” — com R maiúsculo como senhora divina do universo — nos estoicos e termina, no Evangelho segundo São João — por meio de um sutil empréstimo tomado às fontes bíblicas —, como o Verbo criativo de Deus, Seu instrumento na tarefa da Criação.

No meu tempo, mesmo numa escola secundária do interior, os alunos estudavam quatro anos de latim para se preparar para a universidade, e Catulo e Lucrécio foram alguns dos primeiros escritores por quem me entusiasmei. Mas só fiz um semestre de grego na faculdade antes de abandonar os estudos no terceiro ano.

Ao me aposentar, resolvi estudar grego o bastante para poder compreender os termos conceituais. Comecei a estudar sozinho, com uma edição bilíngue do Evangelho segundo são João, e depois passei para o primeiro livro da Ilíada. Mas o estudo do grego acabou levando-me à leitura dos poetas gregos e da literatura grega em geral, uma exploração que continua a me deliciar.

Quanto mais me apaixonava pelos gregos, porém, mais me incomodava a cena de Sócrates diante dos juízes. Aquilo feria minha sensibilidade de defensor das liberdades civis; abalava minha fé jeffersoniana no homem comum. Era uma nódoa na reputação de Atenas e da liberdade que ela simbolizava. Como poderia o julgamento de Sócrates ter ocorrido numa sociedade tão livre? Como pôde Atenas trair seus próprios princípios de tal modo?

Este livro é o fruto desse tormento. Resolvi descobrir como pôde acontecer tal coisa. Quando iniciei meu trabalho, não podia defender o veredicto dos juízes, e continuo não podendo. Mas me interessava descobrir o que Platão não nos revela, ver a coisa pelos olhos de Atenas, atenuar o crime da cidade e remover, desse modo, uma parte do estigma que o julgamento representa para a democracia e para Atenas.

Prelúdio

NENHUM OUTRO JULGAMENTO, à parte o de Jesus, deixou uma impressão tão forte na imaginação do homem ocidental quanto o de Sócrates. Os dois julgamentos têm muita coisa em comum. Não dispomos de relatos contemporâneos e imparciais de nenhum dos dois, nem mesmo alusões fragmentárias. Não temos os autos dos processos. Não conhecemos os argumentos da acusação. Só conhecemos a história através de relatos posteriores, escritos por discípulos fidelíssimos.

No caso de Sócrates, dispomos da acusação formal. Mas não temos aquilo que os advogados chamam de documentos de denúncia — isto é, a enumeração das acusações específicas, e não apenas as alegações gerais. Não sabemos quais as leis invocadas para justificar as acusações.

Tanto Jesus quanto Sócrates imortalizaram-se através do martírio. Para a teologia cristã, a crucificação cumpriu a missão divina. No caso de Sócrates, porém, nem mesmo o martírio teria bastado. Sócrates nada escreveu. Dos escritos de seus muitos e variados discípulos, sobreviveram apenas os de Platão e Xenofonte. Se só nos restassem os relatos de Xenofonte, nem mesmo a taça de cicuta bastaria para imortalizar Sócrates. (O Sócrates de Xenofonte tende a proferir lugares-comuns e banalidades, e por vezes comporta-se como um verdadeiro filisteu; numa passagem das Memoráveis de Xenofonte, obra em que o autor evoca a figura do mestre, Sócrates chega mesmo a se oferecer, de brincadeira, para atuar como proxeneta de uma conhecida cortesã ateniense.) Se tivesse sido absolvido, se tivesse morrido uma morte tranquila, de velhice, Sócrates talvez fosse lembrado agora como uma figura menor e excêntrica do mundo ateniense, alvo preferido dos poetas cômicos.

Foi Platão quem criou o Sócrates de nossa imaginação, e até hoje é impossível determinar até que ponto essa imagem corresponde ao Sócrates histórico e até que ponto é produto do gênio criativo de Platão.

A busca do Sócrates histórico, como a do Jesus histórico, continua a gerar uma literatura cada vez mais imensa, um vasto mar de especulações e polêmicas eruditas.

Mas a dívida de Sócrates para com Platão não é maior do que a de Platão para com Sócrates. E graças ao gênio literário de Platão que Sócrates ocupa a posição preeminente de santo secular da civilização ocidental. E é graças a Sócrates que as obras de Platão continuam a ser tão consumidas até hoje. Platão é o único filósofo que transformou metafísica em drama. Sem o personagem enigmático e intrigante de Sócrates como protagonista de seus diálogos, Platão não seria o único filósofo que continua deliciando um grande número de leitores em todas as gerações. Ninguém lê Aristóteles, Tomás de Aquino ou Kant como literatura.

Um dos biógrafos de Platão na Antiguidade, Olimpiodoro, afirma que a intenção original de Platão era tornar-se dramaturgo, um poeta trágico ou cômico. Em sua época, o teatro era a expressão máxima do gênio literário ateniense. Segundo Olimpiodoro, quando conheceu Sócrates e ficou fascinado por ele, Platão queimou suas investidas no campo da poesia trágica e passou a se dedicar à filosofia (1).

Afinal, porém, Platão não chegou a se afastar totalmente de sua ambição inicial. Os quatro diálogos referentes ao julgamento e à morte de Sócrates — Eutífron, Apologia, Críton e Fédon — funcionam como tragédias. E difícil ler o sereno discurso de despedida de Sócrates dirigido a seus discípulos, no Fédon, sem derramar uma lágrima, e não há como não se comover ao ler, na Apologia — ainda que já se tenha lido o trecho inúmeras vezes antes —, as últimas palavras de Sócrates diante dos juízes. Esses relatos platônicos representam o que há de mais elevado na literatura dramática. Sócrates é um herói trágico da mesma estatura que Édipo e Hamlet.

O julgamento foi realizado no ano 399 a.C. Como pode um repórter cobrir um julgamento ocorrido há quase 2400 anos? O primeiro obstáculo é a terrível desproporção entre polêmica e fato. A literatura socrática é imensa; os dados concretos são poucos; e boa parte da literatura consiste em polêmicas muito distanciadas das fontes originais: o professor X ataca a crítica feita pelo professor Y à interpretação dada pelo professor Z a um texto da Antiguidade. O primeiro passo, portanto, é passar desses debates indiretos, e muitas vezes acirrados, para o exame dos documentos básicos (2).

Chegaram até nós três retratos de Sócrates esboçados por contemporâneos seus. Além dos relatos de Platão e Xenofonte, temos também o retrato delineado nas comédias de Aristófanes, que era amigo de Sócrates, conforme atesta o Banquete de Platão. Aristófanes dedicou toda uma peça, As nuvens, ao personagem de Sócrates, e o menciona também em três outras peças que chegaram até nós: Os pássaros, As rãs e As vespas. Além disso, temos também, a respeito de Sócrates, alguns fragmentos de outras comédias que se perderam, representadas quando o filósofo ainda era vivo.

Podemos ainda captar algo de Sócrates numa obra criada apenas duas gerações depois: os escritos de Aristóteles, o maior discípulo de Platão, que nasceu quinze anos após a morte de Sócrates. Aristóteles tinha inúmeras divergências com Platão. De fato, podemos ler Aristóteles e Platão conjuntamente como um debate filosófico-político; e mesmo agora nem sempre os platônicos e os aristotélicos se falam. As referências a Sócrates que encontramos em Aristóteles são curtas e dispersas, porém acrescentam dados novos. São importantes porque Aristóteles se distancia do culto a Sócrates e trata sua contribuição à filosofia com uma aspereza e uma precisão que contrastam vivamente com a atitude de adoração que caracteriza Platão.

Assim, temos um Sócrates xenofôntico, um Sócrates platônico, um Sócrates aristofânico e um Sócrates aristotélico. Como determinar, dadas as diferenças que há entre essas fontes primárias, o verdadeiro Sócrates? Não há como chegar a uma resposta incontestável. Todavia, sempre que vemos traços comuns nos diferentes retratos, é bem provável que tenhamos encontrado uma característica do Sócrates histórico.

A busca do “verdadeiro” Sócrates também encontra dados interessantes — bem como mais contradições — no pouco que conhecemos de seus outros discípulos e nas referências esparsas feitas a Sócrates em obras das literaturas grega e latina, até inclusive pelos padres da Igreja (3).

Chegar ao Sócrates histórico é apenas uma parte de nossa tarefa. Para nós, é igualmente importante recuperar os argumentos da acusação e a visão que os cidadãos tinham de Sócrates. Temos que revirar os textos antigos para encontrar o que nossa principal fonte, Platão, não nos revela, e o que os defensores de Sócrates tendem a escamotear. Essa busca nos levará a esquadrinhar toda a Antiguidade clássica, não só a grega como também a latina.

Todo o conhecimento pode ser reduzido a comparação e contraste; se no mundo existisse uma única coisa, num universo que nada mais contivesse, não teríamos como descrever ou “conhecer” essa coisa única. Quando abordamos qualquer problema grego, podemos aprender muito examinando o aspecto análogo da civilização romana. A comparação e, mais ainda, o contraste entre essas duas sociedades aparentadas, porém muito diferentes, são esclarecedores. Assim, por exemplo, ao estudar os procedimentos eleitorais e as regras de debate nas assembleias populares da república romana ao lado dos processos análogos da assembleia ateniense, vemos claramente o contraste entre os dois sistemas políticos, aquele uma oligarquia mal disfarçada, este uma democracia direta integral. Assim, nossa tentativa de chegar a uma nova visão do julgamento de Sócrates nos levará a uma nova visão da Antiguidade clássica. É o nosso passado, e sem compreendê-lo não poderemos chegar à compreensão de nossa própria realidade.

Notas do Prelúdio

1. V. The Works of Plato (Londres: Bohn, 1908), 6:236, que inclui a biografia de autoria de Olimpiodoro.

2. Corre-se o perigo de afogar-se na literatura socrática existente. Pode-se ter uma ideia do volume dessa bibliografia consultando uma dissertação em dois volumes defendida na Sorbonne em 1952, que incluía o levantamento bibliográfico mais completo até então realizado: V. de Magalhães-Vilhena, Le problème de Socrate e Socrate et la légende platonicienne (Paris: Presses Universitaires de France, 1952), que chegam a mais de oitocentas páginas, muitas delas só de notas de rodapé, em corpo diminuto. Seria necessário outro livro para cobrir a literatura socrática publicada nos anos subsequentes.

