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O movimento sofista 4

Começamos a publicar os capítulos do livro de G. B. Kerferd (1980), O movimento sofista (tradução de Margarida Oliva de The Sophistic Movement, Cambridge: Cambridge University Press, 1981, publicada pelas Edições Loyola, São Paulo, 2003).

Os três primeiros capítulos estão disponíveis aqui. Segue o quarto capítulo.

4 – O sentido do termo sofista

O nome sofista está claramente relacionado com as palavras gregas sophos e sophia, comumente traduzidas por “sábio” e “sabedoria”. Conforme a explicação corrente, adotada tanto nos nossos dicionários como em nossas histórias da filosofia, esses termos sofreram uma espécie de evolução, quanto ao seu sentido, de (1) habilidade em uma determinada ocupação, especialmente ofício manual, passando por (2) prudência ou sabedoria em questões gerais, especialmente sabedoria prática e política, para (3) sabedoria científica, teórica ou filosófica. Tentei argumentar, alhures [1], que essa seqüência é artificial e não-histórica, sendo essencialmente baseada em Aristóteles e na sua tentativa de esquematizar a história do pensamento de antes de seu tempo dentro de um quadro ilustrativo de sua própria visão da natureza da filosofia, enfatizando sobretudo a procedência do particular para o universal. Desde o início, sophia era, de fato, associada ao poeta, ao vidente e ao sábio, todos os que revelavam um saber não concedido aos outros mortais. O saber assim obtido não era uma questão de técnica como tal, fosse poética ou qualquer outra, mas conhecimento dos deuses, do homem e da sociedade, ao qual o “sábio” afirmava ter acesso privilegiado.

Do século V a.C. em diante, o termo sophistés é aplicado a muitos desses primeiros “sábios” — a poetas, inclusive Homero e Hesíodo, a músicos e rapsodos, adivinhos e videntes, aos Sete Sábios e a outros antigos sábios, aos filósofos pré-socráticos, e a personagens tais como Prometeu, sugerindo poderes misteriosos. Não há nada de depreciativo nessas aplicações, muito pelo contrário. É a essa respeitável tradição que Protágoras deseja se incorporar na passagem, já citada, do diálogo de Platão, Protágoras (316c5-e5) [2].

Não obstante, Protágoras declarava ser, e era, um profissional. De fato, o profissionalismo dos sofistas, na segunda metade do século V a. C., distinguia-os manifestamente de todos os seus supostos predecessores. O primeiro elemento de seu profissionalismo é o fato de receberem honorários por seu ensino. Segundo Platão, isso era uma inovação em comparação com os que vieram antes deles (Hipp. Mai. 282c6) e é claro que, para muitos, o mero fato de receberem honorários, não o valor dos honorários, é que era inadmissível. Por que isso? Não se reprovava a venda de bens por dinheiro, em Atenas (cf. Platão, Górgias 520d). Poetas, artistas e doutores, todos recebiam honorários. Pindaro, escrevendo logo depois do fim da invasão persa de 480 a. C. (Isthm. II), diz que já se fora o tempo em que os poetas escreviam canções sem receber dinheiro em pagamento – o dinheiro faz o homem! De fato, relata-se que ele recebeu 10.000 dracmas de presente pelo seu poema em louvor de Atenas (Isócrates XV, 166), e Simônides também recebia pagamento por suas odes (Ar. Ret. 1405b23-ss). Para pagamentos de um talento, ou mais, ao médico Demócedes, temos a prova de Heródoto III, 131.

Por que, então? A resposta clássica tem sido que não era o fato de cobrarem honorários que desagradava; era o fato de venderem instrução em sabedoria e virtude. Essas não eram da espécie de coisas a ser vendidas por dinheiro; amizade e gratidão deveriam ser recompensa suficiente (cf. Xen. Mem. I, 2,7-8). Mas é duvidoso que isso teria sido realmente suficiente para separar os profissionais sofistas dos poetas, por exemplo; quando examinamos mais atentamente as repetidas objeções registradas em Platão e Xenofonte, descobrimos que quase regularmente as objeções têm uma outra característica, não muito enfatizada na literatura moderna. O que está errado é que os sofistas vendem sabedoria a todos os que se apresentarem sem discriminação — ao cobrar honorários eles se destituíam do direito de escolher seus alunos. Isso, é dito, envolve prelecionar diante “de todo tipo de gente” (Hipp. Mai. 282d1) — uma expressão tão desdenhosa em grego como em português — e receber dinheiro de quem quer que venha (Xenofonte, Mem. I, 2.6, I, 5.6, I, 6.5, I. 6.13). Uma das conseqüências, se diz, era destituir o sofista da sua liberdade e fazê-lo escravo de todos quantos vinham a ele com dinheiro. Mas é de se duvidar que seria a solicitude pela independência do sofista a base real dessa objeção. Na realidade, nem é mesmo certamente verdadeiro ser esse o caso do ensino sofista. Claramente, no Protágoras, o jovem Hipócrates não está absolutamente seguro de ser capaz de persuadir Protágoras a aceitá-lo como aluno, e espera ansioso que Sócrates o recomende ao grande homem (310d6-e3).

Por conseguinte, é provável que a verdadeira razão da objeção não fosse a preocupação de proteger os sofistas contra o ter de se associar com todo tipo de gente; a objeção era contra todo o tipo de gente poder obter o que os sofistas tinham para oferecer, simplesmente pagando por isso. O que eles tinham para oferecer, nas palavras atribuídas a Protágoras, incluía ensinar o homem a respeito dos assuntos de Estado, de modo que ele pudesse vir a ser uma verdadeira força nos negócios da cidade, tanto como orador quanto como homem de ação; em outras palavras, tornar-se um político eficiente e bem-sucedido (Prot. 319a1-2). Era certamente essa a fonte da poderosa atração exercida pelos sofistas em Atenas, e também do ódio que levou aos ataques pelos autores de comédias, aos processos e, finalmente, à morte do próprio Sócrates, na passagem do século V para o IV.

