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O que o PT realmente pensa

Um partido cuja direção nacional assina um documento como o que vamos examinar abaixo – e leva-o à prática (como estamos constatando nos últimos 4 meses) – coloca-se, subjetiva e objetivamente, contra a democracia. Examinem parágrafo por parágrafo do texto: os petistas só querem dirigir e hegemonizar, não conviver como iguais com os demais atores políticos. Mesmo assim, sua existência deveria ser garantida em uma democracia. Mas se, para levar à prática seu projeto, ele degenera a institucionalidade e viola a legalidade, então não poderia ser tolerado pelo Estado democrático de direito.

Passemos à análise do documento petista (reproduzido abaixo na íntegra, com link original no título).

RESOLUÇÃO SOBRE CONJUNTURA

O Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, reunido no dia 17 de maio de 2016 em Brasília/DF, aprova a seguinte resolução política:

O Diretório Nacional, ao apresentar para discussão o roteiro a seguir, convoca um Encontro Extraordinário do Partido dos Trabalhadores, sob o tema Os desafios partidários para o próximo período, a ser realizado em novembro, antecedido por uma reunião ampliada do Diretório Nacional, em julho, cujas normas serão definidas pela Comissão Executiva Nacional até o final de maio.

O país vive, desde o dia 12 de maio, uma nova situação política, com a recuperação da direção do Estado pelas velhas oligarquias da política, da mídia monopolizada e do grande capital. Através de um golpe parlamentar, que rompeu a ordem democrática e rasgou a Constituição, as classes dominantes impuseram o afastamento provisório da presidenta Dilma Rousseff, em processo de impeachment sem base legal, marcado pela fraude e a manipulação.

O impedimento da presidenta, longe de ser manobra circunstancial, mesmo cercado por improvisos e tropeços, representa o desfecho de uma ofensiva planificada, que culminou com a unificação de distintos centros de comando ao redor da conspiração golpista.

A maioria conservadora do Congresso Nacional fabricou pretexto casuístico para depor um governo legitimamente eleito pelo voto popular e estabelecer novo bloco de poder, destinado a conduzir um amplo programa de reorganização do desenvolvimento capitalista nacional.

A opção pelo golpismo, além do caráter historicamente antidemocrático das classes dominantes brasileiras, expressa o ritmo pretendido e a agenda que unifica o núcleo hegemônico das forças usurpadoras. Afinal, seria risco imenso submeter a eleições livres e diretas um projeto calcado sobre arrocho de salários e aposentadorias; eliminação de direitos trabalhistas; corte de gastos com programas sociais; anulação das vinculações constitucionais em saúde e educação; privatização de empresas estatais e abdicação da soberania sobre o pré-sal; submissão do país aos interesses das grandes corporações financeiras internacionais.

O modelo econômico perseguido pelo grande capital implica substituir a expansão do mercado interno, como motor do crescimento, pela atração dos fluxos privados de investimento, locais e internacionais, conforme reza a antiga cartilha neoliberal e tal como explicita o programa dos golpistas “Uma Ponte para o Futuro”. Salários baixos, alta rentabilidade financeira com plenas garantias de solvência, desregulamentação do mercado de trabalho, privatizações e política externa subordinada aos centros imperialistas são os principais pilares dessa opção de classe.

Apesar dos equívocos e dificuldades em dar continuidade ao processo de mudanças iniciado em 2003, a administração da presidenta Dilma Rousseff era obstáculo a ser removido de forma imediata e a qualquer custo, de tal sorte que um governo de transição pudesse dispor de tempo suficiente para aplicar o programa neoliberal antes que as urnas voltassem a se pronunciar.

Este período também seria indispensável para avançar na escalada de criminalização do PT e demais forças de esquerda, combinada com a desarticulação repressiva dos movimentos sociais e a interdição do ex-presidente Lula como alternativa viável nas eleições de 2018.

A Operação Lava Jato desempenha papel crucial na escalada golpista. Alicerçada sobre justo sentimento anticorrupção do povo brasileiro, configurou-se paulatinamente em instrumento político para a guerra de desgaste contra dirigentes e governantes petistas, atuando de forma cada vez mais seletiva quanto a seus alvos, além de marcada por violações ao Estado Democrático de Direito. Tem funcionado como mecanismo de contrapropaganda para mobilização das camadas médias, em associação com os monopólios da comunicação. Revela, por fim, o alinhamento de diversos grupos do aparato repressivo estatal – delegados, procuradores e juízes – com o campo reacionário, associados direta ou indiretamente às manobras do impeachment.

