Voluntários servem refeição para os refugiados que chegam à estação de Munique, na Alemanha (Foto: Matthias Schrader/ AP)
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O liberalismo realmente inexistente

Ah!… esses nossos liberais

Uma das coisas mais curiosas é examinar o pensamento dos que se dizem liberais no Brasil e que se assanharam com a vitória de Trump. Esses “liberais”, pelo menos os que comparecem no debate público, são – em grande parte – liberais em termos econômicos e não tão liberais assim em termos políticos (e sim conservadores, quando não autocratas).

Digo isto porque, não raro, vemos tais “liberais” pedindo atitudes mais autoritárias dos Estados. Por exemplo, eles aplaudem Trump por querer barrar a entrada de muçulmanos e reprovam Angela Merkel por ter feito uma política de acolhimento aos refugiados islâmicos.

Aliás, vão além, muito além. Culpam Merkel pela islamização do ocidente, acusam-na de desrespeitar os símbolos pátrios e acham que foi bem feito o tratamento vil – e mal-educado – dispensado por Trump à estadista alemã em recente encontro dos dois chefes de governo nos USA.

Como, para eles, a sociedade não existe por si mesmo (não passa de um epifenômeno), na hora de procurar um ator capaz de ministrar o remédio que preconizam para conter a ameaça islâmica, eles se voltam mesmo para o velho, autoritário e piramidal, Estado, cobrando atitudes duras dos chefes de Estado e de governo. Querem que, pela força, o Estado resolva um problema que é cultural, exarando algum decreto top down. Não lhes ocorre que as sociedades – e só elas – podem, por exemplo, superar o monoculturalismo e o multiculturalismo pela miscigenação cultural.

Claro que acham que isso é impossível, a despeito das tentativas bem-sucedidas que estão emergindo em todo mundo, em parceria ou independentemente dos governos, para a integração; ou melhor: para permitir (ou desbloquear) a interação.

Mas por que deveríamos miscigenar não apenas nossos genes e sim também nossos “memes”? Ora, porque, afinal, mais de 99% dos islâmicos são nossos primos (até o grau 50 e quem o diz é a ciência genética). Sim, eles não são de outro planeta, não compõem outra humanidade (ou desumanidade). Rigorosamente falando, fazem parte da nossa família, em termos de herança genética. E farão parte de nosso futuro, em termos sociais. Exterminá-los – se fosse possível – equivaleria a extirpar uma parte do simbionte social, quer dizer, da pessoa que somos em prefiguração…

É claro que o jihadismo ofensivo islâmico é uma ameaça à democracia, mas o enfrentamento com os grupos terroristas não pode ser o mesmo dispensado aos fiéis da religião islâmica (que já ultrapassam o número de 1,5 bilhões de pessoas e no final deste século serão maioria no mundo) e, muito menos, aos refugiados de países islâmicos em guerra (cujo acolhimento é uma questão de… humanidade).

Sim, o assunto é complexo. De pronto, podemos dizer que terroristas, ateus ou de qualquer religião, não devem ser admitidos em um país democrático, mas o mesmo não se pode aplicar a simples fiéis. Porque não são as religiões dos outros que devem ser combatidas pela nossa, na base do “choque de civilizações” (opondo-se a crença judaico-cristã à crença islâmica) e sim os aparelhos políticos que se conformam para derruir a democracia, sejam eles quais forem. Notadamente, no caso do Islã, as mesquitas e as madrassas que diretamente apoiem o jihadismo ofensivo, devem ser fechadas e seus responsáveis processados (elas poderão ser reabertas quando assumirem novos responsáveis). E as que apoiam indiretamente o jihadismo, fornecendo-lhe qualquer tipo de retaguarda moral ou base material, devem ser pervadidas por políticas inclusivas – públicas, de preferência não estatais – que favoreçam à interação e à convivência com outros pontos de vista, num clima mais ecumênico.

Existem várias experiências, em todos os continentes. Algumas ganharam destaque, como no caso da Islândia, onde os cidadãos ofereceram suas próprias casas para acolher refugiados. Iniciativa semelhante ocorreu na Alemanha. Ganhou visibilidade entre nós o site Meu Amigo Refugiado, em que as pessoas se registravam para convidar um refugiado para passar a ceia de Natal com suas famílias. Em alguns lugares da Europa, estão organizando conjuntos habitacionais baratos para que pessoas de todas as religiões (inclusive refugiados islâmicos) possam morar perto umas das outras e… conviver. Nada – nenhuma diferença convertida em separação, nenhuma ideia ou emoção adversarial baseadas na proteção contra o outro – resiste ao fluxo interativo da convivência social.

Essas iniciativas estão sendo bombardeadas ou dificultadas por governos autoritários (como os de Trump e de Putin) e pela direita estatista – Nigel Farage (Brexit), Viktor Orban (Hungria), Duterte (Filipinas) e Le Pen (França), Jaroslaw Kaczynski (Polônia), Geert Wilders (Holanda) e Norbert Hofer (Austria) e por ideólogos conspiracionistas e autocráticos, como Olavo de Carvalho e seus fanáticos e Jair Bolsonaro e sua turbamulta vil de seguidores no Brasil. Até aí se entende. O que não se entende é que alguns que se dizem liberais repliquem essa ideologia da separação e do “choque de civilizações”.

Se o combate for à religião (ou à “civilização islâmica”) como um todo, instalaremos um estado de guerra no mundo e, aí sim, a democracia estará gravemente ameaçada. Isso não significa passividade diante da ameaça, mas, simplesmente, inteligência democrática: não adotar um remédio pior do que a doença, que além de matar o paciente, mata o médico. É o que querem os autocratas, como Putin: construir um inimigo, dividir novamente o mundo em blocos e reeditar a guerra fria.

Para o trumpismo, porém, essa ameaça não deve ser considerada. Faz sentido: o trumpismo – assim como o putinismo – é uma ideologia da separação. Tanto Trump como Putin precisam da guerra, quer dizer, do estado de guerra (não do conflito violento – posto que a guerra, ao contrário do que se acredita, não é isso -, mas da preparação permanente para o conflito baseada na prevenção contra o outro, contra o diferente, contra o que não está sob controle).

Mas que liberais abracem essa visão de mundo, reproduzindo não apenas o seu “pensar sob comando”, mas o seu emocionar, ah!… isso é inadmissível.

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