Uma questão subsidiária, mas difícil, é saber a importância dos honorários recebidos pelos sofistas pelos seus serviços. Aqui, as afirmações gerais que chegaram até nós são conflitantes, e as afirmações particulares são difíceis de interpretar. Somos informados de que Górgias e Pródicos ganhavam notáveis somas de dinheiro, assim como Hípias e Protágoras (Platão, Hipp. Mai. 282b8-283b3), e consta que o rico Cálias pagou “muito dinheiro” a esses mesmos três sofistas (Xen. Symp. I, 5). De Protágoras se diz que ganhou mais dinheiro do que Fídias junto com quaisquer dez outros escultores (Platão, Mênon, 91d). Ao contrário, escrevia Isócrates (XV,155-156):

No geral, não se achará nenhum desses sofistas que tenha acumulado muito dinheiro: alguns viviam em condições de pobreza, outros em condições moderadas. Quem, na nossa lembrança, ganhava mais era Górgias. Ora, ele passava seu tempo em Tessália, quando os tessalianos eram o povo mais próspero da Grécia; viveu uma longa vida e dedicou-se a fazer dinheiro; não tinha domicilio fixo em nenhuma cidade e não pagava nada para as necessidades públicas, nem qualquer imposto; não era casado e não tinha filhos… assim mesmo, quando morreu, deixou apenas mil estáteres [umas 20.000 dracmas].

Nada disso realmente equivale a grande coisa. Em primeiro lugar, não temos meios de saber se as informações são literalmente verdadeiras ou não. Segundo, deveríamos, a esta altura, já estar bastante familiarizados com a maneira como argumentos desse tipo, sobre a remuneração de profissionais tais como médicos, advogados ou professores universitários, tendem a ser conduzidos atualmente — a discussão tende a ser influenciada pelos sentimentos e pelos interesses das partes em questão.

Talvez os números reais pudessem nos ajudar mais. Mas aqui também há claras divergências, e os números poderiam ser colocados em três grupos (1) Pitódoros, filho de Isólocos e Cálias, filho de Calíades, pagaram 100 minas (10.000 dracmas) cada um a Zenão, segundo a afirmação no diálogo que é, provavelmente, pseudo-platônico, o Primeiro Alcibíades (Alc. I, 119a1-6). Segundo fontes posteriores, Górgias cobrava 100 minas de cada aluno (DK 82A2 e 4), e esse era o preço também cobrado por Protágoras, segundo Diógenes de Laércio (DK 80A1). (2) Por outro lado, Sócrates, na Apologia de Platão (20b9), diz que Cálias pagou, a Eueno de Paros, 5 minas pela educação de seus dois filhos; Isócrates cobrava 10 minas (Plutarco, Mor 837d), e Pródicos normalmente cobrava meia mina por uma única preleção (DK 84 Al l). À primeira vista, o segundo grupo representa uma escala muito inferior ao primeiro e isso tem gerado dúvidas quanto aos números mais altos, se não seriam grandemente exagerados [3]. Um terceiro conjunto de números também não nos ajuda muito (3): Hípias teria afirmado que foi uma vez à Sicília, numa época em que Protágoras também estava lá, e, apesar da competição, Hípias fez mais de 150 minas num curto espaço de tempo, inclusive 20 minas numa cidadezinha, e que, de modo geral, seus ganhos constituíram mais do que os obtidos por quaisquer dois outros sofistas.

Duas grandes dificuldades impedem quaisquer inferências confiáveis a partir desses números. Primeiro, está claro que havia uma enorme diferença entre os honorários. Sócrates, na passagem já citada (DK 84A11), depois de nos contar que o preço normal para uma preleção de Pródicos era meia mina, continua dizendo que ele não podia se dar a esse luxo, de modo que só ia às preleções de uma dracma, isto é, de um quinquagésimo do custo. E Isócrates (XIII, 3-4 e 9), depois de dizer que alguns pedem 3 ou 4 minas, acrescenta que outros tentavam reunir o maior número possível de estudantes cobrando preços muito baixos. Segundo, nenhuma informação nos é dada quanto à relação entre o preço, o número de estudantes e a duração do curso, que poderia ser até de três ou quatro anos (Isócrates XV, 87). De modo que, embora possamos desconfiar de que 100 minas de honorário seja alto demais, acho que não podemos ter certeza de que seja simplesmente falso.

Qualquer que seja a verdade a respeito da escala de honorários cobrados, interessa perguntar qual era a importância social de cada honorário em particular. A mina foi calculada como contendo aproximadamente 425 gramas de prata: ao preço da praça vigente em 1978 isso equivaleria a umas 38 libras ou 74 dólares. Maior informação, porém, é dada pela comparação de uma mina, valendo 100 dracmas, com o salário médio de um dia de um artesão, calculado em uma dracma, ou umas 3 ou 4 minas por ano, com base nos registros de pagamento para as construções de templo no final do século V a. C. Isso sugere que o pagamento de quatro ou mais minas por um curso de um ano pode não ter sido considerado particularmente caro para os que podiam pagá-lo e, excepcionalmente, honorários mais altos não seriam impossíveis para um sofista no ápice de suas capacidades e da carreira. Se Pródicos podia realmente ganhar, por preleção, meia mina de cada estudante presente, então o rendimento total seria, no caso de 20 estudantes presentes, 10 minas; e um curso de dez preleções poderia render até 100 minas. Essa inferência seria invalidada se a meia mina não fosse por uma única preleção mas pelo curso todo. Muitos tradutores dessa passagem de fato supõem exatamente isso. Mas a favor da opinião de que era o preço de uma única preleção temos o uso do substantivo singular epideixis, normalmente usado, como veremos, para falar de uma única exposição. De qualquer forma, se se tratasse de um curso inteiro, então uma dracma seria realmente uma soma ridícula pedida por Pródico. Talvez valha a pena notar que, no pseudo-platônico Axiochus 366c1-3 (DK 84B9), preços de uma dracma, duas dracmas e quatro dracmas são mencionados para o que parece ter sido uma única apresentação.

