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O movimento sofista 5 (2, 3 e 4) Górgias, Pródicos e Hípias

Começamos a publicar os capítulos do livro de G. B. Kerferd (1980), O movimento sofista (tradução de Margarida Oliva de The Sophistic Movement, Cambridge: Cambridge University Press, 1981, publicada pelas Edições Loyola, São Paulo, 2003).

Os três primeiros capítulos estão disponíveis aqui. O quarto capítulo está disponível aqui. A primeira parte do quinto capítulo (relativa a Protágoras) está disponível aqui. Segue abaixo o segundo, terceiro e quarto tópicos do quinto capítulo, relativos a Górgias, Pródicos e Hípias.

5 – Os sofistas individualmente

(Continuação)

(2) Górgias

Górgias veio de Leontini, na Sicília, e consta que chegou a uma idade bem avançada. Pausânias (DK 82A7) nos diz que Górgias conquistou ainda mais respeito, em Atenas, do que o famoso Tísias, e que Jasão, quando se tornou tirano de TessáIia, pôs Górgias acima de Polícrates, embora a escola de Polícrates tivesse uma boa reputação em Atenas. Daí se infere que ele viveu na corte de Jasão de Férai depois que este se tornou tirano, não antes de 380 a. C. Mas a inferência é totalmente sem fundamento, visto que a história meramente relata uma comparação entre o tipo de retórica de Górgias e a de seu aluno, Policrates. Tudo o que podemos dizer com alguma probabilidade é que seu nascimento foi talvez por volta de 485 a. C. e que ele ainda vivia no século IV a.C.

Há uma clara tradição de que ele foi discípulo do filósofo siciliano Empédocles, e fez uma famosa visita a Atenas, em 427 a. C., como líder de uma embaixada de Leontini, para persuadir os atenienses a fazer aliança com sua cidade natal contra Siracusa. Discursou na Assembléia e consta que foi muito admirado pela sua habilidade retórica. Essa pode ter sido sua primeira visita a Atenas. Mas isso não é dito em nenhuma fonte, por conseguinte a inferência é muito incerta. Ele, certamente, viajou muito, sem se estabelecer em nenhuma cidade em particular; há registro de ter falado em Olímpia, em Delfos, em Tessália, em Boécia e em Argos, onde foi tão detestado que seus alunos foram sujeitos a uma penalidade qualquer. Em Atenas ele fez discursos “epidícticos” e teve alunos, o que lhe rendeu consideráveis somas em dinheiro.

Em tudo isso, Górgias claramente funcionava como sofista e era claramente conhecido como tal. As sugestões modernas de que ele não deveria ser classificado como sofista repousam em um estreitamento arbitrário do conceito de sofista e não têm, também, nenhuma base em testemunhos antigos [5].

Acredita-se que seu tratado Sobre natureza foi escrito na 84a Olimpíada, isto é, em 444-441 a. C. (DK 82A10). Sumários, ou partes, ou referências sobrevivem em discursos intitulados Oração fúnebre, Oração olímpica, Elogio aos eleanos, Elogio a Helena, Apologia de Palamedes. É provável que tenha também escrito um tratado técnico sobre retórica, cujo título seria simplesmente Arte ou, possivelmente, Sobre o momento certo no tempo (Peri Kairou). Finalmente não há por que duvidar da atribuição que se faz a ele do Onomastikon mencionado por Pólux, no prefácio do seu próprio Lexicon, no qual se utilizou dele (IX, 1 p. 148 Bethe), mas não incluído, creio eu, em nenhum livro sobre os sofistas antes de 1961 [6]. O título era também aparentemente o de uma obra de Demócrito (DK 68A33, XI, 4).

(3) Pródicos

Pródicos veio da ilha de Quios, nas Cíclades, que era também o lugar de nascimento do poeta Simônides. Nasceu, provavelmente, antes de 460 a. C. e ainda vivia por ocasião da morte de Sócrates, em 399 a. C. Foi em muitas embaixadas de Ceos a Atenas, e numa ocasião discursou perante o Conselho. Como Górgias, deu palestras “epidícticas” e, também, aulas particulares com as quais ganhou muito dinheiro. Visitou muitas cidades, não só Atenas. Segundo Filostratos, Xenofonte estava certa vez preso em Beócia, mas obteve liberdade sob fiança a fim de ouvir um discurso de Pródicos. Xenofonte ficou certamente muito impressionado com uma epideixis de Pródicos, sobre a Escolha de Hércules, tanto que a resumiu, na boca de Sócrates, no seu Memoráveis II, 1.2134. Esse discurso veio de uma obra intitulada Horas (Horae) que incluía panegíricos de outras pessoas ou personagens, assim como de Hércules, segundo Platão (DK 84B1). Ele também escreveu um tratado Sobre a natureza do homem.