Ainda que persistam importantes contradições no interior da coalizão conservadora, a intenção predominante entre suas frações dirigentes é concluir o regime de exceção com a aprovação de um sistema eleitoral, mais restritivo que o atual, cujas regras logrem institucionalizar o bloqueio à reconquista do governo federal pelo campo popular.

Esta ofensiva restauradora é parte fundamental da estratégia para desestabilizar as demais experiências progressistas na América Latina, buscando reconstruir a hegemonia imperialista sobre a região, fortemente abalada pelas vitórias eleitorais populares nos primeiros quinze anos do século XXI. A longa crise do capitalismo reconduz o Sul do continente à lista de prioridades da geopolítica norte-americana, sob a lógica de retomar controle sobre fontes essenciais de matérias-primas e energia, amplos mercados domésticos e espaços para novos investimentos a baixos custos.

A queda do governo petista também é fundamental para fragilizar alianças contra-hegemônicas regionais, como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), o Mercosul além de facilitar políticas de cerco e desestabilização em processos progressistas de outros países – como Venezuela, Equador e Bolívia. Caso consolidado, este retrocesso político influirá sobre a evolução do bloco BRICS, cujo potencial econômico e financeiro coloca em xeque a velha engenharia mundial das potências capitalistas.

O avanço do movimento golpista, no entanto, somente poderá ser corretamente entendido se avaliarmos, de forma autocrítica, os erros cometidos por nosso partido e nossos governos. O fato é que [1] não nos preparamos para o enfrentamento atual, ao priorizarmos o pacto pluriclassista que permitiu a vitória do ex-presidente Lula em 2002 e a consolidação de seu governo nos anos seguintes.

Esquecemos uma das lições mais relevantes da história brasileira, consolidada pelo PT em seus documentos dos anos oitenta. O capitalismo brasileiro, assentado sobre múltiplos mecanismos de super-exploração do trabalho e preservação de estruturas arcaicas, gera forte antagonismo das oligarquias contra reformas capazes de alterar, mesmo timidamente, essas condições sócio-econômicas. As classes dominantes — em determinadas correlações de força e em períodos de expansão econômica — podem tolerar certas mudanças, desde que avanços das camadas populares não resultam em diminuição de seus ganhos absolutos ou relativos. Mas oferecem brutal resistência quando esse equilíbrio distributivo está sob ameaça, particularmente nas fases de contração econômica como agora.

Tal pressuposto deveria ter norteado nossos treze anos de governo, levando-nos a compreender que [2] a hegemonia dos trabalhadores no Estado e na sociedade não depende exclusiva ou principalmente de administrações bem-sucedidas, mas da concentração de todos os fatores na construção de uma força política, social e cultural capaz de dirigir e transformar o país.

A despeito dos extraordinários avanços verificados na redução das desigualdades, na abertura de novas oportunidades, na criação de direitos, na erradicação da fome, na ampla inclusão promovida pelo governo, incorremos em um equívoco político. Logo ao assumirmos, [3] relegamos tarefas fundamentais como a reforma política, a reforma tributária progressiva e a democratização dos meios de comunicação. Embora sem maioria parlamentar de esquerda, o imenso prestígio do presidente Lula e a desorganização estratégica das elites abriam espaço para poderosa mobilização nacional que debatesse, claramente, a urgência da democratização do Estado e a remoção dos entulhos autoritários herdados da transição conservadora pós-ditadura.

[4] Fomos igualmente descuidados com a necessidade de reformar o Estado, o que implicaria impedir a sabotagem conservadora nas estruturas de mando da Polícia Federal e do Ministério Público Federal; modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista; fortalecer a ala mais avançada do Itamaraty e redimensionar sensivelmente a distribuição de verbas publicitárias para os monopólios da informação.

[5] Confiamos na governabilidade institucional, a partir de alianças ao centro, como coluna vertebral para a sustentação de nosso projeto. Ao contrário do que havia se passado em países vizinhos, o sistema eleitoral do país, tal como existe, não possibilitou que o triunfo na eleição presidencial fosse acompanhado por maioria no Congresso Nacional. Obviamente, estávamos obrigados a composições fora do campo popular, sob o risco de inviabilizarmos nossos sucessivos governos. Mas fomos acanhados ao impulsionar a luta social como vetor fundamental de pressão sobre as instituições. Em consequência, rebaixamos a disputa pública de nosso programa e o debate com as forças conservadoras, incluindo os segmentos que eventualmente integravam a base de apoio.