Uma vez os honorários pagos ou prometidos, qualquer que fosse em cada caso, o que acontecia quando um estudante começava a frequentar um sofista? Será conveniente distinguir três aspectos: (1) questões de organização, (2) métodos de ensino e (3) currículos, embora, naturalmente, estejam todos interligados.

Um tipo bem distinto de apresentação era a epideixis ou exposição pública. Hípias fazia essas apresentações regularmente nos jogos pan-helênicos, em Olímpia, no recinto sagrado. Ele se dispunha a falar sobre qualquer assunto, de uma lista preparada de antemão, e a responder a quaisquer perguntas (Hipp. Min. 363c7-d4). Parece que isso teria sido uma programação regular lá (Lysias, XXXIII, 2). Górgias se ofere­cia para falar sobre qualquer assunto no teatro de Atenas (DK 82A1a) e falava também em Olímpia e nos Jogos Píticos, em Delfos (DK 82B7-9). Ocasionalmente, ambos, Hípias e Gór­gias, adotavam as túnicas púrpuras dos rapsodos, como que para enfatizar a sua continuidade com as funções dos poetas dos tempos antigos (DK 82A9). Outras epideixeis eram dadas em praças e prédios públicos em vários lugares de Atenas – ­no Liceu, por Pródicos (DK 84B8), na “escola de Feidostratos”, por Hípias (DK 86A9), talvez em um Ginásio por Górgias (Pla­tão, Gorg. 447a1 -b3). Ainda outras performances epidícticas eram dadas em casas particulares, por exemplo a de Cálias, no caso de Pródicos (DK 84B9).

Uma epideixis era normalmente uma única preleção. Segundo Diógenes Laércio IX, 52 (DK 80A1), Protágoras tinha sido o primeiro a introduzir “debates de argumentos” (logõn agõnas), e isso constituiu um dos pontos de partida para a elaborada teoria proposta por Gilbert Ryle, que merece ser mencionada aqui [4]. Segundo Ryle, elas constituíam o que ele chamava de “assembleias erísticas”, ou debates públicos en­tre oradores concorrentes; a seu ver, os primeiros diálogos de Platão eram dramatizações, virtualmente minutas do que se realizara nas assembleias erísticas, e que foram, primeiro, recitados em público, com Platão fazendo a parte de Sócra­tes. No que concerne a Platão, simplesmente não há prova alguma que sustente essa teoria, e as probabilidades são fran­camente contrárias.

Não é impossível que houvesse, algumas vezes, debates públicos e confrontações desse tipo entre sofistas. Uma prova disso talvez se encontre em Hipócrates, De Natura Hominis 1, onde se lê que quando os mesmos homens se opõem um ao outro (antilegontes), diante dos mesmos ouvintes, nenhum deles é vitorioso sucessivamente três vezes com os seus argumentos, mas ora prevalece um, ora outro, e ora aquele de língua mais desembaraçada diante da multidão. Mas não é certeza que isso se refira a qualquer debate real, visto que o mesmo debate dificilmente se repetiria três vezes publicamente. A referência deve ser simplesmente ao efeito imprevisível e inconcludente de argumentos opostos quando apresentados a sucessivos auditórios. A natureza desses “argumentos opostos” é discutida mais abaixo. O que a frase agõn logõn significa é apenas o tipo de conflito entre argumentos encontrados em todos os casos de antilógica, escritos ou não, em público ou em particular (ver DK Vol. II, 292.8, Platão, Prot. 335a4), tal como foi corretamente compreendido por Guthrie [5]. Se debates públicos formais se realizavam de vez em quando, não parece que eram uma parte importante da atividade sofista. O que é provável ter sido mais freqüente era o tipo de debates descritos no Protágoras, de Platão, e ainda outros que eram essencialmente exercícios didáticos, internos à situação de aula. Falaremos mais disso, em breve, quando abordamos os “métodos de ensino”.

A principal instrução dos sofistas, contudo, não era dada, com toda a certeza, nem em preleções públicas, nem em debates públicos, mas em classes menores, ou seminários, como o descrito na casa de Cálias quando o jovem Hipócrates vem buscar conhecimentos com Protágoras. Aqui, Hípias estava sentado numa cadeira no pórtico, discursando para um grupo de ouvintes, aparentemente sobre a natureza e questões de astronomia, e respondendo a perguntas. Pródicos está numa despensa convertida em sala de aula, falando em voz alta e retumbante, enquanto Protágoras anda de um lado para outro no pórtico de entrada, acompanhado por toda uma multidão de atenienses e estrangeiros pressurosos à sua disposição. Muitos desses tinham deixado suas cidades para acompanhar Protágoras nas suas viagens; se, nesses casos, a pensão era suprida por Protágoras, isso explicaria por que alguns de seus preços eram tão altos. Certamente parece haver aí certa ênfase na íntima associação do professor com o aluno, numa espécie de viver junto como parte do processo de educação. O resultado disso terá sido, naturalmente, que os estudantes ganhavam não só com o íntimo contato com a mente e a personalidade do sofista, mas também com o estímulo intelectual da associação de uns com os outros, num grupo de jovens, todos interessados nos mesmos estudos. Sem dúvida esse era um dos motivos da intensa excitação que podemos suspeitar no jovem Hipócrates ante a perspectiva de entrar para o grupo de estudantes associados a Protágoras; uma excitação tão intensa que ele não pode esperar o tempo normal, mas vai à casa de Sócrates, todo nervoso e agitado com suas emoções, quando Sócrates ainda está na cama.

Isso leva, naturalmente, à (2) questão dos métodos de ensino. Primeiro, havia a preleção preparada sobre um determinado tema. Algumas delas eram essencialmente exercícios retóricos sobre um tópico mítico, tais como as obras existentes de Górgias, Helena e Palamedes. Mais diretamente relacionado com o treinamento dos futuros oradores nos tribunais, ou nas assembleias, eram os exercícios retóricos do tipo que chegou até nós na coleção das Tetralogias de Antífon — cada uma delas consiste em um conjunto de quatro discursos: discurso do acusador, resposta do defensor, depois um segundo discurso de cada lado. São como que modelos esquemáticos de discurso; a segunda Tetralogia trata o tema já mencionado — a questão da responsabilidade quando um rapaz é acidentalmente atingido por um dardo quando estava como espectador num ginásio. É claro que exemplos de discurso desse tipo eram dados para os estudantes estudarem e imitarem.