Pródicos foi sobretudo famoso por sua obra sobre a linguagem, e a sátira de Platão sobre ele no Protágoras sugere, para alguns, que ele possa ter deixado escritos específicos Sobre a correção dos nomes. A importância filosófica dessa faceta de sua obra é muito grande, mas não temos nenhuma referência concreta a qualquer outra coisa além de sua série de palestras. Mas foi baseado nessas palestras e seus conteúdos que Sócrates se considerava aluno de Pródicos (Platão, Prot. 341a4, Meno 96d7) e diz ter mandado muitos alunos, que não estavam em condições de se associar consigo, por não estarem filosoficamente grávidos, para se ligarem com proveito a Pródicos e a outros homens sábios e inspirados (Teeteto 151b2-6). Que as suas teorias lingüísticas tinham uma clara base metafísica é o que sugere o novo fragmento de papiro discutido abaixo.

Há uma tradição em fontes tardias (DK 84A1) segundo a qual Pródicos teria morrido em Atenas, bebendo cicuta, aparentemente após condenação por “corrupção dos jovens”. Isso é, com razão, comumente descartado como uma confusão entre Pródicos e Sócrates — se fosse verdade, certamente teríamos ouvido falar disso em fontes mais antigas. Mas havia uma história, preservada no pseudo-platônico Eryxias (398e11- 399b1), segundo a qual Pródicos foi expulso de um ginásio por falar inconvenientemente diante de jovens, de modo que não é impossível que, de fato, tenha enfrentado o tipo de oposição que Protágoras disse ser a sorte comum de todos os sofistas.

(4) Hípias

Hípias de Élis é mencionado no Protágoras da mesma forma que Pródicos e é razoável supor que podiam ser da mesma idade. Ele aparentemente estava vivo em 399 a. C. e provavelmente morreu cedo no século IV — não há a menor probabilidade de que tenha vivido até a metade desse século, como tem sido sugerido. Como outros sofistas, viajou bastante e ganhou muito dinheiro.

Ele dizia estar à vontade em toda a ciência de seu tempo e, por isso, não é de estranhar que Sócrates se refira a ele como um polímata (DK 86A14). Nisso era, sem dúvida, ajudado por excepcional capacidade de memória, aparentemente desenvolvida por técnicas especiais, que ensinou também a outros, e que o habilitava a lembrar cinqüenta nomes depois de ouvi-los uma vez só. É interessante ler, embora provavelmente não seja verdade, que sua habilidade de memória era ajudada com a bebida de certas poções.

Além de exposições “epidícticas”, parece que era tido como sempre pronto a ensinar astronomia, matemática e geometria, genealogia, mitologia e história, pintura e escultura, a função das letras, sílabas, ritmos e escalas musicais. Além disso, escreveu versos épicos, tragédias e ditirambos, assim como muitos tipos de prosa. Tudo isso já seria bastante extraordinário. Mas há bons indícios de que seu conhecimento não era apenas superficial, nem tampouco baseado numa fluente facilidade de falar, sem preparação, sobre qualquer assunto. Pelo contrário, devemos concluir que era baseado numa erudição ao mesmo tempo ampla e profunda.

A prova disso é de dois tipos. Primeiro, há indicações de que Hípias desenvolveu algum tipo de posição filosófica geral própria. Embora seja de difícil reconstrução, parece ter sido baseada numa doutrina de classes de coisas dependentes de um ser que é contínuo ou que passa através dos corpos físicos sem interrupção, de forma igual, nos dizem, à das fatias de bife cortadas ao longo do lombo e servidas a um hóspede muito importante, como especial privilégio, num banquete, em Homero (ver Hípias Maior 301d5-302b4, não em DK, infelizmente). Mais importante, contudo, porque dificilmente pode ser contestada, é a prova de um interesse excepcionalmente douto no estudo de tais assuntos, inclusive da história deles. Hípias parece ter virtualmente inaugurado esse tipo de estudo. Neste ponto antecipou o tipo de pesquisas sistemáticas encomendadas por Aristóteles no Liceu. O que é realmente notável, no caso de Hípias, é que ele foi capaz de fazer tanta coisa sem o auxilio de bibliotecas públicas e de uma escola organizada de estudantes pesquisadores.

Ele produziu uma lista de vencedores olímpicos, baseado em registros locais, em Olímpia, o que provavelmente permitiu a Tucídides dar datas precisas, ao passo que Heródoto não fora capaz de fazer isso [7]. Uma citação da lista, direta ou indireta, pode ser encontrada no que resta de um papiro Oxyrhynchus datado do século III d. C. (n. 222). Certamente isso fez parte do testemunho para a lista posterior completa que conhecemos através de Eusébio. Helânicos produziu uma lista semelhante das sacerdotisas de Heras, em Argos, e Aristóteles (frags. 615-617) produziu uma outra lista dos vitoriosos délficos. Aqui pode-se mencionar uma outra obra, uma lista, se é que era isso mesmo, de nomes de pessoas compilados por Hípias sob o título Ethnõn Onomasiai (DK 86b2).