[6] Tampouco nos dedicamos, com a devida atenção e perseverança, à costurar uma aliança estratégica entre os partidos populares e os movimentos sociais, que pudesse ampliar o peso institucional da esquerda. Acabamos reféns de acordos táticos, imperiosos para o manejo do Estado, mas que resultaram num baixo e pouco enraizamento das forças progressistas, ao mesmo tempo em que ampliaram, no arco de alianças, o poder de fogo de setores mais à direita.

[7] A manutenção do sistema político e a preponderância excessiva da ação institucional acabaram por afetar fortemente o funcionamento do PT, confinado à função quase exclusiva de braço parlamentar dos governos petistas e reordenado como agremiação fundamentalmente eleitoral. A vida interna se estiolou, sob crescente influência de mandatos parlamentares e cargos executivos, cada vez mais autônomos em relação às instâncias partidárias. O partido perdeu capacidade de elaboração, formação e protagonismo na batalha das ideias. Milhares de novos filiados foram incorporados sem quaisquer vínculos com o pensamento de esquerda ou nosso programa.

[8] Também fomos contaminados pelo financiamento empresarial de campanhas, estrutura celular de como as classes dominantes se articulam com o Estado, formando suas próprias bancadas corporativas e controlando governos. Preservada essa condição mesmo após nossa vitória eleitoral de 2002, terminamos envolvidos em práticas dos partidos políticos tradicionais, o que claramente afetou negativamente nossa imagem e abriu flancos para ataques de aparatos judiciais controlados pela direita.

Apesar dos esforços constantes, nos últimos anos, para corrigir estes desvios, temos claro que suas sequelas debilitaram o PT e fragilizaram o conjunto da esquerda frente à escalada golpista.

A política econômica desenvolvimentista e distributivista dos nossos governos, responsável pela maior elevação do salário mínimo e da inclusão social, passou a exigir, especialmente frente ao recrudescimento da crise internacional, que o Banco Central estimulasse o investimento e não que o bloqueasse – como fez com a elevação da taxa de juros. Exigia ainda novas reformas distributivas, que gravassem progressivamente os ricos, e uma nova capacidade de planejamento e investimento do Estado – o que não ocorreu.

Ao lado das falhas propriamente políticas, demoramos a perceber o progressivo esgotamento da política econômica vigente entre 2003 e 2010, que havia levado a formidáveis conquistas sociais para o povo brasileiro. Baseada na ampliação do mercado interno a partir da incorporação dos pobres ao orçamento do Estado, com adoção de inúmeros programas voltados à inclusão social, à criação de empregos e à elevação da renda, esse modelo perdeu força com a crise internacional, a convivência com altas taxas de juros que sangravam o Tesouro e a excessiva valorização cambial.

A manutenção do ritmo de expansão do mercado interno, alicerçada nos gastos e investimentos públicos, passou a depender de reformas que diminuíssem transferências financeiras para os grupos privados, ajudassem a recompor o equilíbrio fiscal com a tributação dos mais ricos e desmontassem o oligopólio dos bancos, entre outras medidas que possibilitassem recursos para o Estado aprofundar políticas de desenvolvimento com distribuição de renda. Não se tratava simplesmente de reordenamentos orçamentários, mas de um novo ciclo programático que radicalizaria a disputa de projetos na sociedade.

O governo da presidenta Dilma Rousseff, em seu primeiro ano, optou por realizar um forte contingenciamento de despesas e investimentos, ao mesmo tempo em que elevava a taxa de juros. O crescimento do PIB, que havia sido de 7,8% em 2010, cai para 4,0% em 2011 e 2,0% em 2012. Diante destes resultados negativos, o BC derruba a taxa de juros e a União franqueia subsídios às empresas, através de desonerações fiscais, em uma política que atingiria seu ápice em 2014. Apesar de novo ciclo de elevação da taxa de juros, o PIB cresce 3,5% em 2013, mas despenca para 0,2% em 2014. A tentativa de contornar reformas estruturais, através de fortes incentivos ao investimento privado, tinha conseguido preservar o emprego, mas não relançou a economia.