Cícero, no Brutus (46-47), nos presta mais informações valiosas que extraiu de uma obra perdida de Aristóteles, provavelmente sua coleção de antigos manuais de retórica conhecidos como a Technõn Synagogé:

Protágoras preparava discussões escritas de assuntos importantes, agora chamados lugares-comuns (loci communes). Górgias fazia o mesmo, compondo elogios e invectivas contra determinadas coisas, porque considerava que era especialmente função do orador ser capaz de aumentar o mérito pelo louvor e diminuí-lo de novo pela invectiva. Antífon de Ramnonte tinha composições semelhantes escritas por extenso.

Não há por que duvidar de que sejam lugares-comuns desse tipo que os alunos de Górgias eram obrigados a aprender de cor (DK 82B14), em vez de discursos inteiros como às vezes se afirma, e é de se supor que seriam, depois, desenvolvidos em exercícios práticos sob a supervisão do mestre.

Isso a que Cícero se refere, em latim, como locus é, em grego, o topos ou “lugar”; no seu sentido mais geral é provável que originalmente significasse a posição ou ponto de vista a partir do qual se ataca o oponente ou se defende a própria tese. Outros, contudo, restringem-no a designar simplesmente° lugar onde o orador encontra um argumento necessário. Aristóteles, no seu tratado Tópicos, apresenta uma espécie de cartilha de dialética, mostrando como se pode defender uma tese tomando como pontos de partida premissas apropriadas que já eram geralmente aceitas. Tópicos são, para ele, linhas de argumento, tais como argumentos tirados dos contrários, argumentos tirados de definições e argumentos tirados de enganos. Sua abordagem é formal, e seus tópicos não são os mesmos que os loci communes a que se refere Cícero. Mas a conclusão do Sophistic Elenchi mostra que ele estava bem consciente da existência deles também, e seu Retórica II, 23 dá exemplos, tais como a citação de Eurípides, do Tiestes: “Se os homens têm o hábito de dar crédito a afirmações falsas, deve-se também crer no contrário, que os homens muitas vezes descrêem do que é verdadeiro”.

Muitos desses lugares-comuns eram de caráter antitético, e parece que se faziam coleções escritas deles. Protágoras escreveu uma Techné Eristikõn ou Arte de Erística, que era igual aos dois livros conhecidos como Antilogiai ou Antilogikoi, ou semelhante a eles, mas distinta deles, e há boas razões para supor que um dos dois, ou ambos, continham “lugares comuns” em forma antitética, como sugere o nome Antilogiai, prontos para ser usados pelos estudantes, ou na vida real. Quantas dessas coleções de passagens pode ter havido, não sabemos. Mas certamente havia outras, e Platão se refere também à prática de Eueno de Paros (DK 80A26), que inventou Insinuação, Louvores Indiretos e, como dizem alguns, Censuras Indiretas, compondo-as em verso, para ajudar a memória, presumivelmente mais como exemplos para os alunos do que para que ele mesmo pudesse se lembrar.

Um outro método de ensino muito usado era o de pergunta e resposta. Este era freqüentemente associado a um outro tema, a habilidade de falar de maneira breve. Assim, ambos eram considerados a marca do homem que conhece a verdade sobre as coisas, no tratado conhecido como o Dissoi Logoi 8.1 e 8.13 (DK 90). Em vários dos diálogos de Platão, Sócrates é apresentado fazendo objeções a longos discursos e exigindo respostas breves às perguntas. No Protágoras, ele enfatiza bem que Protágoras é igualmente hábil e à vontade em cada um desses dois métodos de ensino (329b1¬5, 334e4-335a3), sendo que poucos eram os que tinham o domínio do segundo método. Exatamente a mesma asserção é feita a respeito dele mesmo, em outro lugar, por Górgias (Gorg. 440c1-8) e, possivelmente, a respeito de Polo (461d6-462b3). Somos informados, no Fedro (267a 6-b9), que ambos, Tísias, o retórico siciliano que tinha ensinado Górgias, e o próprio Górgias

compreendiam que probabilidades merecem mais respeito do que as coisas que são verdadeiras, e além disso faziam com que as coisas pequenas parecessem grandes e coisas grandes parecessem pequenas pelo poder da linguagem, e coisas novas parecerem antigas e vice-versa, e descobriram tanto a concisão em argumentos como tra­tamento muito longo sobre todas as coisas. E, quando Pródicos ouviu isso, riu e disse que ele, e só ele, tinha descoberto o que a arte exige dos discursos — nem longos, nem curtos, mas moderados… Mas estamos esquecen­do Hípias? Acho que o homem de Elis também juntaria o seu voto ao de Pródicos.

O testemunho dessa passagem é importante por vários motivos. Mostra que Platão sabia que havia dois métodos reconhecidos de instrução, no período sofista. Mais do que isto, porém, mostra que havia debate sobre os seus respectivos méritos, entre os chamados sofistas. As referências ao poder de mudar o modo como as coisas aparecem, trocando a sua importância, combina claramente com a técnica do argumento sofista. Como se verá abaixo, no seu devido tempo, essa é a técnica de transformar o argumento mais fraco no mais forte. Como vimos, a partir de outro testemunho, antes de citar a passagem de Fedro, o método de falar brevemente estava muito claramente relacionado, por Sócrates, ao méto­do de pergunta e resposta (ver Prot. 329b3-5, 334d4-7, 335a6, b1-2) — de fato, é de se perguntar como poderia ter sido di­ferente, sobretudo com um sofista, o menos inclinado, entre todos os homens, a querer falar brevemente, na discussão, e depois ficar calado. Conseqüentemente, não é plausível a sugestão [6] de que a brevidade no discurso de Protágoras e Górgias era simplesmente um estilo lacônico, “de pôr uma coisa no menor número possível de palavras”, e não uma técnica de investigação. No mínimo, se não era uma técnica de investigação, era certamente uma técnica de argumentação e de ensino.