O conjunto de sua obra foi fundamental para o estabelecimento de uma cronologia básica para a história grega. Mas isso não era tudo, de forma alguma. Na matemática foi-lhe atribuída a descoberta da curva chamada quadratriz, usada para a trissecção de um ângulo e nas tentativas de quadratura do círculo. Pela maneira como a isso se referem autores posteriores, é razoavelmente certo que ele deixou, por escrito, um relato de sua descoberta (ver Proclo, Commentary on the First Book of Euclid’s Elements, p. 356, uma passagem que não está em DK). Nesse mesmo comentário, Proclo nos dá (p. 65-8) um esboço da história da geometria, aparentemente baseada, direta ou indiretamente, numa cópia, que não chegou até nós, da história escrita por Eudemo de Rodes, discípulo de Aristóteles. Proclo deixa claro que pelo menos algumas das informações de Eudemo, sobre o período antes de Platão, foram derivadas de Hípias. Como o ponto específico citado é pequeno, e desconhecido fora daí, parece que Hípias, na sua pesquisa (Proclo diz historêsen), entrava em grande detalhe.

Finalmente parece que uma outra obra, conhecida simplesmente como a Synagogue ou Coleção, foi de muito maior importância do que comumente se pensava há não muito tempo. Clemente de Alexandria, argumentando que os gregos eram incorrigíveis plagiários, cita o que pode ter sido parte da própria introdução de Hípias à obra (DK 86B6):

Pode ser que algumas dessas coisas tenham sido ditas por Orfeu, algumas, brevemente, aqui e ali por Musaios, algumas por Hesíodo, algumas por Homero, algumas por outros dentre os poetas, algumas escritas em prosa, seja por gregos ou por bárbaros. Mas eu reunirei as passagens mais importantes e inter-relacionadas de todas essas fontes, e assim farei esta peça ao mesmo tempo nova e mais variada.

Isso sugere que a Synagogue era uma coleção de várias passagens, histórias e peças de informação relacionadas com a história da religião e assuntos semelhantes. Por aí ficou a questão até 1944, quando Bruno Snell, num artigo notável, mostrou que a passagem acima indicava que Hípias foi o mais antigo doxógrafo sistemático, ou compilador das opiniões de autores mais antigos dos quais temos algum conhecimento. Em seguida, ele passou a demonstrar, a meu ver com uma abordagem tão próxima da certeza quanto possível em assuntos desse tipo, que Hípias era a fonte que fizera a conexão entre a doutrina de Tales – que todas as coisas eram feitas de água e que a terra repousa na água — com as afirmações cosmogônicas de Homero, Hesíodo e outros, de que Oceano e Tétis eram a fonte de todas as coisas. Certamente Platão estava familiarizado com a esquematização do pensamento dos pré-socráticos, segundo a qual uma linha de pensadores, que se estende de Homero, Hesíodo e Orfeu, através de Epicarmo, Heráclito e Empédocles, sustentava que todas as coisas são produto do fluxo e do movimento, e outra linha de pensadores ainda mais antigos, através de Xenófanes, Parmênides e Melissos, sustentava que todas as coisas são uma só e estacionária em si mesma (Crat. 402a4-c3, Teeteto. 152d2- el0, 180c7-e4, Sof 242d4-6). Embora não se possa provar, começa-se a pensar não ser impossível que essa sistematização também tenha vindo de Hípias. Sem dúvida, está claro que Hípias está no princípio mesmo do registro escrito da história da filosofia [8].

Notas e referências

[5] Para uma tentativa dessas, ver E. R. DODDS, Plato Gorgias, Oxford, 1959, 6 ss. Para uma opinião contrária, GUTHRIE, History of Greek Philosophy, Cambridge, III. 36, n. 4, e E. L. HARRISON, Was Górgias a Sophist? Phoenix 18 (1964) 183-92.

[6] Para a referência, ver V. GOLDSCHMIDT, Essai sur le Cratyle, Paris, 1940, 7, n. 3, com UNTERSTEINER, Sofisti, Test. e Framm. 112 (1961) 209.

[7] Ver E JACOBY, Fragmente der griechischen Historiker, Leiden, 2a ed., 1957, I 477, e a discussão completa em III b, Texto 221-228, III b, Nota 143-154.

[8] Sobre tudo isso, ver Bruno SNELL, Die Nachrichten über die Lehren des Thales, Philologus 96 (1944) 119-28, reimpresso no seu Gesammelte Schriften, Göttingen, 1966, e em C. J. CLASSEN, Sophistic (Wege der Forschung) Darmstadt, 1976. Ver também CLASSEN, Bemerkungen zu zwei griechischen Philosophie-Historikern, Philologus 109 (1965) 175-81.

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