3. Essas referências foram reunidas e traduzidas pelo estudioso inglês John Ferguson, da Open University britânica, em Socrates: a source book (Londres: Macmillan, 1970). Encontrei-o muitos anos atrás, quando folheava livros na livraria Foyle’s, em Londres. Não foi publicado nos Estados Unidos. Esses fragmentos, na maioria curtos, chegam a ocupar 355 páginas, em duas colunas. A coleção de Ferguson também inclui a primeira tradução para o inglês de uma obra pouco conhecida, a Apologia de Sócrates de Libânio, orador grego do século IV d.C.

Primeira parte

SÓCRATES E ATENAS

1. AS DIVERGÊNCIAS BÁSICAS

COM BASE APENAS NOS TEXTOS DE PLATÃO, podemos ser levados à conclusão de que Sócrates entrou em conflito com seus concidadãos por exortá-los a praticar a virtude, uma atividade que sempre gera antipatias. Mas, se colocarmos ao lado da Apologia elementos que permitam uma visão mais ampla do problema, veremos que o conflito entre Sócrates e sua cidade natal teve início porque havia divergências profundas entre ele e a maioria dos atenienses de sua época — mais ainda, entre ele e os gregos antigos em geral — em relação a três questões filosóficas básicas. Essas divergências não eram meras abstrações remotas, porém tocavam nos fundamentos do sistema de autogoverno de que gozavam os atenienses.

A primeira e a mais fundamental dessas discordâncias dizia respeito à natureza da comunidade humana. Seria ela, como afirmavam os gregos, a pólis — a cidade livre? Ou seria, como disse Sócrates tantas vezes, um rebanho?

Um bom ponto de partida para essa discussão é uma das mais famosas observações da Antiguidade — o comentário de Aristóteles, que abre seu tratado sobre a política, segundo o qual o homem é um animal político.

A tradução inglesa da frase é infeliz. As palavras political animal (animal político) certamente traduzem de modo exato e literal a expressão grega zoon politikon. Em inglês, porém, as palavras evocam a imagem de um cabo eleitoral que passa a vida inteira executando as tarefas mais sórdidas de uma moderna organização de controle político.

A palavra grega pólis, “cidade”, e os termos dela derivados, possuem conotações muito diferentes. Ser um polites, cidadão de uma pólis, era uma honra. Significava que se tinha o direito de debater e votar a respeito das questões que afetavam a vida do cidadão e de toda a cidade.

Para os gregos antigos, pólis era mais do que o termo “cidade” representa para nós, que vivemos em Estados nacionais modernos. Não significava apenas um meio urbano, em oposição ao meio rural. A pólis era um Estado integralmente independente e soberano, no sentido moderno desses termos. A pólis formulava as leis que vigoravam dentro de suas fronteiras, e fazia a guerra ou a paz com outras entidades fora de suas fronteiras como bem entendia.

Mas quando afirmou, no início de sua Política, que o homem era um “animal político”, Aristóteles não se referia às manifestações externas da pólis enquanto entidade soberana, mas às relações internas que viabilizavam a existência da cidade. O que Aristóteles estava dizendo é que apenas o homem possuía as qualidades que tornavam possível a existência em comunidade, e para ele, como para a maioria dos gregos, a forma mais elevada de koinonia — literalmente, “comunidade” — era a pólis. Segundo Aristóteles, ela era possível porque só o homem, dentre todos os animais, possuía o logos (1). O logos era mais do que a capacidade de falar. O termo denotava também a razão e a moralidade.

Como o próprio Aristóteles observou, existem outras formas de vida social ou gregária. Alguns insetos vivem em comum em colmeias, e certos animais selvagens vivem juntos em bandos. Mas “o que distingue o homem dos outros animais é ser ele o único a perceber o bem e o mal, o justo e o injusto”. E esse senso de justiça intrínseco que confere ao homem seu instinto social, seu “impulso”, para usar o termo de Aristóteles, que o leva a viver em sociedade, e faz do homem “um animal político em maior medida do que qualquer abelha ou qualquer animal gregário” (2).

Quando afirma que a pólis existe “por natureza”, Aristóteles quer dizer que ela decorre da natureza do homem, de um senso de justiça intrínseco.

Para os gregos, a pólis tinha uma característica especial que a distinguia das outras formas de comunidade humana. Era, segundo Aristóteles, “uma associação de homens livres”, ao contrário de outras formas mais antigas de associação, como a família, governada pelo patriarca, ou a monarquia, ou a relação entre senhor e escravo. A pólis se autogovernava. Os governados eram os governantes. Nas palavras de Aristóteles, o cidadão “alternadamente governa e é governado” (3). Tanto nas oligarquias, em que a cidadania era restrita, quanto nas democracias como Atenas, em que todos os homens nascidos livres eram cidadãos, os principais cargos públicos eram preenchidos por eleição, mas muitos outros eram ocupados por sorteio, para que todos os cidadãos tivessem as mesmas oportunidades de vir a participar do governo. Todo cidadão tinha o direito de votar e de falar na assembleia na qual as leis eram elaboradas, e de participar dos tribunais que aplicavam e interpretavam essas leis. Eram essas as características básicas da política grega — ou seja, a administração das cidades gregas — muito antes do quarto século antes de Cristo, época em que Aristóteles as analisou. Elas regiam a vida de Atenas no tempo de Sócrates, e era dessas premissas que Sócrates e seus discípulos discordavam.

A divergência era fundamental. Em Atenas e nas cidades-Estados gregas em geral, bem como na república romana, a política era uma espécie de luta de classes bipartidária. Os dois lados concordavam que a cidade deveria ser governada por seus cidadãos. A discordância se dava em relação à definição de cidadania. Deveria esta ser restrita, como ocorria nas oligarquias, ou ampla, como nas democracias? Deveria a cidade ser governada pela minoria ou pela maioria — ou seja, pelos ricos ou pelos pobres? Mas para ambos os lados a política — a própria vida da cidade — era entendida como autogoverno, e ser contra o autogoverno não era apenas ser antidemocrático: era ser antipolítico. Era essa a visão que tinha de Sócrates a maioria de seus contemporâneos.

Sócrates não defendia nem a oligarquia nem a democracia. Não se identificava com nenhum dos dois lados. Seu ideal, tal como é apresentado de diferentes maneiras em Xenofonte e em Platão, e refletido no pouco que conhecemos dos outros socráticos, não era o poder exercido pela minoria nem pela maioria, e sim — segundo Xenofonte — por “aquele que sabe” (4). Para seus contemporâneos, isso certamente parecia uma volta à monarquia em sua forma mais absoluta. E defender a monarquia era colocar-se em oposição frontal à pólis. Na Atenas dos séculos V e IV a.C., defender a monarquia deveria parecer tão estranho quanto pareceria um partido monarquista nos Estados Unidos no século XX — algo tão antiquado e excêntrico que nem chegava a causar alarme.

Nem a minoria nem a maioria queriam restaurar a monarquia ou abrir mão do controle sobre o governo e sobre suas próprias vidas. Tinham divergências acirradas, chegando a travar verdadeiras guerras civis em miniatura, em relação à maneira como se deveria definir o conceito de cidadania. Contudo, todos concordavam que os cidadãos é que deveriam governar a cidade.

Essa controvérsia não é algo tão remoto quanto pode parecer à primeira vista. O século XX já viu — e continua vendo — novas formas de governo exercido por um único indivíduo, nos totalitarismos de direita e de esquerda. De fato, o germe do totalitarismo já está evidente na formulação da teoria de governo de Sócrates que aparece nas Memoráveis de Xenofonte, a primeira e mais completa exposição de suas propostas.

Sócrates argumentaria que não estava propondo a monarquia em sua forma antiga, e sim uma nova forma de governo de um só indivíduo, que constituiria a base de uma sociedade ideal. Nas Memoráveis, Sócrates se coloca na posição de adversário de todas as formas de governo existentes. Ele as enumera uma por uma, e rejeita todas.

“Os reis e governantes”, diz ele, “não são aqueles que detêm o cetro”, símbolo de seu elevado cargo, que, segundo ele, lhes teria sido entregue pelo próprio Zeus. Com esse argumento, refuta a monarquia em sua forma tradicional. Também não são — prossegue — “aqueles que são escolhidos pela multidão”. Assim, refuta a democracia. “Tampouco aqueles que são sorteados” — e desse modo rejeita os ocupantes de cargos públicos escolhidos por sorteio. “Nem tampouco aqueles cujo poder deriva da força ou da trapaça” — e assim elimina os “tiranos”. Os “reis e governantes” verdadeiros ou ideais são “aqueles que sabem governar”.

Um democrata ateniense teria argumentado que são justamente esses homens que se tenta encontrar através do voto popular, e que, como precaução para casos de erro de julgamento e abuso de autoridade, os poderes e os mandatos de tais homens são limitados. Mas Sócrates não previa tais salvaguardas que limitassem o poder dos governantes. Sua premissa básica — segundo Xenofonte — era que “cabe ao governante dar ordens e cabe aos governados obedecer”. Isso certamente parecia uma retomada da velha monarquia, só que tornada absoluta. Mas Sócrates responderia que estava propondo um novo tipo de governo — um governo, diríamos nós hoje, exercido por peritos. Em Xenofonte, Sócrates defende sua posição em favor do poder absoluto com analogias que também aparecem nos diálogos platônicos. Escreve Xenofonte que Sócrates “em seguida demonstrou que, num navio, aquele que sabe, governa, e o proprietário [do navio] e todos os outros [que estão nele] obedecem àquele que sabe”. Do mesmo modo, argumenta Sócrates, “na agricultura, os proprietários; na doença, os pacientes” e, “no treinamento”, os atletas apelam para os peritos, “aqueles que sabem”, para “obedecer a eles e fazer o que deve ser feito”. Chega mesmo a brincar, numa época de supremacia masculina, afirmando que “no que concerne à fiação da lã […] as mulheres governam os homens, porque elas sabem fazê-lo e os homens não sabem” (5).