Diante da crise, o país foi colocado em uma encruzilhada: acelerar o programa distributivista, como havia sido defendido na campanha da reeleição presidencial, ou aceitar a agenda do grande capital, adotando medidas de austeridade sobre o setor público, os direitos sociais e a demanda, mais uma vez na perspectiva de retomada dos investimentos privados. O governo enveredou pela segunda via.

O ajuste fiscal, além de intensificar a tendência recessiva, foi destrutivo sobre a base social petista, gerando confusão e desânimo nos trabalhadores, na juventude e na intelectualidade progressista, entre os quais se disseminou a sensação, estimulada pelos monopólios da comunicação, de estelionato eleitoral. A popularidade da presidenta rapidamente despencou. As forças conservadoras sentiram-se animadas para buscar a hegemonia nas ruas, pela primeira vez desde as semanas que antecederam o golpe militar de 1964.

O enfraquecimento da esquerda, nos meses seguintes à vitória apertada no segundo turno de 2014, rapidamente alterou a correlação de forças no país, dentro e fora das instituições. A direita retomou a ofensiva. As frações de centro, assistindo à rejeição do governo na opinião pública, começaram a se afastar da coalizão presidencial, deslocando-se para uma aliança conservadora que impôs seguidas derrotas parlamentares à administração federal.

Em que pese o alerta emitido pelo 5º. Congresso do PT, realizado em junho de 2015, – e o debate interno que se seguiu – de que era indispensável mudar a política econômica para recuperar apoio político e social, o governo prosseguiu no rumo que havia escolhido, levando ao agravamento das dificuldades. No documento “O futuro está na retomada das mudanças”, em fevereiro desse ano, a direção nacional do PT deixou claro que não seria possível conter a escalada reacionária sem expressivas alterações programáticas. O fato é que o golpismo, velozmente, criava condições para avançar, aglutinando apoio parlamentar e suporte social.

A aceitação do pedido de impeachment, no início de dezembro, depois que o PT rechaçou as chantagens do deputado Eduardo Cunha, serviu de alento à resistência democrática, que vinha acumulando forças desde março. Nos cinco meses que antecederam a abertura de processo contra a presidenta da República, centenas de milhares se colocaram em movimento por todo o país. Foram realizadas enormes concentrações populares, além de outras iniciativas que contagiaram amplos setores antigolpistas, incluindo homens e mulheres críticos ao governo.

Esta mobilização, capitaneada pela Frente Brasil Popular, na maioria das vezes em aliança com a Frente Povo Sem Medo, que contou com a forte participação do PT em todo o pais, em consonância com a resolução do nosso 5º. Congresso, estimulou a reunificação do campo de esquerda e arregimentou vozes democráticas de diversos matizes. Ainda que tenha sido insuficiente, por ora, para reverter a correlação de forças, permitiu que o bloco progressista recuperasse protagonismo e o mantivesse mesmo após a deflagração do julgamento presidencial.

O centro tático para este novo período — sob a palavra de ordem “Não ao golpe, fora Temer” –, deve ser a derrocada do governo ilegítimo que usurpou o poder e rompeu o pacto democrático da Constituição de 1988. Devemos combinar todos os tipos de ação massiva e combate parlamentar para inviabilizar suas medidas antipopulares, denunciar seu caráter ilegal e impedir sua consolidação no comando do Estado. Assume grande relevância ainda a continuidade da ação de articulações internacionais, que no último período já foram fundamentais para a denúncia do golpe em curso.

Deter o Golpe é possível, urgente e necessário. São partes essenciais deste objetivo negar legitimidade ao governo ilegítimo de Temer; fazer a defesa política da presidenta Dilma e do legado dos nossos governos; defender o presidente Lula dos ataques midiáticos e judiciais que contra ele se levantam; manter a mobilização popular em alto nível; ampliar para setores da sociedade críticos aos nossos governos o diálogo em torno de uma agenda democrática e popular para o país; lutar pela absolvição da presidenta Dilma dos crimes que lhe são injustamente imputados no Congresso Nacional, no Judiciário e junto aos organismos da comunidade internacional.

O desfecho mais próximo deste processo, que implica luta continuada e mobilizações, está na absolvição da presidenta Dilma Rousseff e seu retorno às funções para as quais o povo a elegeu. Esse é o único resultado do julgamento capaz de reconduzir o país ao domínio constitucional e à ordem democrática.

Derrotado o golpe, a presidenta Dilma Rousseff deverá apresentar seu compromisso público com uma ampla reforma política e medidas capazes de retomar o desenvolvimento, a distribuição de renda e a geração de empregos.

