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O populismo de Trump vai nos levar para o passado

Trump surgiu na mais recente onda populista que começa a varrer o mundo nesta segunda década do século 21. Como escreveu Moisés Naím (2017), no seu excelente Manual do populismo:

“O populismo não é uma ideologia. É uma estratégia para alcançar e conservar o poder. Ele sempre existiu, mas nos últimos anos ressurgiu com uma força potencializada pela internet e pelas frustrações de sociedades angustiadas com as mudanças, a precariedade econômica e uma ameaçadora insegurança sobre o que o futuro lhes reserva. Uma das surpresas do populismo é como seus ingredientes são comuns apesar de os líderes que o praticam e os países onde se impõem serem muito diferentes. O populismo hoje reina na Rússia de Vladimir Putin e nos Estados Unidos de Donald Trump, na Turquia de Recep Tayyip Erdogan e na Hungria de Viktor Orban, entre muitos outros”.

Sim, muitos outros. Enrique Krauze (2006), no seu não menos excelente Os dez mandamentos do populismo, analisou a onda anterior da ascensão do neopopulismo latinoamericano, na primeira década deste século. Krauze escreveu sob o impacto do florescimento do chavismo. Mas talvez devêssemos caracterizar os diferentes bolivarianismos que surgiram na esteira do chavismo e foram, na verdade, urdiduras castristas, como neopopulismos (o lulopetismo, o kirchnerismo, o evoismo, o correismo, o orteguismo ou sandinismo reciclado et coetera). O neopulismo é um pouco diferente do populismo clássico, ainda que repaginado, examinado por Naím. Ele tem mais raízes ideológicas – fincadas no marxismo-leninismo e numa mistura grossa de maquiavelismo e gramscismo produzida nas universidades – do que o populismo de Trump, Putin, Erdogan e Orban.

Avaliamos, no início do ano passado, que o espaço para o neopopulismo estava se fechando na América Latina. Mas o artigo de Naím mostra que no cenário mundial atual ainda há muito espaço para o populismo clássico. De um ponto de vista estritamente político, esses comportamentos políticos (que chamamos de populismo e neopopulismo) são muito semelhantes: trata-se de uma estratégia para conquistar e reter o poder nas mãos de um líder ou de um grupo por tempo indeterminado. E ainda desse ponto de vista suas consequências são semelhantes: como disse Krauze, seu efeito inevitável é subverter a democracia.

Examinemos o populismo de Trump, para quem a democracia não é um valor.

Trump reiterou que “respeita” Vladimir Putin e convidou os que o qualificam de “assassino” a moderar essa opinião. Ele disse ainda que “é melhor se entender com a Rússia do que o contrário. E se a Rússia nos ajuda a combater o EI (grupo extremista Estado Islâmico) e o terrorismo islâmico ao redor do mundo, isso é uma coisa boa”. Quando questionado sobre os supostos vínculos de Putin com a morte extrajudicial de jornalistas e dissidentes, Trump convidou os americanos a um exame de consciência. “Há muitos assassinos, temos muitos assassinos. Você acha que o nosso país é tão inocente?”, disse Trump.

Ora, é claro que existem assassinos em todo lugar. Mas uma ditadura, comandada por um governo de assassinos da FSB (ex-KGB) – que usa a execução de opositores como método – é outra coisa. Uma democracia não pode compactuar com métodos despóticos, como os da autocracia russa, nem mesmo em nome do combate ao Estado Islâmico. O expansionismo russo, com suas tentativas de reeditar a guerra fria, fazendo o mundo retrogradar para a política de blocos dos anos 60, é tão perigoso para a democracia e para a paz mundial quanto o crescimento do jihadismo ofensivo islâmico.

O que muitos não entendem é que guerra fria não é paz: guerra fria é guerra, ou seja, um engendramento estatista que constrói e mantém inimigos como pretexto para reorganizar cosmos sociais sob padrões hierárquicos regidos por dinâmicas autocráticas. Na guerra fria, a democracia dança (talvez até mais rapidamente do que num conflito armado com uma ditadura)!

O jihadismo ofensivo islâmico é uma ameaça gravíssima, no médio e longo prazos. Mas o putinismo não é menos grave. São ameaças distintas, por certo. Tirando-se, porém, a região do Oriente Médio e um ou outro local isolado, o islamismo não ameaça, no curto prazo, as chamadas democracias ocidentais. Nem mesmo ameaça as grandes ditaduras orientais, como Rússia e China. Ações terroristas podem, sim, matar milhares de pessoas, mas não podem – no curto prazo – derrubar governos na maior parte do mundo e, muito menos, instalar regimes ditatoriais (a não ser os que forem instalados sob o pretexto da necessidade de se defender do islamismo: eis o perigo da aliança Trump-Putin e dos argumentos delinquentes que a sustentam).

Repetindo. O jihadismo ofensivo islâmico é uma ameaça real e perigosíssima, mas é uma ameaça de mais longo prazo do que o putinismo, que pode, de uma hora para outra, redividir o mundo em blocos. Se Putin conseguir aliados em um grande país europeu (como a França, com Le Pen, por exemplo) e retomar a Ucrânia, países adjacentes e ex-colônias da ex-URSS, além de ditaduras e protoditaduras no Oriente Médio (Síria, Irã), na África (vários) e na América Latina e no Caribe (Venezuela, Nicarágua, Bolívia, Equador, El Salvador, Cuba) – sob o olhar complacente, leniente e conivente dos USA de Trump – o mundo caminhará rapidamente para uma configuração de blocos.

Trump é um perigo. Sobretudo porque, para ele, a democracia não é um valor. Ele sonha com o mundo de 1984 de George OrwellAmerica First significa: “cada um cuide do seu”, enquanto nós – os grandes – vamos (pensa ele) botar ordem na casa (cada qual na sua casa, claro), impedindo, porém, qualquer aventureiro de entrar no condomínio dos dominantes.

No mundo imaginado por Trump, Oceânia (USA), Eurásia (Rússia) e Lestásia (China) vão se amar e se odiar num estado permanente de guerra fria, mas vão reorganizar o cenário internacional, transformando os demais atores em súditos dos megablocos de poder. Serão todos inimigos entre si, é claro, mas na base do equilíbrio competitivo, inimigos cuidadosamente mantidos, de vez que aliados tácitos contra qualquer emergência globalizante, contra a fragmentação que os transforme em pares dos demais (com destaque para as grandes democracias da América, como o Canadá; da Europa, como Reino Unido e Alemanha; da real Oceania, como a Austrália; e até da Asia, como o Japão).

1984 mapa

Sim, Trump é uma reação do mundo único contra o estilhaçamento provocado pela emergência de uma sociedade-em-rede, do localismo conservador e não-cosmopolita contra a globalização (que os trumpistas chamam de globalismo). Putin já topou a parada. Não fosse a China (que não está muito disposta a entrar nesse jogo, sobretudo porque acha que ele não é bom para os negócios) e as menos de 40 democracias (plenas ou aceitáveis – e é preciso ficar de olho na França: das grandes, o elo mais fraco neste momento) que resistem, o mundo retrogradaria em marcha-batida para os anos 60 do século 20. O populismo de Trump, se bem sucedido, vai nos levar para algum lugar do passado.

Qual é o problema? O problema é que seria um mundo com menos democracias e menos democrático. Os trumpistas não estão nem aí para isso. Entre a ordem (imposta top down) e a liberdade, eles não hesitam em ficar com a primeira. Os trumpistas só têm, na verdade, um problema: eles se deixam seduzir pelo populismo porque, tal como Trump, jamais se converteram à democracia.

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Manual do populismo

1984 de Orwell