Todas essas analogias são imperfeitas, e delas se tiram conclusões falaciosas. Um democrata grego poderia argumentar que o proprietário do navio, o paciente, o proprietário de terras e o atleta tinham liberdade de escolher os peritos e que, se estes se revelassem insatisfatórios, podiam ser dispensados e substituídos por outros. Era justamente isso o que fazia uma cidade livre ao escolher — e substituir — seus funcionários. Caso contrário, por detrás da fachada “daquele que sabe” se ocultaria a face da tirania. O problema não era apenas encontrar o perito adequado, mas dispor de meios de se livrar dele caso se revelasse mau.

Para compreender as primeiras abordagens desse problema nas cidades-Estados da Grécia — o nascimento do que denominamos ciência política —, somos obrigados a recorrer basicamente a Platão e a Aristóteles. Para avaliar a contribuição de cada um deles, é preciso de início estabelecer uma diferença essencial entre os dois.

Platão era um teórico, Aristóteles um observador científico. Aristóteles dava mais valor aos conhecimentos práticos do que aos teóricos, quando se tratava de abordar as questões humanas. Aristóteles tinha uma forte predisposição no sentido de valorizar a experiência e o senso comum. Platão, por outro lado, numa famosa passagem da República propôs que se limitasse o estudo da “dialética” — e, assim, aqueles que poderiam tornar-se governantes em sua utopia — àqueles que fossem capazes de “renunciar ao uso da vista e dos outros sentidos e chegar a contemplar to on” — o “ser puro”, ou o “ser em si” (6). Isso seria certamente uma felicidade para o místico, mas de pouco serviria para o estadista, obrigado a enfrentar situações complexas e a inflexível natureza humana.

Aristóteles discorda de Platão desde o início de sua obra-prima filosófica, a Metafísica. Começa com as palavras: “Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer. Uma prova disso é nosso apego aos sentidos”. Sem eles, em particular a visão, pergunta Aristóteles, como podemos saber e agir? Do mesmo modo, no início da Política Aristóteles deixa claro que está discordando das ideias políticas de Platão e Sócrates. Como na Metafísica, não menciona seus nomes; mas a referência é clara. Escreve ele: “Aqueles que julgam que a natureza do estadista, a do rei, a do chefe de uma propriedade e a do chefe de uma família são idênticas, estão enganados” (7). A pólis merecia a lealdade dos homens livres por ser ela a concretização do consentimento dos governados. Para os gregos, tudo isso pareceria irrefutável.

O politikós, o líder político ou estadista de uma pólis, era um funcionário eleito, cujo mandato era limitado — normalmente a um ano —, que prestava contas a uma assembleia popular e aos tribunais populares, e que mesmo em tempo de guerra dispunha de um poder que estava longe de ser absoluto. Os cidadãos por ele governados não lhe eram inferiores quanto a seu status legal nem a nenhuma hierarquia, e sim (como observou Aristóteles na Política) eram seus “iguais e semelhantes” (8). Tinham em comum uma mesma humanidade.

Aqui se encontra o primeiro conflito, e o mais fundamental, entre Sócrates e Atenas.

Os diversos seguidores de Sócrates discordavam, muitas vezes com tanta ferocidade quanto os estudiosos modernos, a respeito do teor exato dos ensinamentos socráticos, até mesmo — e especialmente — em relação à natureza da virtude. Todos eles, porém, concordavam em uma questão: rejeitavam a pólis. Todos encaravam a comunidade humana não como um corpo de cidadãos dotados de direitos iguais, mas como um rebanho que precisava de um pastor ou rei. Todos tratavam a democracia com condescendência ou desprezo.

O ideal de Xenofonte, por ele exposto em sua utopia, a Ciropédia ou Educação de Ciro, era uma monarquia regida por leis. Esse era o modelo persa tal como Xenofonte julgava ter sido estabelecido por Ciro, o Grande, fundador do império persa.

Antístenes, o mais velho dos discípulos de Sócrates, considerava a monarquia a forma ideal de governo, e concordava com Xenofonte que Ciro era o monarca ideal (9). Essas ideias teriam sido expressas em seu diálogo perdido, O estadista, mencionado por Ateneu (10).

Antístenes foi o fundador do cinismo, e era particularmente cínico em relação à democracia. São-lhe atribuídas duas histórias que a ridicularizam, uma por Diógenes Laércio, outra por Aristóteles. Na primeira, Antístenes teria perguntado aos atenienses por que não decidiam por votação que os asnos eram cavalos, já que (afirmava ele) por vezes elegiam generais que eram tão diferentes de verdadeiros comandantes militares quanto um asno é de um cavalo! (11). Essa comparação satírica talvez tenha se originado com o próprio Sócrates, já que no Fedro, de Platão, Sócrates fala de um orador popular que faz uma cidade ignorante crer que um asno é um cavalo (12).

Na Política, Aristóteles atribuiu a Antístenes uma fábula irônica a respeito dos leões e das lebres. “Quando as lebres fizeram discursos na assembleia, exigindo igualdade para todos”, afirmou Antístenes, “os leões replicaram: ‘Onde estão suas garras e seus dentes?’” (13). Era essa a réplica cínica à exigência democrática de igualitarismo.

Platão esboçou diversas utopias. Todas, menos uma, As leis, baseavam-se em alguma forma de monarquia. No Político, como já vimos, a forma ideal de governo era a monarquia absoluta. Na República, era o poder absoluto de um ou mais “reis-filósofos”. No Timeu e no Crítias, sua continuação, Platão representa a Idade do Ouro do homem como a época em que os deuses cuidavam de seus rebanhos humanos do mesmo modo como os homens, mais tarde, passaram a cuidar de seu gado.

Mesmo na utopia “moderada” da velhice de Platão, As leis, o corpo de cidadãos, estreitamente limitado, teria atuado sob a supervisão de um Conselho Noturno, um órgão inquisitorial com poderes de extirpar as dissidências, modelo do extinto e famigerado Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas. As viagens ao estrangeiro seriam severamente limitadas para preservar a comunidade da “poluição espiritual” — para empregar o termo atualmente utilizado pelos comunistas chineses — provocada pelas ideias alienígenas. Essas inovações platônicas em termos de controle do pensamento iam muito além do poder monárquico que os gregos conheciam. Na verdade, foram a primeira antevisão daquilo que agora denominamos sociedade totalitária.

No Górgias, de Platão, Sócrates deixa claro que não aprova nenhuma forma de pólis. Os dois mais famosos estadistas conservadores de Atenas, Címon e Milcíades, são tratados com o mesmo desdém imparcial que Sócrates manifesta pelos dois mais famosos líderes democráticos, Temístocles e Péricles. Com relação a Péricles, falecido havia pouco tempo, Sócrates observa que ele deve ser considerado um fracasso enquanto estadista, porque deixou o rebanho humano a seu cargo “mais selvagem do que era antes. […] Não conhecemos ninguém”, conclui Sócrates, “que tenha se revelado um bom estadista nesta nossa cidade” (14). Diz ele, segundo Platão: “Creio que sou um dos poucos — para não dizer o único — atenienses que tentam praticar a verdadeira arte do estadista” (15). Certamente, não foi este seu momento de maior modéstia.

Nas Memoráveis, Sócrates afirma que seu princípio básico de governo é que “cabe ao governante dar ordens e cabe aos governados obedecer”. O que exigia não era o consentimento dos governados, mas sua submissão. Trata-se, certamente, de um princípio autoritário, rejeitado pela maioria dos gregos, e em particular pelos atenienses.

Era fundamental para todas as cidades-Estados gregas a igualdade dos cidadãos, fosse a cidadania definida como modo a incluir a minoria ou a maioria. A premissa socrática era uma desigualdade básica; ninguém era cidadão; todos eram súditos. Havia um abismo entre o governante e os governados.

Sob um determinado aspecto, o Sócrates de Xenofonte difere do Sócrates de Platão. Nas Memoráveis de Xenofonte, Sócrates propõe uma monarquia dentro dos limites da lei, mas na República de Platão Sócrates não impõe nenhuma restrição aos reis-filósofos. Isso talvez seja um reflexo das diferenças entre os dois discípulos. O absolutismo é a característica básica das utopias platônicas, enquanto Xenofonte, na Ciropédia, propõe como seu ideal uma monarquia contida pelos limites da lei. Talvez Xenofonte e Platão tenham feito “leituras” diferentes de Sócrates quanto a essa questão, cada um seguindo suas ideias preconcebidas, o que é comum acontecer com discípulos de um mesmo mestre.

Há um trecho das Memoráveis em que Sócrates chega mesmo a falar que não apenas a lei, mas também o consentimento popular eram ingredientes necessários a uma verdadeira monarquia. Xenofonte escreveu que Sócrates distinguia a “realeza” da “tirania” afirmando que “o governo aceito pelos homens e conforme às leis do Estado era realeza, enquanto o governo imposto aos súditos sem seu consentimento e sem outras leis que a vontade do governante era despotismo” (16). Mas e se um rei legítimo começasse a agir sem respeito às leis? Nesse caso, teriam seus súditos o direito de derrubá-lo, do mesmo modo como o dono de um navio poderia demitir um piloto que se tivesse tornado alcoólatra ou um paciente poderia dispensar um médico que tivesse abusado de sua confiança? Sócrates é obrigado a abordar a questão do mau governante ou do governante que se torna mau. Quando ele acaba de afirmar a proposição segundo a qual “cabe ao governante dar ordens e cabe aos governados obedecer”, duas perguntas lhe são colocadas: e se o governante não considera os bons conselhos? E se ele mata um súdito leal, que ousou lhe dar um bom conselho?

Evasivo, Sócrates responde com outra pergunta: “Como pode [o governante] recusar, se o castigo nunca falha quando se recusa um bom conselho? Pois todo aquele que não ouve um bom conselho incorre em erro, e seu erro será punido”.

A segunda pergunta, referente à morte do súdito leal, Sócrates dá resposta semelhante. “Pensam”, pergunta ele, “que aquele que mata seus mais valiosos aliados não sofre nenhuma perda, e que esta perda é insignificante? Pensam que esse procedimento lhe trará segurança e não lhe apressará a própria ruína?” (17).

