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O perigo do legalismo

O legalismo é apenas mais uma ideologia conservadora. Do ponto de vista teórico ele nasce de uma confusão entre Estado de direito e Estado democrático, entre império da lei e democracia. No artigo Estado de direito é sinônimo de Estado democrático? há uma longa argumentação sobre isso.

Se Estado de direito fosse a mesma coisa que Estado democrático, a fórmula Estado democrático de direito seria redundante – e ela não é, simplesmente porque as duas expressões não querem dizer a mesma coisa. No limite podemos ter Estados regidos por leis (e não pela vontade individual de governantes), consolidadas em constituições aprovadas por representantes eleitos e, mesmo assim, não serem Estados democráticos (sim, uma parte das 60 autocracias que remanescem no século 21, tem eleições e constituições). Pela mesma razão, império da lei não significa, por si só, democracia. Na Alemanha hitlerista, por exemplo, vigorava, de certo modo, um império da lei (o problema não era falta de lei e nem a falta de poder judiciário, inclusive ocupado por alguns renomados juristas).

Reproduzo parte da conclusão do artigo citado acima:

“O que há de democrático é menos do que o que há de direito nos Estados democráticos de direito realmente existentes. O legalismo dos tribunais e do mundo jurídico em geral é menos democrático do que se pensa. E quando atores políticos adotam uma ideologia legalista, menos ainda a democracia estará garantida. Atores políticos que avaliam que se as leis forem cumpridas, tudo irá bem, se comportam como se a democracia já estivesse desenhada, normatizada, codificada e se trataria agora e doravante (até qual milênio futuro não se sabe) apenas de cumprir o código. O nome disso não é respeito às leis e sim legalismo, que não passa de uma ideologia conservadora (no sentido de que quer conservar, na verdade quase congelar uma disposição pretérita e pavimentar, segundo ditames dela derivados, um caminho para o futuro). Mas nenhum legalismo – obtuso ou esclarecido – é capaz de proteger a democracia dos que querem autocratizá-la”.

O Estado de direito – e aqui aparece outra confusão – não é o Estado-nação. Para proteger o Estado-nação não precisamos de Estado de direito: basta o Estado mesmo. Precisamos de Estado de direito para proteger o cidadão contra o seu próprio Estado (não contra algum Estado inimigo: contra este, bastaria o Estado – uma estrutura moldada para a guerra). O Estado de direito serve para assegurar que as pessoas possam ter liberdade, impedindo que o seu próprio Estado faça guerra contra elas e com isso ensejando condições para que o processo de democratização possa continuar (alargando, cada vez mais, a esfera da liberdade).

Portanto, o Estado de direito existe, fundamentalmente, para proteger a democracia, não para proteger o Estado-nação (e nem mesmo para se auto-proteger, ou seja, para proteger o Estado de direito). Por isso que Estado de direito não é sinônimo de democracia. Repetindo o que já foi dito acima, podemos ter Estados de direito pouco democráticos (e, no limite, até não-democráticos), em países em que todos – governados e governantes – estejam submetidos ao império da lei, obedecendo rigorosamente uma constituição (pouco democrática ou não-democrática – quer dizer, que não esteja vulnerável aos fluxos interativos da convivência social capazes de modificá-la). Isso significa que a democracia não é um status (estado) e sim um processus (o processo de democratização, que equivale a um processo contínuo ou intermitente de desconstituição de autocracia capaz de tornar os modos de regulação de conflitos cada vez mais pazeantes e menos guerreiros). A democracia não está a serviço do Estado de direito (e, muito menos, do Estado, quer dizer, do Estado-nação). É o contrário: o Estado de direito deve estar a serviço da democracia, para permitir a continuidade do processo de democratização (que domestica o Leviatã, ou seja, o Estado-nação).

O legalismo contemporâneo, no Brasil, tem algumas características próprias, que derivaram da oposição à praga do populismo (sobretudo do neopopulismo) que manipula o sistema representativo, usando a democracia (notadamente as eleições) contra a própria democracia. Como se sabe os populismos subvertem a democracia, já mostrou magistralmente Enrique Krauze (2006) no artigo A praga do populismo e, uma década depois, Moisés Naín (2017) no seu Manual do populismo.

O fato é que, contra o neopopulismo (latino-americano) fenecente talvez e contra os populismos nacionalistas reflorescentes (no plano global), insurgiram-se não apenas os democratas, mas também os legalistas (talvez animados por uma concepção de República, mas não propriamente de democracia: não, não são a mesma coisa, por isso que a Roma republicana não se compara, do ponto de vista do sentido da política como liberdade – que é o que funda a democracia – com a Atenas do século 5 AEC).

É bom insistir nesse ponto. República não é o mesmo que democracia (e isso nada tem a ver com eletividade). A questão aqui é o sentido da política. Se for a ordem (qualquer ordem) e não a liberdade, não haverá de facto espaço público (a res publica) emergente (ou seja, um processo livre de constituição de commons). Há uma grande controvérsia sobre isso, mas a questão fundamental é o grau de liberdade para alterar a ordem (mesmo aquela ordem que estabeleceu um espaço público top down). Por isso que Roma, durante um determinado período, chamado republicano – depois dos reis etruscos e antes do império (na verdade, antes de Júlio) – não foi a mesma coisa que Atenas (depois de Clístenes, Efialtes e Péricles e antes de Alexandre).