Eis um assunto que, para alguns, oferece muita matéria a ser discutida. Pois a técnica em questão é a base do que conhecemos como a tradição socrática em educação; na realidade, Diógenes de Laércio recorda a tradição segundo a qual Protágoras foi o primeiro a desenvolver o método socrático de argumentação. O que foi considerado uma tentativa de roubar de Sócrates o crédito por esse feito suscitou, talvez inevitavelmente, forte sectarismo. É o que vem à tona, muito claramente, na discussão de Henry Sidgwick [7]. A seu ver, se Protágoras tivesse realmente inventado a disputa metodológica de perguntas e respostas curtas, seria “absolutamente incrível” que pudesse jamais ser representado assim como o representa Platão no diálogo que leva o seu nome. Ele estava inclinado a pensar que a arte de disputa, mais tarde atribuída aos sofistas em alguns dos diálogos de Platão, tais como o Eutidemo e o Sofista, originou-se inteiramente com Sócrates, e que ele é totalmente responsável ao menos pela forma dessa “segunda” espécie de sofistica.

Essa opinião é freqüentemente citada com aprovação, seja com ou sem restrições [8]. Que eu saiba, a mais cuidadosa discussão recente dessa questão é a de Norman Gulley [9]. Ele tem consciência, eu diria, de que a opinião de Sidgwick simplesmente não se sustenta, e que os sofistas realmente desenvolveram um método de argumentação por pergunta e resposta. Esta, eu diria, é a única opinião possível com base no testemunho que temos. Mas Gulley se sente obrigado a reforçar a conclusão o mais possível, argumentando da seguinte forma: o procedimento dos sofistas era provavelmente um desenvolvimento bastante tardio, influenciado, na sua formulação, pelo método de exame por perguntas e respostas de Sócrates. É provável que qualquer elemento de questionamento no método de Protágoras fosse um elemento quase incidental, e tivesse uma importância mais dramática do que filosófica. Portanto, conclui ele, seria mais prudente seguir Platão e chamar o método de Sócrates de “dialético” em contraste com o método “erístico” dos sofistas.

O contraste entre os termos “dialética” e “erística” será discutido mais adiante. Quanto ao resto das controvérsias mencionadas acima, simplesmente não há nenhum indício, nada que possa sugerir que o método de Protágoras, e dos outros sofistas, fosse posterior ao de Sócrates. Mas temos motivo para associar o método de Protágoras com a sua doutrina dos Dois Logoi, um oposto ao outro. De fato, Platão, no Sofista, numa passagem a ser discutida logo mais (232b), destaca um aspecto como distintivo de todos os sofistas como tais, a saber, que eles eram Antilogikoi, que opunham um logos a outro. Isto significa que o que estamos chamando de método de Protágoras tem fundamento na própria teorização de Protágoras, e isso certamente sugere que é mais provável que o método seja mesmo dele do que simplesmente derivado de Sócrates. Portanto, a seguinte esquematização [10] do “método de Protágoras” tem considerável plausibilidade, embora em seus detalhes vá um pouco além dos testemunhos: (1) um estilo de exposição formal seja na preleção ou no manual, (2) troca oral num pequeno grupo de discussão informal, e (3) a formulação antitética de posições públicas e o estabelecimento de princípios a serem seguidos pelos membros do grupo. O que podemos dizer com certeza é que temos todos os motivos para atribuir a Protágoras o uso de um tipo de método tutorial para suplementar exposições estereotipadas, e que não há razão para supor que isso se tenha originado com Sócrates.

Por isso, para resumir, eu diria que em certo sentido o problema está longe de ser tão importante quanto tem parecido. O método socrático, mesmo que possa ter se originado com Sócrates, não obstante originou-se a partir de dentro do movimento sofista, porque o próprio Sócrates fazia parte desse movimento. Uma vez reconhecido que outros sofistas, além de Sócrates, usaram, de fato, o método de pergunta e resposta, e isso certamente temos de reconhecer, então o grau de originalidade de Sócrates e o grau em que ele foi influenciado pelos outros sofistas são, ao mesmo tempo, uma questão sem resposta e também de importância subordinada, sob todo e qualquer ponto de vista que não seja o do sectarismo socrático.

Passo, agora, (3) para os currículos ensinados pelos sofistas, e a série de estudos por eles proposta. De vez em quando, no passado, fizeram-se tentativas de argumentar que os sofistas estavam totalmente, ou predominantemente, preocupados com uma única área de estudo e de ensino. E essa preocupação era, então, tida como a marca distintiva de um sofista — a retórica como ideal educacional, a oposição entre natureza e convenção, sucesso político, o ideal de educação em geral, rejeição da ciência física, recusa da religião, a visão humanista do homem como centro do universo, o homem como um personagem trágico do destino. Todos esses, cada um por vez, ou em combinação, têm sido sugeridos por diferentes especialistas modernos, em épocas diferentes. As referências reais que temos a respeito do ensino sofista sugerem que ele cobria uma faixa extremamente larga; em todo caso, a questão é em parte complicada pela necessidade de decidir de antemão exatamente que personagens devem ser incluídos e quais devem ser excluídos do título de sofista. Depois há a dificuldade da não-sobrevivência dos escritos sofistas. É claro que eram realmente numerosos, e às vezes se diz que, de modo geral, desapareceram de circulação em apenas algumas décadas de sua produção. Afinal de contas, sugere-se, eles não eram principalmente eruditos e sua obra educacional mais séria era destinada a homens vivos, não a futuros leitores. Assim diz Jaeger, na sua influente obra Paideia (Vol. I, trad. inglesa de 1939, p. 302), que foi citada com aprovação por Untersteiner.