Essas respostas simplistas não teriam satisfeito a maioria de seus contemporâneos. O que Sócrates não diz é mais importante do que o que ele diz. Ele jamais afirma que os cidadãos têm o direito de livrar-se de um governante que rejeita bons conselhos e mata aquele que os oferece. Ele pede que confiem, como um defensor do mercado livre, nas consequências supostamente inevitáveis da falta de discernimento e da má conduta. A “ruína” que Sócrates prevê para o mau governante não serve de consolo para os governados. A cidade e os cidadãos podem ser destruídos juntamente com o governante voluntarioso. Ou então ele pode fugir, como um Marcos ou um Duvalier, com a fortuna que roubou dos súditos. Muitas vezes os tiranos conseguem safar-se com o produto de sua pilhagem.

Sócrates raciocina como um monarquista leal. Sua visão fundamental se manifesta em outro trecho das Memoráveis, quando ele pergunta por que motivo, em Homero, o rei Agamênon é chamado “pastor do povo”. E responde a sua própria pergunta: “Porque o pastor deve zelar pela segurança e alimentação de suas ovelhas” (18).

E bem verdade que o bom pastor zela pela segurança e alimentação de suas ovelhas, e até aí há um interesse comum que os une. Mas o objetivo final do pastor é tosquiar as ovelhas para recolher a lã e, por fim, vender-lhes a carne. O destino do rebanho é o mercado de carnes, e o pastor não consulta as ovelhas para decidir se chegou a hora de vendê-las. A lição que os gregos extraíram da analogia do pastor é que as ovelhas não podem confiar no pastor, e uma comunidade não deve subordinar-se à vontade absoluta de um único homem, por melhores que sejam as intenções por ele afirmadas. Eles optaram por tornar-se uma pólis em vez de serem tratados como um rebanho.

Na época de Sócrates, a monarquia já desaparecera das cidades-Estados gregas e só sobrevivia entre os bárbaros ou em regiões semibárbaras como a Macedônia. Aristóteles, examinando as cidades-Estados gregas duas gerações após a morte de Sócrates, pôde afirmar: “Agora não há mais realezas. As monarquias, onde existem, são tiranias” (19).

Em Esparta, que era admirada pelos socráticos, a única cidade-Estado grega onde havia reis hereditários, a autoridade deles não ia além do poder de comandantes militares em tempo de guerra. Mesmo nessas circunstâncias os reis atuavam sob a supervisão dos éforos, os mais poderosos representantes do poder executivo em Esparta. E eles eram dois, cada um de uma família real diferente; a divisão da autoridade e a rivalidade limitavam-lhes o poder.

No resto da Grécia, o termo basileus, “rei”, sobrevivia como uma relíquia anacrônica. Alguns rituais religiosos ainda eram celebrados por sacerdotes escolhidos dentre as antigas famílias reais. Em Atenas havia nove archons, ou magistrados, eleitos anualmente. O archon basileus, “magistrado-rei”, também exercia funções semirreligiosas. Era escolhido entre certas famílias sacerdotais cujos ancestrais foram reis. Mas sua autoridade não era em absoluto real. Ele não era chefe do Estado nem mesmo para fins cerimoniais. Assim, o último vestígio da realeza na Atenas de Sócrates aparece em seu julgamento. No Eutífron de Platão, vamos encontrar Sócrates no pórtico do archon basileus. O velho filósofo está ali para o exame preliminar ao julgamento porque uma das acusações levantadas contra ele era a de impiedade, e o rei-magistrado era o archon que presidia em tais casos.

Mesmo nas duas vezes em que a democracia ateniense foi derrubada na época de Sócrates, os antidemocratas tentaram implantar não a monarquia, mas uma oligarquia bem semelhante ao senado patrício da Roma republicana.

Em Roma, como nas cidades-Estados gregas, a monarquia já tinha sido derrubada pela aristocracia muitas gerações antes da época de Sócrates. A palavra rex, “rei”, era tão desacreditada em Roma que, quando a República foi finalmente derrubada, os novos monarcas não utilizavam o título de rei, mas o de césar, o nome do aristocrata que havia derrubado a república oligárquica. Sócrates e seus seguidores estavam em total descompasso com sua época quando propunham uma forma de monarquia, fosse ela qual fosse.

Notas do Capítulo 1

1. Aristóteles, Política, 1.1.10.

2. Ibid., 2.1.9-10.

3. Ibid., 2.1.2.

4. Xenofonte, 7 vols. (Loeb Classical Library, 1918-1925), Memoráveis, 3.8.10-11(4:229).

5. Ibid.

6. Platão, República, 7-537D7 ss.

7. Aristóteles, Política (Loeb Classical Library, 1932), 1.2.1 (3).

8. Ibid., 3.9.9.

9. Kurt von Fritz, in Oxford classical dictionary, org. H. G. L. Hammond v H. H. Scullard, 2 ed. (Oxford: Clarendon Press, 1970), verbete “Antístenes”.

10. Ateneu, 5.22Id.

11. Diógenes Laércio, Vidas de filósofos eminentes, 2 vols. (Loeb Classical Library, 1935), 6.8 (2:9).

12. Platão, Fedro, 260C.

13. Política, 3.7.2 (Loeb 241-243 e nota 240).

14. Platão, 8 vols. (Loeb Classical Library, 1925-1931), Górgias 516C, 517A (5:497-499).

15. Ibid., 521D (Loeb 5:515).

16. Memoráveis, 4.6.12 (Loeb 4:343-345).

17. Ibid., 3.9.11-13 (Loeb 4:229-231).

18. Ibid., 3.2.1.

19. Política, 5.9.1.

2. SOCRATES E HOMERO

ENQUANTO XENOFONTE ESCOLHEU CIRO, O Grande, como governante utópico, Sócrates remontou aos tempos homéricos para encontrar o rei ideal, evocando a figura lendária de Agamênon como governante arquetípico.

Homero, a bíblia dos gregos, podia ser citado por defensores dos dois lados na maioria das controvérsias, pois ele é tão rico em ambiguidades e contradições quanto a própria Bíblia. E o que se dá em relação à questão de ser a comunidade humana um rebanho, cuja segurança depende do pastor, ou uma pólis, que deve ser governada pelos seus próprios cidadãos.

Homero refere-se a Agamênon como “pastor da hoste” ou do “povo”. Essa expressão, no entanto, era apenas uma saudação elogiosa e convencional, que não deveria ser tomada ao pé da letra, como fica claro quando se levam em conta o comportamento de Agamênon e suas relações tumultuadas com as tropas. Numa passagem, que veremos adiante, Homero de fato afirma o direito divino dos reis. Mas a Ilíada pode ser lida também como uma demonstração dos perigos de se depender da vontade soberana de um monarca. A pólis propriamente dita, é verdade, foi produto de uma era bem posterior. Mas o termo aparece na Ilíada, ainda que não no sentido de comunidade autogovernada. O sentido básico da palavra em Homero parece ser simplesmente o de uma localidade fortificada. O termo é aplicado para referir-se a Troia, mas seus habitantes, curiosamente, são denominados politai na Ilíada, muito embora a cidade fosse governada pelo rei Príamo e sua rainha, Hécuba. Assim, pode-se presumir que politai significava “moradores de uma cidade” e não “cidadãos”, no sentido que o termo adquiriu posteriormente.

De modo geral, a narrativa homérica não se harmoniza com o ideal socrático de governo exercido por “aquele que sabe”, no qual o governante dá ordens e os governados obedecem. Agamênon era comandante-em-chefe das tropas reunidas, mas estava longe de ser seu senhor absoluto. E a liderança não foi, de modo algum, um sucesso. Quando começa a Ilíada, estamos no nono ano da guerra contra Troia, e os gregos ainda não conseguiram invadir a cidade. A única coisa que conseguiram até agora, apesar de todo o esforço empenhado e da luta prolongada, foi saquear as cidades menores que se encontram nos arredores de Troia. No final da Ilíada, Troia ainda não foi conquistada, embora seu herói, Heitor, tenha sido morto.

Agamênon pode até ter sido “um guerreiro valoroso” — outra fórmula homérica que Sócrates adorava citar —, mas como general estava longe de ser um gênio. Tudo indica que ele foi o protótipo do general teimoso que insiste em realizar ataques frontais quando já ficou claro há muito que essa tática não está dando certo, como tantos generais fizeram no impasse sangrento da guerra de trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Troia só caiu muito depois, já na Odisseia, e assim mesmo graças ao estratagema do cavalo de madeira, que conseguiu transpor, por meio da esperteza, os muros que a força não conseguiu derrubar. Mas esse triunfo deveu-se à astúcia de Odisseu, e não à teimosia pouco imaginativa de Agamênon.

Assim, Agamênon não foi o rei absoluto que Sócrates idealizava. Na verdade, o exército grego que sitiou Troia já continha, em forma embrionária, algumas características comuns à pólis e aos modernos sistemas parlamentaristas e presidencialistas. Agamênon era quem presidia, assessorado por um conselho de anciãos composto de aristocratas guerreiros e proprietários de terras. Abaixo desse conselho vinha uma assembleia geral de guerreiros. O que a Ilíada nos apresenta, pois, não é uma monarquia absoluta, mas um governo composto de três poderes, um executivo, um senado e uma assembleia de “comuns”. A autoridade da assembleia homérica era vaga e mal definida. Mesmo o conselho de anciãos tinha de falar com jeito ao lidar com Agamênon. Mas o “pastor do povo” não podia ignorar os desejos de seu rebanho. Não era um Luís XIV; o Estado não era ele. Agamênon não podia simplesmente dar ordens com a certeza de que elas seriam cumpridas. A expressão “pastor do povo” e a palavra usada por Homero normalmente traduzida como “rei” são ambas enganosas. E as palavras traduzidas como “rei” em Homero — basileus, e às vezes anax — na época estavam longe de possuir as conotações que a palavra “rei” adquiriu no contexto do Estado nacional moderno. Aparentemente, todos os grandes proprietários de terra recebiam o tratamento de basileus, “rei”.

O leitor descuidado das Memoráveis pode pensar que “pastor do povo” era uma expressão que Homero reservava para Agamênon, como uma homenagem especial. Na verdade, Homero a emprega para referir-se a qualquer rei ou chefe.

De fato, quando encontramos a expressão pela primeira vez na Ilíada, ela se aplica a um personagem obscuro chamado Druas, que no léxico homérico de Richard Cunliffe aparece como um entre “vários heróis menores” que recebem esse tratamento (2). Agamênon era apenas o rei principal, e apenas o principal “pastor” da hoste grega. Aquiles, Odisseu e Heitor são alguns dos muitos guerreiros notáveis também chamados de “pastores do povo”.