O Partido dos Trabalhadores propõe que a presidenta Dilma Rousseff apresente rapidamente um compromisso público sobre o rumo de seu governo depois de derrotado o golpismo, defendendo uma ampla reforma política e medidas capazes de retomar o desenvolvimento, a distribuição de renda e a geração de empregos.

Não reconhecemos o governo ilegítimo de Temer. Contra ele faremos total oposição e lutaremos até o fim nas ruas e nas instituições para derrotá-lo. Não há oposição moderada ou conciliação possível com um governo resultado de um golpe. As bancadas parlamentares do PT seguirão em combativa oposição a Temer no Congresso Nacional e ao seu programa neoliberal. Com os trabalhadores do campo e da cidade, a CUT, a Frente Brasil Popular e a Frente Povo sem Medo lutaremos contra o governo golpista e sua agenda de retrocesso de direitos e liberdades democráticas, redução dos salários, privatizações e criminalização das lutas sociais.

Sem abdicar de nossa identidade partidária e de nossas bandeiras, é fundamental, na luta de resistência, atuarmos em conjunto com a Frente Brasil Popular, com a Frente Povo Sem Medo e outras organizações dispostas a formar uma articulação unitária em defesa da democracia.

Mais que instrumento de mobilização, a FBP pode se desenvolver como espaço estratégico para todas as forças progressistas, a partir de um programa comum e regras plurais de participação, que abram caminho para sua consolidação. Orientamos toda a militância petista a se incorporar aos coletivos da Frente, impulsionando a criação de comitês e núcleos nos locais de moradia, estudo e trabalho, sempre com o cuidado de incentivar a unidade e a cooperação com ativistas das mais distintas correntes e movimentos.

Brasília, 17 de maio de 2016
Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores

A linguagem e a estrutura do texto

A linguagem e a estrutura do texto são claramente leninistas (mais de 90 anos depois do falecimento de Lenin e cerca de 30 anos após a queda do muro de Berlim e a derrocada da União Soviética). Praticamente quase todos os constructs utilizados como categorias analíticas ou descritivas na resolução são os da arte da guerra deslizada para a política ou da política como continuação da guerra por outros meios (segundo a fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin). Sim, são conceitos militares (marcados em azul no texto) como: guerra, batalha, poder de fogo, acumulação de forças, tática, estratégia, correlação de forças, ataque, escalada, hegemonia (como comando de um contingente de combate), palavra de ordem, centro de comando, ofensiva, cerco, enfrentamento, alianças (sempre no sentido instrumental do termo), frente, flanco, alvos, capitanear, arregimentar et coetera.

Notamos também a persistência da matriz interpretativa marxista-leninista da luta de classes como motor da história, como denunciam as expressões (marcadas em verde no texto): grande capital, classes dominantes, desenvolvimento capitalista, cartilha neoliberal, opção de classe, centros imperialistas, programa neoliberal, hegemonia imperialista, potências capitalistas, pacto pluriclassista, bloco progressista, trabalhadores do campo e da cidade e outras.

Mutatis mutandis, poderia ser um texto escrito pelo autocrata Vladimir Ilyich Ulyanov. Em termos de concepção, o PT continua sendo um partido marxista-leninista, ainda que, na prática, se comporte como um misto de neomaquiavelismo (dos seus operadores políticos) e gramscismo (dos seus intelectuais: uma espécie de “ajuda dos universitários”). Essa mistura de neomaquiavelismo com gramscismo é a “teoria” do neopopulismo do PT (o lulopetismo), muito semelhante aos demais neopopulismos que devastaram a América Latina na última década (como o chavismo, o kirchnerismo e os bolivarianismos em geral).

O conteúdo autocrático da autocrítica petista

Examinemos agora a autocrítica da direção partidária. As oito passagens selecionadas e reproduzidas (numeradas em vermelho no texto) revelam um pensamento antidemocrático assustador.

[1] não nos preparamos para o enfrentamento atual, ao priorizarmos o pacto pluriclassista que permitiu a vitória do ex-presidente Lula em 2002 e a consolidação de seu governo nos anos seguintes.

Aqui o PT reconhece que a aliança com outras forças políticas, supostamente de outras classes, desarmou o partido para enfrentar essas classes. Ou seja, o PT não quer ser um player normal do jogo político institucional admitido pelo Estado democrático de direito. Quer enfrentar e derrotar as demais classes e o pacto instrumental feito com elas jamais poderia ter sido priorizado em detrimento da… guerra contra elas.