Acerca disso deve-se dizer, como acerca de tantas das afirmações gerais regularmente repetidas sobre os sofistas, que é apenas em parte verdadeiro. Para demonstrá-lo, basta mencionar alguns fatos. Quanto a Protágoras, os manuscritos de Diógenes Laércio dão uma lista de “obras existentes”, compreendendo 12 títulos, e a lista original de Diógenes pode ter sido mais longa. É natural supor que essa lista venha de um catálogo de biblioteca, talvez a de Alexandria. Uma outra obra sua parece ter sido arrolada no chamado catálogo Lamprias, de Plutarco. Porfirio, no século III d.C., encontrou, por acaso, uma cópia de uma outra obra e afirma ter resumido seus argumentos (DK 80B2); e temos uma peça de crítica literária de Homero, feita por Protágoras, num fragmento de papiro de Oxyrrhynchus de não antes do século I d.C. (DK 80A30). Por outro lado, é provável que o chamado novo fragmento de Protágoras, publicado em 1968, extraído de um comentário bíblico por Dídimo o Cego, seja simplesmente oriundo de um tipo qualquer de obra doxográfica cética, e não diretamente dos escritos de Protágoras. E isso mesmo provavelmente acontece com a valiosa nova informação sobre Pródicos, encontrada em um outro dos comentários de Dídimo [11]. Mas quanto a Antífon, a nossa principal informação, de fato, vem de duas peças distintas, na série dos Oxyrrhynchus Papiri, o que significa que sua obra principal era conhecida e copiada no Egito. Se Antífon, o sofista, pode ser Identificado com Antífon de Ramnonte, temos, naturalmente, além disso, a coleção existente dos discursos conhecidos como as Tetralogias, junto com dois outros discursos. A identificação foi considerada incerta, por Hermógenes, no final do século II d. C., porque o estilo ou, melhor, a forma literária dos escritos do sofista era bem distinta. Isso implicaria que ele tivesse lido um ou mais deles; de fato, uma extensa citação do Da Concórdia foi feita por João Estobeu por volta da metade do século V d. C. Quanto a Górgias, temos os dois remanescentes Encomia e dois sumários do seu Sobre a Natureza; um deles, o de Sexto Empírico, pertence ao final do século II d.C. Jâmblico, por volta de 300 d. C., pôde fazer extensas citações do tratado, que passou a ser conhecido como o Anônimo Jâmblico (DK 89). Um catálogo de Memphis, do século III d. C., preservado num papiro de S. Petersburgo, continha o título de uma obra de Hípias (DK 86B19); e um tratado de Pródicos, Sobre a natureza do homem, parece ter sido conhecido por Galeno, no século II d. C. (DK 84B4).

Pelo visto, parece que um número considerável de escritos sobreviveu por um bom tempo. No que os sofistas foram menos afortunados do que outros, entre os pré-socráticos, foi na virtual ausência de relatos doxográficos. Provavelmente a principal razão disso foi a sua rejeição, como pensadores, por Aristóteles. Isso significa que foram virtualmente excluídos da série de sínteses encomendadas à escola de Aristóteles, que foi uma importante fonte de informação subsequente. Eles provavelmente foram incluídos na sua síntese de escritos retóricos e esta é pelo menos uma razão pela qual a tradição subseqüente acentuou tão pesadamente este aspecto da obra deles. A geral omissão deles na tradição doxográfica, unida à opinião platônica e aristotélica de que seu pensamento e seu ensino eram falsos, explica por que foram, de fato, virtualmente ignorados pela cultura helênica, e por que mesmo essas suas obras que sobreviveram não eram lidas. No período imperial, só estavam preparados para levá-las a sério os membros do chamado Segundo movimento sofista, iniciado com o século II d. C. Entretanto, esse foi um movimento que realmente estava mais interessado em linguagem e retórica do que em filosofia. No século III d. C., Flávio Filostratos, membro do círculo intelectual da imperatriz síria Júlia Doma, escreveu seu Vidas dos Sofistas, no qual incluiu Górgias, Protágoras, Pródicos, Polo, Trasímaco, Antífon e Crítias. Mas, na realidade, parece que ele viu apenas as obras dos dois últimos da lista, e seu interesse quase que exclusivamente retórico fez com que não dissesse nada acerca das doutrinas, mesmo quando a informação sobre elas lhe era acessível, como por exemplo a doutrina Homem-medida de Protágoras.

O currículo da educação sofista não começava do nada — seguia-se ao término do estágio primário. Segundo Esquines, o orador, foi Sólon quem, no início do século VI a. C., tornou compulsório o ensino da leitura e da escrita em Atenas (Esquines, In Tim. 9-12). Por volta da metade do século V e, provavelmente, mais cedo, havia um sistema bem estabelecido de escolas primárias. Freqüentar a escola era o normal para os meninos nascidos livres, embora não haja prova de que a freqüência escolar fosse obrigatória. A ampliação da educação para toda a sociedade ateniense que isso implicava não foi popular entre os que olhavam para o passado como para uma época de maior privilégio aristocrático nessas questões. Píndaro (01.II.86-88) opunha aqueles cuja sabedoria vem por natureza (família e nascimento) àqueles que tiveram de aprender. Embora não se saiba ao certo a quem ele estava se referindo, pode-se, com razão, tomar isso como um lance na controvérsia Natureza-Educação, que era importante no período sofista (cf. também sua ode Nemeana, III, 41). Se areté, ou excelência, pode ser ensinada, então a mobilidade social é imediatamente possível; e é claro que Protágoras estava interessado exatamente nessa controvérsia Natureza-Educação quando escreveu: “ensinar exige ambos, Natureza e Prática” (DK 80B3; cf. B10).

Na escola primária, o sistema normal de educação consistia em três partes, cada uma com o seu próprio professor especialista. O paidotribés era responsável pela educação física e pelas atividades esportivas; o citharistés pela música. Em terceiro lugar, o grammatistés ensinava leitura, escrita e gramática e seus alunos tinham de ler e memorizar escritos dos grandes poetas, Homero, Hesíodo e outros, escolhidos por causa da sabedoria moral que continham (cf. Platão, Prot. 325d7-326a4).