Essa metáfora tem conotações simpáticas, mas a Ilíada encara com ironia o desempenho de Agamênon enquanto pastor da hoste. A narrativa tem início com um episódio em que Agamênon trai a confiança nele depositada, e gira em torno de outro caso semelhante. Quando sobe o pano, a Ilíada nos mostra Agamênon agindo de forma cegamente voluntariosa e duplamente imprudente: 1) ignorando a vontade da assembleia de guerreiros e 2) insultando um sacerdote de Apolo, que era ao mesmo tempo deus da medicina e da peste.

O sacerdote vem para salvar uma filha sua que foi aprisionada pelos gregos. Não é um suplicante qualquer. Traz um resgate considerável; traz os símbolos de sua função sagrada de sacerdote; chega mesmo a oferecer-se para rezar pelo sucesso dos gregos contra Troia se eles lhe devolverem a filha.

Homero narra que os guerreiros se reuniram em assembleia para ouvir a súplica do pai e gritaram em consentimento à sua proposta. Apenas Agamênon — que ficara com a jovem cativa — não concordou, e foi com essa atitude sua que começaram todos os problemas narrados na Ilíada. Agamênon está encantado com sua prisioneira, e chega à insensatez de declarar em público que a prefere à sua rainha, Clitemnestra; não admira que, ao voltar para casa, ela o mate. Ele não apenas rejeita o resgate oferecido como também humilha e ameaça o ancião. Apolo, indignado com essa afronta a um sacerdote seu, faz com que a peste se espalhe pelo acampamento. Em pouco tempo, diz Homero, há piras ardentes por toda parte.

Vemos, então, pela primeira vez, as limitações do poder real na era homérica. Aquiles convoca uma assembleia sem a permissão do rei. A assembleia, após uma discussão acalorada, força Agamênon a abrir mão da cativa, devolvê-la a seu pai e realizar sacrifícios para aplacar a ira de Apolo. A peste termina, e o rei é humilhado. A hoste salvou a si mesma desobedecendo ao pastor. Desse modo, demonstrou que não é um mero rebanho, mas que já contém os germes da pólis.

Mas Agamênon não aprendeu a lição. Para vingar-se e para compensar sua perda, provoca uma nova catástrofe, apossando-se da escrava favorita de Aquiles. Então Aquiles comporta-se de modo tão deplorável quanto o rei. Irritado, não apenas abandona a luta como também se torna traidor, por seu orgulho ter sido ferido. O herói recorre a sua mãe, a ninfa do mar Tétis, e lhe pede que convença Zeus a vingá-lo intervindo na guerra em favor de Troia e contra Agamênon e os gregos. Zeus atende seu pedido enviando a Agamênon um sonho enganador, que promete uma vitória rápida e o leva a uma série de ataques frontais a Troia, os quais se tornam derrotas sérias.

Assim, como se vê, a Ilíada pode facilmente ser utilizada como argumento contra o ideal socrático de realeza. É difícil acreditar que os argutos atenienses, que conheciam Homero na ponta da língua desde a infância, jamais tivessem apresentado a Sócrates esses sólidos argumentos contra o conceito de “pastor do povo”.

Se um democrata ateniense passasse da Ilíada para a Odisseia, encontraria outro argumento homérico contra o ideal socrático de realeza, na cena em que Odisseu se encontra com os ciclopes. Nesse episódio, Homero estabelece a diferença entre um homem civilizado e um homem não civilizado. Nele vemos que, embora a comunidade homérica ainda não fosse uma pólis, já era algo mais que um rebanho.

Os ciclopes aparecem no nono livro da Odisseia. Odisseu e seus homens estão realizando uma longa e tortuosa viagem de volta a sua terra, após a guerra de Tróia. No caminho, chegam à terra dos ciclopes. Cauteloso, Odisseu manda seus homens esperarem numa ilhota próxima enquanto ele e alguns homens de confiança vão explorar a terra. No decorrer dessa exploração, Homero nos dá uma lição rudimentar de sociologia e ciência política, mostrando-nos o que, em sua época, já era considerado marca de civilização.

Odisseu teme encontrar uma criatura dotada de grande força, “um homem selvagem que nada conheça de justiça ou lei” (3) os elementos básicos que caracterizam o homem civilizado. Se examinamos o texto original, compreendemos melhor o significado desses conceitos. As palavras traduzidas como “justiça” e “lei” são dikas e themistas. Essas palavras são as formas plurais de diké e themis. No singular, são termos abstratos: o primeiro designa o costume, a lei ou a justiça, enquanto o segundo refere-se ao que é decente ou correto conforme o estabelecido pelo costume, a tradição ou o precedente. As formas plurais designam os métodos utilizados para resolver disputas numa sociedade organizada. Uma tradução mais literal seria “processos e julgamentos”. O homem não civilizado não conhece tais procedimentos. O que Odisseu encontra na terra dos ciclopes confirma suas apreensões. Ela não é organizada como uma comunidade. Cada um vivia solitário em sua caverna individual, úmida e fedorenta, com suas mulheres, seus filhos e seus rebanhos. Homero afirma que o ciclope não conhecia nem a agricultura nem a navegação, as ocupações básicas dos gregos antigos. Ele é mais monstro do que homem. Tem apenas um olho, no meio da testa larga, e pratica o canibalismo.

Odisseu e seus companheiros são capturados e aprisionados por um ciclope, Polifemo, em sua caverna. O monstro come dois gregos no desjejum e depois mais dois no jantar. O astuto Odisseu, porém, logo descobre seu ponto fraco. Como tantos outros aborígines, Polifemo nada sabia a respeito da bebida, e foi fácil embebedá-lo. Depois os gregos queimaram seu único olho e fugiram.

Homero acrescenta um dado fascinante a sua descrição dos ciclopes. Cada um “era legislador para seus próprios e suas mulheres”, mas não se importava com os outros e, diz Homero, nada sabiam quanto a “assembleias deliberativas”. Assim, esse era mais um aspecto que caracterizava o homem civilizado da época. A expressão não aparece na Ilíada. Nessa obra, o rei consulta seu conselho de anciãos antes de tomar uma decisão e em seguida a anuncia para os guerreiros, os quais podem manifestar sua aprovação ou reprovação, gritando ou murmurando; mas a assembleia de guerreiros normalmente não “deliberava”.

Isso talvez indique que a Odisseia pertence a uma era posterior à Ilíada e reflete uma etapa mais avançada de desenvolvimento político; ou talvez a Ilíada só retrate as assembleias de guerra, mais restritas. Seja como for, a Odisseia nos dá um indício de que, séculos antes de Sócrates, as “assembleias deliberativas” eram uma característica importante da comunidade grega. Temos, então, algo que se aproxima mais de uma monarquia constitucional do que da concepção socrática de uma sociedade em que “aquele que sabe” dá as ordens e os outros obedecem.

Antes de deixar de lado o episódio de Odisseu entre os ciclopes, encaremos a história, por um momento, do ponto de vista do homem “não civilizado”. Há aqui uma lição irônica ainda útil em épocas muito posteriores.

Odisseu desprezava o homem não civilizado porque ele “não se importava com os outros” que não faziam parte de sua família. Mas antes de se encontrar com os ciclopes, o civilizado Odisseu já tivera uma aventura que deixava claro que a preocupação do homem civilizado com os outros era também bastante limitada.

Odisseu relata que, antes de chegar à terra dos ciclopes, seus navios foram levados pelo vento até a cidade de Ísmaro, na terra dos cícones. Diz ele, com naturalidade: “Lá chegando, saqueei a cidade e matei os homens; e da cidade levamos as mulheres” — para vendê-las ou usá-las como escravas, é claro — e então foram embora com “muitos tesouros”. O produto desse saque foi cuidadosamente dividido “entre nós”, afirma Odisseu com satisfação, “de modo que ninguém fosse prejudicado, recebendo menos do que sua justa parte” (4).

Nessa confissão de um ato de pirataria, não há nenhum escrúpulo moral. A única preocupação ética do herói é garantir que seus companheiros não se sentirão fraudados na divisão do butim. Isso não é mais do que a proverbial honra que há entre os ladrões.

Se soubesse do que ocorrera em Ísmaro, Polifemo poderia muito bem perguntar: onde estava aquela “preocupação com os outros” da qual o civilizado Odisseu tanto se orgulhava? Se o ciclope só se preocupava com sua própria família, não era verdade que Odisseu só se preocupava com seus companheiros de pirataria?

Quando Odisseu foi explorar a terra dos ciclopes, queria saber se “eles eram hospitaleiros e tementes aos deuses” (5). Polifemo bem poderia querer saber que espécie de homens eram aqueles, hospitaleiros e tementes aos deuses, capazes de atacar uma cidade de surpresa, sem provocação nem motivo, destruí-la e não sentir nenhum remorso.

Naturalmente, se conhecesse o mundo exterior, Polifemo perceberia que a pirataria era, na época, uma ocupação respeitável, como aliás continuou sendo até relativamente pouco tempo atrás. O que era sir Walter Raleigh senão o pirata favorito da rainha Elizabeth I no Caribe? “Nos princípios da Antiguidade”, escreve o professor Ernest Badian, da Universidade Harvard, no Oxford classical dictionary, a pirataria “não se distinguia claramente do comércio, de um lado, nem da guerra, do outro”.

O ciclope não era totalmente primitivo. Quando Polifemo vê seus visitantes pela primeira vez, ele pergunta: “Estranhos, quem são? De onde vêm por caminhos marítimos? Vêm para comerciar ou singram a esmo os mares como piratas, que vagam arriscando suas próprias vidas e levando a desgraça a homens de outras terras?” (6). A expressão-chave aqui é “homens de outras terras”. As leis da comunidade civilizada só se aplicam dentro dela. Fora de seus domínios, as outras terras podem ser livremente saqueadas. O que foi a guerra de Troia senão uma gigantesca operação de saque?