É tão óbvio que república não é sinônimo de democracia que a maior parte dos países colocados entre os mais democráticos do mundo (10 das 19 full democracies do Democracy Index 2016 da The Economist Intelligence Unit) não é composta por repúblicas: Noruega (o primeiro lugar da lista), Suécia (o terceiro lugar), Nova Zelândia (o quarto), Dinamarca (o quinto), Canadá (o sétimo), Austrália (o nono), Holanda (o décimo), Luxemburgo (o décimo-primeiro), Reino Unido (o décimo-sexto) e Espanha (o décimo-sétimo). Democracia e autocracia são modos de regulação de conflitos que predominam no Estado, na sociedade e nas relações entre Estado e sociedade, e não formas de governo: podemos ter repúblicas (como a Islândia e a Suíça) e governos representativos não republicanos (monarquias constitucionais, como a Noruega e o Reino Unido) democráticos e não-democráticos (por exemplo, a República Democrática do Congo e a República Centro-Africana – que são ditaduras republicanas e a Arábia Saudita e o Bahrein – que são ditaduras monárquicas).

A experiência histórica da maior democracia dos tempos modernos – os Estados Unidos da América – é capaz de lançar alguma luz sobre o problema. Ao contrário do que se pensa, a democracia não foi uma invenção dos Founding Fathers e de pessoas como George Washington, Thomas Jefferson, John Adams, Patrick Henry. Não! Como sempre, a democracia não tem fundadores. Ela foi uma invenção da sociedade americana – ou seja, foi, como Atenas, o resultado de uma experiência societária – e foi isso que Alexis de Tocqueville percebeu na sua célebre viagem em meados do século 19: a particular e inédita efervescência social – continuamente constituinte de ordem pública (ou geradora de commons) – e, sobretudo, o governo civil (um antepassado do conceito de capital social ou de rede social). Mais revelador ainda é o que vem acontecendo com a democracia americana nas últimas décadas, quando se tornou vulnerável à manipulação com a ascensão do complexo científico-industrial-militar, a centralização em Washington, a judicialização dos conflitos da vida cotidiana, a perda progressiva daquela dinâmica societária descrita por Tocqueville e o declínio do capital social percebido por Jane Jacobs e Robert Putnam. Sim, Trump não surgiu de repente ou do nada: foi cuidadosamente preparado numa longa noite da democracia americana.

A democracia é um movimento político (o processo de democratização), não um modelo de regime político ou um modo político de administração do Estado. Toda vez que ela vira isso (uma fórmula pétrea), os esforços de manutenção do status quo enfreiam o processo de democratização.

Entender isso é necessário para entender o comportamento dos legalistas. Eles se aferram à defesa da forma, enquanto esvai-se o que anima essa forma.

Pois bem. Como se comportam esses legalistas no Brasil atual? Eles defendem o Estado de direito e o cumprimento estrito das leis existentes e das regras que regem o funcionamento das instituições. O que é correto, a não ser quando a defesa da democracia fique secundarizada pela sanha legalista. É o que acontece com os que atacam os métodos da Operação Lava Jato e os de outras operações conexas que combatem a corrupção.

A ênfase na defesa do Estado de direito deve ser proporcional à ameaça que sofre a democracia. Repetindo mais uma vez, o Estado de direito só existe para proteger a democracia, quer dizer, para salvaguardar os cidadãos contra a invasão do seu próprio Estado na sua esfera de direitos (ou melhor, de liberdade). Ora, hoje a ameaça à democracia não vem da força tarefa da Lava Jato, incluindo juízes, procuradores e policiais federais. Nenhum desses agentes da lei quer transformar o Brasil em uma ditadura. Quem quer fazer isso são os criminosos políticos do PT, que roubaram dinheiro público e privado para financiar um esquema de poder que tinha por objetivo bolivarianizar (à brasileira, quer dizer, lulopetizar) o nosso regime. A ênfase desproporcional na condenação dos excessos dos que estão investigando e punindo os criminosos, acaba convertendo os agentes da lei na principal ameaça e os que subverteram a democracia em vítimas. Por isso o legalismo, ao fim e ao cabo, sempre presta um desserviço à democracia.

Com efeito, se formos dar atenção ao que dizem certos analistas políticos legalistas, daqui a pouco nós, que nunca roubamos um clipe de papel ou uma caneta BIC, vamos começar a sentir culpa por estarmos pedindo que sejam punidos os assaltantes de Estado que desviaram bilhões para financiar seu projeto criminoso de poder ou para os seus próprios bolsos.

O legalismo cega. Não raro esconde o que é principal e substantivo jogando luz sobre o que é acessório e formal. Do ponto de vista formal, a corrupção do PT é totalmente diferente da corrupção tradicional dos atores políticos, mas como o nosso arcabouço legal não permite uma distinção eficaz entre as duas formas de delito: o crime político e o crime comum praticado por políticos, os legalistas, ao menor sinal de formação de um novo entendimento jurídico que faça tal distinção, põem-se a esgoelar que o Estado de direito está sendo violado.

Mas, como já se disse no artigo citado acima, o que os legalistas não veem é que “nenhum legalismo – obtuso ou esclarecido – é capaz de proteger a democracia dos que querem autocratizá-la. Por isso pode-se dizer que a principal defesa do Estado democrático não são as instituições judiciais e políticas organizadas top down e sim a sociedade organizada bottom up, quando exige que o Estado se horizontalize, fique mais transparente, reconheça novos direitos, não dificulte a aprovação de novas leis mais acordes à vida social real, não queira educar a sociedade e se meta o menos possível na vida dos cidadãos e das comunidades”.

O legalismo não é uma praga, como o populismo. Não é um projeto político e sim um viés interpretativo que, infelizmente, predomina nos meios jurídicos e nas cabeças de alguns ditos cientistas e analistas políticos. Mesmo assim é um perigo para a democracia, como estamos vendo no presente momento no Brasil.

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