Esse era o tipo de educação já adquirida pelo estudante que se entregava a um sofista para maior instrução. Não havia um currículo sofista padrão de estudos, como tem sido repetidamente apontado por especialistas modernos. Mas há algum indício a sugerir que também pode não ter havido tanta diversidade como geralmente se supõe. Pois, quando indagado por Sócrates sobre o que o jovem Hipócrates iria aprender com ele, a resposta de Protágoras, dada por Platão (Prot. 318d7-319a2), é esta:

Quando Hipócrates vier a mim, não será tratado como seria se fosse a qualquer outro sofista. Pois os outros causam danos aos que são jovens; quando saem dos estudos especializados, eles os pegam outra vez contra a sua vontade e os lançam de novo em estudos especializados, ensinando-lhes cálculos matemáticos, astronomia, geometria, música e literatura — e ao dizer isso, olhou para Hípias —, mas se vier a mim ele não estudará nada mais além daquilo que veio aprender. E o assunto é boa política: em negócios particulares, como governar sua própria família do melhor modo possível; e, nos negócios públicos, como falar e agir mais eficazmente nos negócios da cidade.

Supõe-se, freqüentemente, que Protágoras esteja simplesmente ridicularizando um método de instrução que era peculiar a Hípias. Poderia ser, mas não é o que Protágoras diz. Suas palavras são bem claras — o que ele está rejeitando é a abordagem de todos os outros sofistas, todos os que, ele dá a entender, ensinam estudos especializados (318d8 e 9). É verdade que referências, em outro lugar, sugerem que o programa anunciado por Protágoras não era só seu, mas, em certo sentido, representava o que era ensinado por outros sofistas tanto como por ele mesmo (cf. Mênon 91a1 -b8, Gorg. 520e2¬6, Rep. 600c7-2, Xen. Mem.1, 2.15). Mas há igualmente prova de que o tipo de conhecimento ensinado por Hípias era aprendido com outros sofistas também. De modo que Protágoras fez um ataque detalhado e aparentemente técnico contra os geômetras (DK 80B7). Uma questão que, sabemos, foi de grande interesse durante todo o período era o problema da quadratura do círculo, que preocupava Anaxágoras (DK 59A38) e que Antífon afirmava ter descoberto como fazer pelo método da exaustão. Temos sorte de ter um relato minucioso de sua proposta, preservado por Simplício (DK 87B13). O método, é claro, está baseado num engano, e Aristóteles podia, com razão, afirmar que ele não está baseado em princípios geométricos sólidos. Não obstante, era uma tentativa de resolver o problema. Ao próprio Hípias se atribuía a descoberta de uma curva, a quadratrix, usada na tentativa de fazer a quadratura do círculo, e também a trissecção de um ângulo. É natural supor que quando, no Mênon, Sócrates passa a obter respostas de um menino escravo, por meio de um diagrama, sem dúvida desenhado na areia, ele esteja seguindo um método bem conhecido de ilustrar problemas geométricos com desenhos. Que havia discussões geométricas nos círculos sofistas está bem atestado pela observação casual de Sócrates, naquele diálogo (85b4), dizendo que a linha desenhada de canto a canto através de um oblongo é chamada de diagonal pelos sofistas. Como esta é apenas a segunda vez que a palavra diametros, em lugar de “diagonal”, é encontrado em grego (a primeira vez é em Aristófanes, As rãs 801), é provável que a palavra fosse um termo técnico relativamente novo e pouco familiar — na verdade, não é impossível que a palavra tivesse, realmente, sido inventada por um dos sofistas. No caso da astronomia, temos uma prova muito forte no Nuvens de Aristófanes. Aí, Pródicos é descrito como um tipo do “sofista de ar superior” (meteorosophistes) e Sócrates é mostrado num palco, balançando-se num tipo de cesto que lhe possibilita ver mais claramente os objetos no céu que ele está ocupado em contemplar.

Diz-se, de vez em quando, que os sofistas simplesmente não estavam interessados em especulações físicas. Se excluirmos pensadores como Empédocles, Anaxágoras e Demócrito das fileiras dos sofistas, então é verdade que nenhuma contribuição teórica importante veio do resto. Mas é igualmente claro que eles de fato conversavam regularmente sobre questões físicas. O interesse por questões físicas, tanto nas discussões como nos seus escritos, é de fato atestado por Cícero (DK 84B3) em relação a Pródicos, Trasímaco e Protágoras. Xenofonte procura defender Sócrates e o faz afirmando que Sócrates nem mesmo falava sobre os tópicos discutidos por muitos dos sofistas, a saber, a natureza do universo, como surgiu o cosmo, e as leis essenciais que governam os corpos celestes, argumentando que os que pensavam a respeito dessas questões tinham perdido o juízo (Mem. I, 1.11). Aqui Xenofonte está apelando, sem dúvida, para o testemunho do Fédon para defender Sócrates contra a ideia, oriunda de As nuvens, de que ele estava interessado em ciências físicas. Mas ele de fato afirma que Sócrates era mais ou menos o único a evitar tais tópicos. Sexto Empírico atribui a Protágoras uma doutrina de emanações físicas semelhante à de Empédocles e dos atomistas (DK 80A14), e Éupolis, o poeta cômico, o satirizou por seu interesse por questões físicas (DK 80A11). Górgias também estava interessado na teoria de Empédocles sobre poros e emanações (DK 31A92 e 82B5). Parece que ele teria dito que o sol era uma massa incandescente (DK 82B31) e foi representado, no túmulo de Isócrates, fitando uma esfera astronômica (DK 82A17). De Pródicos se diz que discutiu os quatro elementos identificando-os com deuses e também com o sol e a lua como a fonte da força vital em todas as coisas, qualificando-se, assim, para um lugar ao lado de Empédocles e Heráclito. (Epifânio, Adv. Haeres. III, 2.9.21 = Diels, Doxography Graeci, 591). Há, provavelmente, uma referência às suas teorias em Aristófanes, Os pássaros 685ss. Além disso, foi-lhe atribuída, por Galeno, uma opinião particular sobre a natureza do catarro (DK 84B4).