Na verdade, a lei e a ordem dentro da comunidade podem ter o efeito de intensificar a selvageria reprimida dessa comunidade. A guerra talvez seja uma maneira positiva de liberar os impulsos selvagens fora da comunidade, como especulou Freud após a carnificina da Primeira Guerra Mundial em seu ensaio O mal-estar na civilização. Freud acreditava que os impulsos anárquicos que os homens reprimem para possibilitar a vida em comunidade encontram uma válvula de escape na mortandade em massa da guerra. Então percebemos mais uma vez a verdade contida na observação de Aristóteles segundo a qual o homem, quando aperfeiçoado pela vida comunitária, é o melhor dos animais, mas, quando separado da lei e da justiça, é o mais selvagem (7). Nosso planeta só terá segurança quando também ele se transformar numa pólis, e o homem — inteiramente civilizado, por fim — tornar-se, para empregar um termo presciente do grego antigo, um cosmopolites, isto é, cidadão do mundo. No fundo, Odisseu e o ciclope, o civilizado e o não civilizado, não eram tão diferentes assim. Um, dada a oportunidade, roubava e escravizava seus semelhantes; o outro comia-os no jantar.

Encerramos esta digressão com uma observação jocosa. É de autoria de um grande filósofo irlandês, o falecido W. B. Stanford. Em seu comentário à Odisseia, Stanford mostra que as perguntas feitas a Odisseu pelo ciclope no nono livro são idênticas às dirigidas a Telêmaco, filho de Odisseu, no terceiro livro, quando ele vai a Pilo à procura de alguma pista a respeito de seu pai, há tantos anos desaparecido (8). Lá o sábio Nestor também pergunta a seu visitante se ele é um pirata. Os três versos das duas passagens são idênticos. Mas as circunstâncias são diferentes. E aqui vamos encontrar outra distinção entre o homem civilizado e o não civilizado, segundo os padrões de Homero.

Nestor só fez a pergunta a seus visitantes quando, em obediência às leis da hospitalidade, já havia lhes oferecido comida, e eles, como diz Homero, haviam “se fartado de comer”. Numa nota de rodapé ao trecho correspondente do nono livro, Stanford comenta: “Compare-se a delicadeza de Nestor, que só coloca estas perguntas depois que seus convidados se alimentaram, com a grosseria do ciclope, que as faz logo de saída” (9). O ciclope não era um cavalheiro.

Notas do Capítulo 2

1. Homero, Ilíada, 15.558, 22.429.

2. Ibid., 1.263. Richard J. Cunliffe, Lexicon of the Homeric dialect (Londres, Blackie & Sons, 1924).

3. Homero, Odisseia, 9.317.

4. Homero, Odisseia, 2 vols. (Loeb Classical Library, 1919), 9.40 ss. (1:305).

5. Ibid., 9.176.

6. Ibid., 9.252 ss. (Loeb 1:321).

7. Política, 1.1.12 (Loeb 13).

8. Odisséia, 3.71-74.

9. Homero, Odisséia, org. William B. Stanford, 2 vols., 2‘ ed. (Londres, Macmillan, 1959), 1:357.

3. UMA PISTA NO EPISÓDIO DE TERSITES

HÁ UMA PASSAGEM EM HOMERO, no entanto, que defende a monarquia absoluta. Mas nem Sócrates nem seus seguidores a citam, como seria de se esperar, já que, aparentemente, seria um bom argumento em favor do ideal socrático. Essa omissão curiosa talvez constitua uma pista em relação à posição dos acusadores do filósofo, que até agora não foi percebida.

Fomos levados a reparar nessa passagem quando investigávamos um trecho obscuro das Memoráveis em que Xenofonte, discorrendo sobre o julgamento, refere-se às acusações dirigidas a Sócrates por um “acusador” não identificado. Mas os estudiosos modernos concluíram há muito tempo que essa referência não diz respeito a nenhum dos promotores no julgamento, mas a um panfleto de autoria de um escritor democrata chamado Polícrates, publicado logo após a conclusão do julgamento. Seja como for, os parcos detalhes dessa obra desaparecida que Xenofonte nos apresenta constituem tudo o que sabemos a respeito do ponto de vista da acusação. Eles vêm esclarecer a parte da acusação formal segundo a qual Sócrates havia “corrompido” os jovens.

A palavra “corrompido” pode dar uma impressão falsa. Para ouvidos modernos, parece envolver uma acusação de homossexualismo. Mas a pederastia — uma relação erótica entre um homem e um rapaz imberbe — era socialmente aceita na Grécia clássica, como os diálogos de Platão deixam claro. O verbo usado na acusação — diaphtheirein — pode denotar “destruir”, “corromper”, “seduzir” ou “desencaminhar”. A mesma palavra aparece no Político, de Platão (1) no qual o autor a utiliza no sentido de desencaminhar os jovens politicamente. Os fragmentos de Polícrates transcritos em Xenofonte revelam que a palavra tinha o mesmo significado na acusação a Sócrates. Assim, “subverter” ou “alienar” os jovens seriam traduções modernas melhores do que “corromper”.

Segundo Xenofonte, o “acusador” afirmou que Sócrates “ensinou seus discípulos” a desprezar as leis atenienses, fazendo com que eles “menosprezassem a Constituição em vigor e se tornassem violentos”, ou seja, dispostos a usar a força para derrubá-la. O acusador cita Crítias e Alcibíades como os principais exemplos de jovens corrompidos, e diz que “ninguém causou tantos males ao Estado”. Crítias, como principal figura da ditadura dos Trinta, “foi o mais cúpido e o mais violento”, e Alcibíades, entre os democratas, foi “o mais intemperante e o mais insolente” (2).

Além disso, o acusador afirmou que Sócrates “escolheu os trechos mais imorais dos mais famosos poetas” e os utilizou para ensinar seus jovens discípulos “a serem tiranos e malfeitores” (3).

E uma pena não dispormos do texto da acusação de Polícrates, para podermos ver exatamente quais foram os poetas citados por Sócrates com o fim de alienar os jovens da democracia. Havia alguns famosos poetas aristocratas que poderiam ter sido utilizados para esse fim. Dois que vêm à mente são Píndaro e Teógnis. De fato, na outra única Apologia de Sócrates que chegou até nós e que raramente é lida — a de Libânio, do século IV d.C. —, Píndaro e Teógnis são mencionados entre os poetas que Sócrates fora acusado de citar em sua pregação antidemocrática. Tíndaro cantou odes em homenagem a muitos tiranos famosos. Em suas elegias, Teógnis exprimia o ódio furioso que a velha nobreza proprietária de terras sentia pela classe média emergente, os artesãos e comerciantes que estavam exigindo o direito de votar e de se candidatar a cargos políticos.

Numa de suas explosões de cólera, Teógnis comparava os membros dessa classe a um rebanho de bois e aconselhava:

Pisoteai estes desmiolados! Cravai
Vossos aguilhões, e colocai o pesado jugo
Em seus pescoços! Não achareis em todo o mundo
Uma gente que ame tanto a escravidão (4).

Essa comparação entre a gente comum e um rebanho lembra a linguagem de Sócrates. Seria surpreendente versos tão conhecidos e tão claramente antidemocráticos não serem citados pelo “acusador”. Mas Xenofonte, ao citar os trechos mencionados por Polícrates, refere-se apenas a uma passagem de Homero e outra de Hesíodo. A citação de Hesíodo é tão irrelevante que somos obrigados a concluir que não passa de uma ação diversionária de Xenofonte. Como primeiro exemplo de poesia utilizada para ensinar os jovens a serem “tiranos e malfeitores”, Xenofonte cita o seguinte verso de Hesíodo: “Nenhum trabalho, e sim a indolência, é motivo de vergonha”. Esse verso é de Os trabalhos e os dias, de Hesíodo (5). Trata-se simplesmente de uma exaltação do valor ético do trabalho, sem nenhuma relevância para a questão levantada por Polícrates.

Hesíodo escreveu antes da ascensão da democracia, mas, ao contrário de Homero, que expressava a visão da aristocracia, era um camponês que exprimia os sentimentos de sua classe sofrida, em oposição aos grandes proprietários rurais. Os trabalhos e os dias é o primeiro poema de protesto social, e os “reis” — ou seja, os proprietários aristocráticos — são seus alvos prediletos. Tal como os fidalgos ingleses séculos depois, os proprietários atuavam como juízes de paz, arbitrando disputas entre os arrendatários e os trabalhadores de seus domínios.

Hesíodo contestava a integridade dos proprietários como juízes. Refere-se a eles como “devoradores de subornos” e acusa-os de “oprimirem seus semelhantes com julgamentos desonestos”. Adverte-os de que “vigias” enviados por Zeus andam pelo mundo “envoltos em névoa”, anotando suas transgressões para que o deus lhes dê punição (6). Seria difícil usar Hesíodo para inculcar ideias antidemocráticas.

Apenas a passagem de Homero citada por Xenofonte é pertinente para a acusação contra Sócrates, mas é tão cuidadosamente truncada por Xenofonte que o que tem de significativo é ocultado do leitor. Para entender isso, porém, é preciso voltar atrás um pouco e ver o que a precede e a provoca. O trecho é do segundo livro da Ilíada e diz respeito à corrida dos gregos em direção aos navios, na ânsia de abandonar a guerra e voltar para sua terra.

Como já vimos, Zeus, instigado pela mãe de Aquiles, enviara um sonho falso a Agamênon que o levou a tentar um desastroso ataque frontal aos muros de Troia, para punir o rei por ter humilhado Aquiles, apossando-se de sua escrava. Agamênon, por sua vez, elabora um plano astucioso. Diz a seu conselho que dará ordem de levantar o sítio a Troia e aprontar os navios para a viagem de volta, com o fim de testar o moral de seus soldados. Ele espera que os soldados protestem contra a ordem de levantar o cerco antes de poderem tomar e saquear a cidade.

Se, em vez disso, os soldados corressem entusiasmados para os navios, os conselheiros deveriam, segundo Agamênon, avisá-los a não levar a sério a ordem do rei e voltar para receber novas instruções numa outra assembleia. O resultado da ordem de suspender o cerco é justamente aquele que Agamênon temia. Mal termina de falar, tem início uma corrida louca em direção aos navios. Não apenas os soldados rasos, como também os oficiais — os “notáveis” — participam da correria. Todos demonstram estar fartos daquela guerra prolongada e infrutífera.