[2] [não atentamos para o fato de que] a hegemonia dos trabalhadores no Estado e na sociedade não depende exclusiva ou principalmente de administrações bem-sucedidas, mas da concentração de todos os fatores na construção de uma força política, social e cultural capaz de dirigir e transformar o país.

Ou seja, a delegação da população, por meio do processo eleitoral, para escolher representantes capazes de cuidar dos interesses comuns (“administrações bem-sucedidas”) não é o que importa e sim usar esse processo para construir uma força capaz de se sobrepor às demais para dirigir e transformar (sozinha ou apenas com os seus) o país.

[3] relegamos tarefas fundamentais como a reforma política, a reforma tributária progressiva e a democratização dos meios de comunicação.

Aqui aparece a primeira medida autocrática, eufemisticamente chamada de “democratização dos meios de comunicação”, que visa, na verdade, não democratizar esses meios e sim quebrar o seu suposto monopólio, arrancá-los das mãos dos seus empreendedores ou coagi-los e dirigi-los a partir do controle social (na verdade, partidário-governamental) da mídia.

[4] Fomos igualmente descuidados com a necessidade de reformar o Estado, o que implicaria impedir a sabotagem conservadora nas estruturas de mando da Polícia Federal e do Ministério Público Federal; modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista; fortalecer a ala mais avançada do Itamaraty e redimensionar sensivelmente a distribuição de verbas publicitárias para os monopólios da informação.

Aqui é onde o texto mais se denuncia. A reforma do Estado ideada (e não realizada: daí a autocrítica) pelo PT previa:

a) ter o controle da Polícia Federal e do Ministério Público Federal;

b) modificar os currículos das academias militares (introduzindo, por suposto, as mesmas visões que foram expressadas ou estão subsumidas na resolução aqui apreciada);

c) controlar o processo de promoção de oficiais (tal como fez o chavismo e os demais bolivarianismos), premiando aqueles que se sujeitassem as orientações do governo (desfigurando sua natureza estatal e não-governamental e partidarizando essas forças, tal como fez o chavismo e os demais bolivarianismos);

d) ideologizar ainda mais a política externa brasileira, alinhando-a aos regimes de esquerda ou anti-imperialistas (como o castrismo, o chavismo e os demais bolivarianismos e, possivelmente, o putinismo);

e) usar a distribuição de verbas publicitárias (do governo e das empresas estatais e assemelhadas) como um meio de controlar a mídia.

[5] Confiamos na governabilidade institucional, a partir de alianças ao centro, como coluna vertebral para a sustentação de nosso projeto. Ao contrário do que havia se passado em países vizinhos, o sistema eleitoral do país, tal como existe, não possibilitou que o triunfo na eleição presidencial fosse acompanhado por maioria no Congresso Nacional. Obviamente, estávamos obrigados a composições fora do campo popular, sob o risco de inviabilizarmos nossos sucessivos governos. Mas fomos acanhados ao impulsionar a luta social como vetor fundamental de pressão sobre as instituições. Em consequência, rebaixamos a disputa pública de nosso programa e o debate com as forças conservadoras, incluindo os segmentos que eventualmente integravam a base de apoio.

A passagem acima é curiosa. O PT alega que, ao contrário do que ocorreu nos países bolivarianos, o sistema eleitoral brasileiro não permitiu que a eleição de um presidente fosse acompanhada da eleição de uma maioria parlamentar subordinada ao presidente eleito (quer dizer, ao Executivo). Isso teria obrigado o PT – oh! tragédia – a ter que fazer alianças com outros atores políticos, representantes das elites (em vez de simplesmente impor a eles sua vontade). Note-se que o PT aponta como erro confiar na governabilidade institucional a partir de alianças fora do seu campo (ou seja, para todos os efeitos, a partir de alianças). A institucionalidade democrática serve apenas para ser usada para uma acumulação de forças suficiente para dispensá-la.

[6] Tampouco nos dedicamos, com a devida atenção e perseverança, à costurar uma aliança estratégica entre os partidos populares e os movimentos sociais, que pudesse ampliar o peso institucional da esquerda. Acabamos reféns de acordos táticos, imperiosos para o manejo do Estado, mas que resultaram num baixo e pouco enraizamento das forças progressistas, ao mesmo tempo em que ampliaram, no arco de alianças, o poder de fogo de setores mais à direita.