É relevante, aqui, a passagem no Sofista de Platão (232b11-e2), mencionada anteriormente, onde, depois de sugerir que o sofista se caracteriza por ser um antilogikos, o Estrangeiro Eleático pergunta qual é a série de tópicos com os quais essas pessoas se ocupavam, e ele mesmo responde com uma lista: coisas divinas na maioria invisíveis, objetos visíveis na terra e no céu, a vinda à existência e o ser de todas as coisas, leis e todas as questões de política, cada uma das artes (techné), e insiste que tudo isso não era discutido somente por Protágoras, em seus escritos, mas por muitos outros também.

Isso nos fornece uma lista extensa de tópicos incluindo um título inesperado, coisas divinas. Mas é aqui que se deveria colocar o livro de Protágoras, Sobre os deuses, cujas palavras iniciais nos dão uma aplicação da doutrina dos dois argumentos opostos: “concernente aos deuses não posso vir a conhecer nem como são eles, nem como não são ou que aparência têm”; e também a obra Sobre as coisas no Hades. Pródicos (DK 84B5) discutiu a origem da crença dos homens em deuses em termos naturalistas e psicológicos, e Crítias (DK 88B25) sustentava que os deuses foram inventados deliberadamente pelos governantes para garantir o bom comportamento de seus súditos.

Finalmente, literatura. Aqui temos notícia de Protágoras dizendo (Prot. 338e6-339a3) que, na sua opinião, a maior parte da educação de um homem consiste em ser perito em assunto de versos, isto é, ser capaz de entender, na fala dos poetas, o que foi correta ou incorretamente composto, saber como distingui-los e comentá-los quando solicitado. E prossegue introduzindo uma elaborada discussão de um poema por Simônides; esta, por sua vez, provoca novas análises por Sócrates e Pródicos, e a proposta de uma exposição por Hípias, que é rapidamente recusada por causa de uma reunião presidida por Alcibíades, com a solicitação de que a faça numa outra ocasião. Que a exposição rejeitada de Hípias poderia ter sido enfadonha é sugerido pelas referências às suas epideixis sobre Homero e outros poetas, no Hípias Menor 363 a1-c3. A discussão toda, no Protágoras, ocupa mais ou menos um sexto do diálogo completo; e sabemos, por um fragmento de papiro, que Protágoras de fato comprazia-se na crítica literária de Homero (DK 80A30). Um pouco mais tarde, Isócrates (XII,18) conta como certa vez, no Liceu, três ou quatro sofistas, simples e comuns, estavam sentados discutindo poetas, especialmente Hesíodo e Homero. É claro que a prática seguida por Protágoras continuou por muito tempo depois.

Os testemunhos citados até aqui indicariam que o contraste entre Protágoras e Hípias pode não ter sido tão grande como é sugerido pela declaração que Platão põe na boca de Protágoras. Essa declaração tem, na verdade, probabilidade de ser essencialmente correta naquilo que realmente diz. Mas há, entre as duas abordagens, uma diferença que, historicamente, é de considerável importância. Protágoras, na sua crítica de Hípias e de outros como ele, está levantando uma questão de relevância ao sugerir que ele, Protágoras, ensinará o que o estudante realmente quer aprender como preparação para a vida que está pretendendo levar. Associada a essa, há uma outra questão também. Heráclito tinha atacado Hesíodo, Pitágoras, Xenófanes e Hecateu, alegando que polimatia ou aprendizagem em muitos assuntos não produzia compreensão (DK 22B40), sem dúvida porque isso não tinha levado os homens a uma compreensão do que ele considerava sua própria especial percepção da natureza do universo. Daí em diante, o valor de polimatia foi uma questão discutida, e encontramos Demócrito dizendo (DK 68B65) que o que é preciso não é polimatia no sentido de aprender muitas coisas mas, antes, no de compreensão de muitas coisas. Essa era a questão entre Protágoras e Hípias, não a da série de coisas que precisamos compreender. É provável que a posição de Protágoras esteja resumida na declaração atribuída a ele (DK 80B11): educação não brota na alma, a menos que se vá a uma profundidade maior. É possível que isso signifique que não basta ficar no nível dos fenômenos, que são a matéria da polimatia, mas que precisamos prosseguir para o que é hoje chamado de estudo em profundidade, numa tentativa de compreender os princípios subjacentes comuns a todos os assuntos que devem ser estudados.

Notas e referências

[1] Images of Man in Ancient and Medieval Thought, Studia Gerardo Verbeke ab amicis et collegis dicata, Louvain, 1976, Cap. I: The Image of the Wise Man in Greece in the period before Plato; e também anteriormente em The first Greek sophists, Class. Rev. 64 (1959) 8-10.

[2] Acima, 39-40.

[3] Cf. G. VLASTOS, Plato’s testimony concerning Zenon of Elea, Journ. Hellenic Studies 95 (1975) 159-60.

[4] G. RYLE, Plato’s Progress, Cambridge, 1966.

[5] History of Greek Philosophy, III, Cambridge, 1966, 43-4.

[6] Como a de E. R. DODDS, no comentário sobre Gorg. 449c2, em seu Platão, Gorgias, Oxford, 1959, 195.

[7] In Journal of Philology 4 (1872) 298-300.

[8] Ver. p. ex. R. ROBINSON, Plato’s Earlier Dialectic, 2a ed., Oxford, 1953, 88.

[9] The Philosophy of Socrates, Londres, 1968, 28-37.

[10] Cf. E. HAVELOCK, The Liberal Temper in Greek Politics, Londres, 1957, 216; e E A. G. BECK, Greek Education, Londres, 1964, 166.

[11] Sobre Protágoras, M. GROENEWALD, Ein neues Protagoras-Fragment, Zeitschr. f Pap. u. Ep. 2 (1968) 1-2; com J. MEYER, The alleged new fragment of Protagoras, Hermes 100 (1972) 175-8; sobre Pródicos, ver abaixo, 154, n. 4.

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