Odisseu lidera os conselheiros na tarefa de pôr fim à debandada e trazer o exército de volta para a assembleia. Mas, ao fazê-lo, trata os oficiais de um modo e os soldados de outro. “Sempre que via um ‘rei’, um notável”, escreve Xenofonte, citando Homero, Odisseu “aproximava-se e o detinha com palavras de lisonja.” Mas, quando encontrava “um homem do povo”, tratava o soldado a socos e insultos. “Batia-lhe com o cetro”, diz Homero, “e o repreendia a vociferar.” Odisseu mandava-o sentar-se e ouvir “teus superiores: pois não és guerreiro, e sim um covarde, um inútil, quer na batalha, quer no conselho” (7).

Segundo o acusador, Sócrates interpretava esses versos de Homero “como se o poeta aprovasse que se maltratassem os plebeus e os pobres”. Xenofonte argumenta que Sócrates “nunca disse tal coisa” e que, se o tivesse feito, acharia que ele próprio “mereceria ser maltratado”. Pelo contrário, Sócrates “mostrava-se um homem do povo e um amigo da humanidade”, pois, embora cercado de “numerosos discípulos ávidos”, jamais “auferiu proveito algum” em termos financeiros, porém sempre dava “sem reserva […] a todos”.

Mas Xenofonte estava discutindo as acusações de Polícrates como um advogado de defesa inteligente. Se consultarmos a Ilíada, veremos que Xenofonte omite duas coisas importantes no relato homérico, as quais um democrata como Polícrates certamente teria percebido. A primeira omissão é o final da admoestação de Odisseu aos soldados. Os versos que Xenofonte cita são os de número 198 a 202 do segundo livro. A conclusão da fala de Odisseu, os quatro versos subsequentes, teria constituído um argumento importante para a acusação de Polícrates. Nesse trecho, a democracia é diretamente atacada e — pela primeira vez na literatura ocidental — o direito divino dos reis é afirmado. Esses quatro versos omitidos constituem o clímax e a conclusão da lição que Odisseu estava dando aos soldados. Diz ele:

“E impossível que todos os aqueus sejamos reis aqui,
Não é bom uma multidão reinar; que haja um único senhor,
Um rei, a quem o filho [i.e., Zeus] do mau conselheiro Cronos conferiu
O cetro e o poder de estabelecer a lei, para que ele delibere por seu povo” (8).

Seria impossível encontrar um trecho melhor para uma argumentação antidemocrática em Homero do que este: “Não é bom uma multidão reinar”. Ao povo cabe ouvir; ao rei, mandar. Isso corresponde exatamente à fórmula ideal que o próprio Sócrates afirma em outro trecho das Memoráveis: aquele que sabe deve governar, e outros devem obedecer. Não admira que Xenofonte tenha omitido esses quatro versos.

Há no texto de Xenofonte uma segunda omissão, igualmente importante: a cena que se segue à fala de Odisseu a respeito do direito divino dos reis. Quando já terminou a debandada em direção aos navios e a assembleia já foi reunida, um soldado raso ousa discordar de Odisseu e da doutrina que ele acaba de expor.

Há muitas assembleias de guerreiros na Ilíada, mas essa é diferente de todas as outras. E a primeira e única ocasião em Homero em que um soldado raso se manifesta, exprimindo a posição dos soldados, e insulta o rei, Agamênon, em sua presença. É o surgimento do homem comum na história escrita, a primeira vez em que um homem do povo usa a liberdade de expressão contra um rei; e sua manifestação é reprimida pela força: Odisseu responde a sua fala não com uma argumentação, mas com uma surra.

Nenhum acusador de Sócrates que mencionasse o motim do segundo livro da Ilíada, como o fez Polícrates, deixaria de citar o clímax do episódio. Sem dúvida alguma, constituía um mau exemplo para os jovens aristocratas descontentes e os estimulava a “maltratar os plebeus e os pobres”. Talvez Xenofonte tenha suprimido a passagem por julgá-la um argumento muito poderoso contra sua posição. Em lugar algum ele sequer menciona o nome de Tersites. Mas talvez haja um eco inconsciente desse nome no texto. Xenofonte poderia simplesmente ter negado que Sócrates jamais utilizaria essas passagens de Homero, se era essa de fato a verdade. Em vez disso, a defesa de Sócrates que ele oferece é mais um reconhecimento do que uma negação.

“O que [Sócrates] dizia”, argumenta Xenofonte, “era que os homens inúteis tanto na palavra quanto na ação, incapazes de ajudar o exército, a cidade ou o povo em épocas de necessidade, devem ser reprimidos, ainda que tenham riquezas em abundância, principalmente se são tão insolentes quanto inúteis” (9). Fora a tentativa de demagogia populista contida na expressão “ainda que tenham riquezas em abundância”, isso não passa de uma paráfrase do que já ouvimos Odisseu dizer. Sócrates também está dizendo que os insolentes devem ser “reprimidos”, isto é, impedidos de falar. Odisseu faz o mesmo com Tersites. Curiosamente, a palavra que Sócrates usa aqui no sentido de “insolente” é derivada não do termo mais comum hybris, mas do adjetivo thrasos (“impudente”, “atrevido”), do qual derivou o nome desse protótipo da insolência. Um freudiano poderia argumentar que o nome que Xenofonte estava ocultando acabou se revelando na escolha do adjetivo.

Homero manifesta um preconceito de classe explícito em sua descrição de Tersites. Há em Homero descrições comoventes e carinhosas de pessoas do povo, até mesmo de porqueiros e escravos — desde que elas “conheçam seu lugar”. Em relação a Tersites, que certamente não o conhecia, o bardo aristocrático não manifesta nenhuma compaixão. Nenhum outro personagem de Homero — nem mesmo o ciclope antropófago — é apresentado de modo mais repulsivo do que Tersites.

Os gregos gostavam de heróis belos. Homero apresenta Tersites como um homem tão deformado que chega a ser praticamente um aleijão. Segundo Homero, é o homem mais feio de todo o exército que sitiou Troia (10). Tem “pernas tortas” e é manco; seus ombros são arredondados e curvados para frente; sua cabeça é pontuda e quase calva — nela só crescem alguns pelos ralos. Em suma: é o tipo de homem com quem Helena jamais teria fugido.

O leitor moderno não compreende como Tersites conseguiu ser aceito pelo exército. Um comentador de Homero, o estudioso bizantino Eustátio, aventou que o único motivo pelo qual se permitiu que Tersites participasse da expedição foi o temor de que, se ficasse em sua terra, ele incitasse uma revolução! O fabulista Luciano, ironizando a descrição homérica de Tersites, diz que, chegando ao Hades, o rebelde processou Homero por difamação (12).

Os gregos amavam também a eloquência, e Homero faz questão de dizer que a fala de Tersites era tão desagradável quanto sua aparência física. Segundo Homero, ele falava sem parar e tinha a cabeça cheia de “palavras desordenadas, com as quais insultava os reis”. Não demonstrava graça ao falar (kata kosmon) e estava sempre disposto a dizer qualquer coisa que fizesse os soldados rirem. Homero acrescenta que Tersites era particularmente detestado por Aquiles e Odisseu, pois ele frequentemente os tomava como alvos de seu humor grosseiro. Aparentemente, já era agitador e ativista havia algum tempo.

Quando Odisseu finalmente consegue fazer com que todos se sentem para a assembleia, Tersites é o único que se recusa a calar-se. Embora Homero afirme que a fala de Tersites é desordenada, neste trecho ele fala de modo não apenas corajoso como também sucinto e objetivo a Agamênon.

Tersites zomba do monarca em sua presença:

Filho de Atreu, com o que está insatisfeito agora? Suas cabanas estão cheias de bronze e mulheres, o melhor dos saques que nós, aqueus, lhe damos toda vez que tomamos uma cidade. Ainda cobiças o ouro que porventura os troianos, domadores de cavalos, ainda lhe tragam como resgate por um filho capturado por mim ou algum outro aqueu? Ou alguma jovem para dormir com você, a qual reservarás só para você? Não é correto que você, nosso líder, traga a desgraça para os filhos dos aqueus.

Ou seja, prolongando a guerra ainda mais, por cobiçar mais butim.

Tersites dirige-se então a seus companheiros de armas, chamando-os de “tolos inertes, criaturas vis e vergonhosas, vocês, mulheres aquéias, pois homens não são mais”. Tersites instiga-os a voltar para seus navios, retornar à pátria “e deixar aqui este indivíduo, a digerir seus troféus na velhice e aprender se é capaz de viver sem nós”. Tem-se a impressão de que Tersites se ofendeu ao ouvir Odisseu referir-se aos soldados rasos como inúteis na batalha.

E Tersites, nessa fala, o primeiro a chamar Agamênon de “pastor do povo” — a expressão que Sócrates cita com tanto prazer nas Memoráveis —, mas Tersites está sendo sarcástico. Ele conclui com a acusação mais séria de todas: diz que o rei “desonrou” Aquiles, “homem muito melhor do que ele”, roubando a escrava favorita do herói. Aquiles, aborrecido, não sai de sua tenda, e desse modo Agamênon pôs em risco toda a campanha, alienando o principal guerreiro do exército. O “pastor do povo” traiu suas ovelhas. Sua lascívia revelou-se mais forte do que seu empenho em cumprir suas obrigações de rei.

Odisseu reage com violência. Na frente de toda a assembleia, surra Tersites até fazê-lo sangrar, humilhando-o e ameaçando-o: se Tersites ousar outra vez “pronunciar o nome do rei”, Odisseu o despirá perante a assembleia e o enviará “chorando para os navios velozes”. Assim termina o motim provocado pelo próprio Agamênon, por sua tentativa de testar o moral da tropa com uma informação falsa. E o cerco continua, ainda sem sucesso, no decorrer dos 22 livros subsequentes da Ilíada. E não se ouve mais falar de Tersites e da primeira tentativa de um homem do povo no sentido de exercer a liberdade de expressão (13).

Se voltamos à Ilíada, vemos que o que tanto incomodou Homero e muitos estudiosos posteriormente não é tanto o teor do que Tersites disse a respeito de Agamênon quanto o fato de ter sido um homem do povo quem falou.

Na verdade, o que Tersites diz a respeito de Agamênon no segundo livro da Ilíada não é senão uma repetição do que diz Aquiles no primeiro livro. Nesse trecho, em que os dois “reis” brigam por causa de suas escravas favoritas, Aquiles chama Agamênon de “o mais cúpido dos homens”, “coberto de vergonha”, um beberrão “embriagado de vinho”, um covarde que tem “os olhos (ferozes) de um cão, mas o coração (temeroso) de um veado”. Diz- lhe Aquiles: “Nunca teve coragem de armar-se para lutar com os seus, nem de partir para uma emboscada com os chefes” (14).