A mesma visão instrumental do parágrafo anterior se repete aqui. Estratégico é o campo (da esquerda, popular) capaz de destruir o outro campo (da direita, dos conservadores, das elites). Todo resto é tático e serve apenas para conduzir ao que é estratégico (ter poder para mandar nos inimigos – os outros – e destruí-los, não conviver com eles no jogo democrático).

[7] A manutenção do sistema político e a preponderância excessiva da ação institucional acabaram por afetar fortemente o funcionamento do PT, confinado à função quase exclusiva de braço parlamentar dos governos petistas e reordenado como agremiação fundamentalmente eleitoral. A vida interna se estiolou, sob crescente influência de mandatos parlamentares e cargos executivos, cada vez mais autônomos em relação às instâncias partidárias. O partido perdeu capacidade de elaboração, formação e protagonismo na batalha das ideias. Milhares de novos filiados foram incorporados sem quaisquer vínculos com o pensamento de esquerda ou nosso programa.

Nesta passagem o PT lamenta ter se institucionalizado a ponto de virar um mero player do jogo democrático representativo, desfigurando-se como força de combate (capaz de vencer a guerra contra os representantes de outras classes).

[8] Também fomos contaminados pelo financiamento empresarial de campanhas, estrutura celular de como as classes dominantes se articulam com o Estado, formando suas próprias bancadas corporativas e controlando governos. Preservada essa condição mesmo após nossa vitória eleitoral de 2002, terminamos envolvidos em práticas dos partidos políticos tradicionais, o que claramente afetou negativamente nossa imagem e abriu flancos para ataques de aparatos judiciais controlados pela direita.

Nesta última passagem selecionada há uma mentira descarada: a de que o PT foi tragado pela corrupção tradicional das elites políticas, supostamente derivada do financiamento empresarial de campanha. O PT teria sido apenas envolvido nas práticas habituais da velha política (é o chamado “Golpe Thomaz Bastos”, repetido em Paris, no final de 2005, por Lula: o PT errou porque acabou fazendo o que todo mundo faz, ou seja, caixa 2). Nenhuma palavra sobre o formidável esquema de corrupção sistêmica articulado e operado pelo PT. Há ainda uma versão sórdida ao final: a de que dirigentes partidários não estariam sendo investigados, acusados, processados, julgados e apenados em razão dos crimes que cometeram e sim por força de ataques “de aparatos judiciais controlados pela direita”.

Conclusão

A conclusão é óbvia. Um partido cuja direção suprema assina um documento como este não é um player válido do jogo democrático. O que o PT não disse – por motivos táticos – no documento, foi reconstruído aqui. Mas o que ele disse já é suficiente para a conclusão que se impõe.

Somos obrigados a voltar às perguntas clássicas dos democratas atenienses que levaram Sócrates a julgamento:

Qual o grau de tolerância que a democracia deve ter em relação aos inimigos da democracia?

Até que ponto devemos dar liberdade aos que querem acabar com a liberdade?

Até que ponto é possível conviver com os que parasitam a democracia com o propósito de aboli-la ou restringi-la?

Estas perguntas não devem ser respondidas em função do que o PT diz, ou seja, da expressão das suas convicções antidemocráticas (porque até isso é admissível numa democracia) e sim do que o PT faz concretamente.

Se, adicionalmente, esse partido, para alcançar seus objetivos, expressos ou inconfessados, viola a legalidade e degenera a institucionalidade vigentes, assaltando o Estado, saqueando os cofres do governo, das empresas estatais e dos fundos de pensão, então ele não pode ser reconhecido como um player legítimo da democracia e não pode ter sua existência tolerada pelo Estado democrático de direito.

Alguns talvez discordem dessa avaliação, com a mesma leniência (beirando a conivência) com que discordaram do impeachment de Lula logo após o escândalo do mensalão em 2005, com que avalizaram Dilma como uma pessoa honrada e com que resistiram, até onde foi possível, ao seu impeachment após os processos do mensalão em 2015 e 2016. E estariam resistindo até hoje não fossem as grandes manifestações sociais de 15 de março, de 12 de abril, de 16 de agosto de 2015 e de 13 de março de 2016. Como recalcitraram no erro, mostrando-se irresponsáveis, não podem ser levados em conta pelos que defendem a democracia.

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