Como Tersites, Aquiles também se queixa de que Agamênon fica com o que há de melhor nos saques, enquanto os outros é que lutam (15). Aquiles chega a acrescentar algo que Tersites não ousa dizer — que ele próprio nada tem contra os troianos: “eles jamais roubaram meu gado nem meus cavalos”. Aquiles afirma que só veio lutar na guerra como um favor a Agamênon e ameaça ir embora; e, de fato, passa a maior parte da Ilíada sem lutar, até o livro dezoito.

O principal herói da Ilíada tem um ego hipertrofiado; o orgulho ferido pesa-lhe mais do que a lealdade com seus companheiros de armas. Mas Homero não critica em lugar nenhum a petulância e a teimosia de Aquiles, nem mesmo quando o choramingas — não há termo mais apropriado — vai se queixar à mamãe, a deusa Tétis, e a convence a fazer com que Zeus atue contra os gregos: um ato de traição. A incoerência de Homero em relação aos dois rebeldes revela um gritante preconceito de classe. Ele idealiza o aristocrata e caricatura o homem do povo.

Mas Aquiles não é o único aristocrata a criticar Agamênon na Ilíada. Embora dê uma surra em Tersites por ter falado mal do monarca, Odisseu ataca Agamênon duramente no livro catorze. Quando o rei sugere que fujam para os navios, dizendo: “Não julgo vergonhoso fugir do desastre”, Odisseu, “com um olhar irado sob o cenho”, diz a Agamênon: “Ó homem condenado, quem dera estivesse a comandar algum outro exército, despido de glória, e não a reinar sobre nós” (16). Essa cena está muito longe de constituir uma defesa da monarquia absoluta.

Como em Xenofonte não há nenhuma referência a Tersites, as Memoráveis nada nos informam a respeito da atitude de Sócrates em relação a ele. Mas o Sócrates platônico refere-se duas vezes a Tersites, ambas de modo desdenhoso. No Górgias, quando Sócrates descreve o castigo que aguarda os que praticam o mal após a morte, ele faz pouco de Tersites, considerando-o um criminoso comum que não merece as tormentas eternas reservadas aos malfeitores de grande distinção, culpados de faltas notáveis (17). Na República, quando Sócrates conta a história da viagem de Er aos infernos, Tersites aparece como um bufão, assumindo um corpo de macaco na próxima encarnação (18). Na mesma história, Agamênon opta por renascer como águia.

A reverência por Agamênon manifestada nas Memoráveis evidentemente não é exclusividade do Sócrates xenofôntico. O rei é uma figura igualmente venerável para o Sócrates platônico. No final da Apologia, de Platão, quando se despede de seus juízes, Sócrates afirma que, se houver outra vida, ele antegoza o prazer de conversar com os grandes homens do passado. Entre eles, anseia por conhecer Agamênon. “O que não se daria, senhores”, indaga ele, “para poder questionar o líder daquela grande campanha contra Troia?” (19). No Banquete, Sócrates cita a mesma expressão homérica que usa nas Memoráveis, qualificando Agamênon de “robusto guerreiro” (20). No Crátilo, um diálogo menor que trata da etimologia dos nomes, Sócrates argumenta que o nome de um homem determina sua natureza — uma ideia idiossincrática que veio a inspirar o Tristram Shandy de Sterne. Sócrates encontra no nome Agamênon raízes que indicam que o homem era admirável por sua “paciência e perseverança” (21).

Na República, o Sócrates platônico vai ainda mais longe do que o xenofôntico em sua devoção ao rei. Se Homero mostra que Agamênon não era exatamente virtuoso, Sócrates se propõe a censurar essas passagens da Ilíada, para que elas não gerem desrespeito à autoridade. Cita como trecho a ser omitido a fala em que Aquiles critica Agamênon (22). Na utopia platônica, a literatura deverá inculcar o “autocontrole” (sophrosyne) nos súditos em dois níveis: no sentido de (1) “obedecerem aos governantes” e (2) saberem governar seus próprios “apetites corpóreos”. Aquiles, aparentemente, deu um mau exemplo ao criticar seu rei. Mas Sócrates nada diz a respeito do mau exemplo dado pelo rei que não conseguiu controlar seus “apetites corpóreos” no caso da jovem escrava.

Sócrates estava particularmente ansioso por censurar os versos em que Aquiles refere-se a Agamênon como “embriagado de vinho, com os olhos (ferozes) de um cão e o coração (temeroso) de um veado” (23) juntamente com “outras impertinências em prosa ou verso” da parte de “cidadãos, particularmente dirigidas a seus governantes”. O Sócrates platônico afirma que tais coisas “certamente não são apropriadas aos ouvidos dos jovens”.

No segundo livro da República, Sócrates propõe também que seja censurado o sonho falso enviado por Zeus a Agamênon. Sócrates afirma: “ainda que haja muitas outras coisas em Homero que louvamos, isso não haveremos de aplaudir” (24). Cita essa passagem — juntamente com um sonho falso semelhante enviado por Apolo a Tétis, integrante de uma peça de Esquilo que não chegou até nós — como exemplos de representações dos deuses que não serão permitidas nos palcos nem nos livros escolares da República.

Analogamente, há na República uma referência obscura que (segundo o comentário de James Adam) manifesta contrariedade em relação a certas peças, também perdidas, que fazem troça de Agamênon por não ter o rei conhecimento de aritmética! (25). Assim, Agamênon, como protótipo da figura do rei, deve ser protegido de qualquer forma de crítica.

Imagine-se o que uma tal censura teria feito à Orestéia, de Esquilo. Quando Agamênon ousa trazer para casa sua concubina — a profetisa Cassandra, vinda de Troia —, Clitemnestra mata os dois e exulta, com uma fúria imprópria para ouvidos indelicados: “Eis aqui o homem que me traiu; o amado das jovens escravas de Ílio; e eis aqui sua cativa e profetisa e concubina, sua fiel amante e oráculo, que conhecia igualmente os bancos dos marinheiros. Os dois tiveram o destino merecido” (26). A expressão “conhecia igualmente”, que dá a entender que, na viagem de volta, Cassandra dormiu também com os marinheiros, é uma tradução decorosa do rabelaisiano termo original, isotribes. O sentido literal é o de que Cassandra “esfregava-se igualmente” nos marinheiros. Esse trecho de Esquilo certamente seria censurado no teatro platônico.

Assim, concluímos nosso primeiro argumento na apresentação das divergências filosóficas fundamentais entre Sócrates e Atenas. Ele e seus discípulos encaravam a comunidade humana como um rebanho que precisava ser governado por um rei ou mais de um rei, como ovelhas por um pastor. Os atenienses, por outro lado, acreditavam — como afirmou Aristóteles mais tarde — que o homem era um “animal político”, dotado, ao contrário dos outros animais, de logos, ou razão, e desse modo capaz de distinguir o bem do mal e de se autogovernar numa pólis. Não era uma diferença trivial.

Notas do Capítulo 3

1. Platão, Político, 229B.

2. Memoráveis, 1.2.9-12 (Loeb 4:15-17).

3. Ibid., 1.2.56 (Loeb 4:39).

4. Tradução de Dorothy Wender, Elegias 847-850, in Hesiod and Theoguh (Londres: Penguin Press, 1976), 126.

5. Hesíodo, Os trabalhos e os dias, 1.309.

6. Hesíodo, Os trabalhos e os dias (Loeb Classical Library, 1956), 1.248-264 (21-23).

7. Memoráveis, 1.2.58 (Loeb 4:41).

8. Ilíada, 2.203-206.

9. Memoráveis, 1.2.59 (Loeb 4:41).

10. Ilíada, 2.216-219.

11. Ver o verbete sobre Tersites in Der kleine Pauly (Munique, 1979). Essa versão condensada e modernizada, em cinco volumes, da imensa Enciclopédia alemã da Antiguidade clássica, em noventa volumes, é conhecida como “Pauly-Wissowa”, os nomes dos principais organizadores da obra.

12. Luciano, 8 vols. (Loeb Classical Library, 1960), Histórias verdadeiras 2 (1:325).

13. E extraordinário constatar que o preconceito contra Tersites manifestado por Homero sobrevive até hoje entre os estudiosos. Veja-se a atitude do Oxford classical dictionary, que o descreve como “um indivíduo feio, desbocado, que ofende Agamênon e é silenciado quando leva uma surra de Odisseu”. Acrescenta o OCD: “Com base em sua descrição, trata-se evidentemente de uma pessoa de origem baixa”. O equivalente alemão do OCD é mais severo ainda. Der kleine Pauly qualifica Tersites de “Meuterer, Laesterer und Prahlhans” — insubordinado, difamador e fanfarrão. Sua crítica a Agamênon é rotulada de Hetzrede, a fala inflamatória de um agitador sem escrúpulos. Nem o texto britânico nem o alemão observam que o discurso de Tersites representa a primeira vez em Homero em que um plebeu tenta exercer o direito de livre expressão numa assembleia. Mas no verbete sobre democracia do OCD, o venerável Victor Ehrenberg afirma que “o germe da democracia grega” remonta ao segundo livro da Ilíada. Escreve ele: “A partir de Tersites, passou a haver sempre movimentos contra o domínio dos nobres e ricos, à medida que as faixas mais humildes tentavam obter a cidadania integral”.

14. Homero, Ilíada, 2 vols. (Loeb Classical Library, 1925), 1.224-227 (1:19-21).

15. Ibid., 1.165-168.

16. Ibid., 14.80 ss. (Loeb 2:73).

17. Górgias, 525E.

18. República, 10.620C.

19. Platão, org. Edith Hamilton e Huntington Cairns (Princeton: Princeton University Press, 1971), Apologia, 41B (25).

20. Ibid., Banquete, 174C (52).

21. Ibid., Crátilo, 395A (433).

22. República, 3.389C ss.

23. Ibid., 3.390A (citando a Ilíada, 1.225).

24. Ibid., 2.383A.

25. República, org. James Adam (Cambridge: Cambridge University Press, 1963), 7:522D.

26. Ésquilo, Orestéia, 1429-1443.

Continua…

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