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O que é democracia

Com este artigo inauguramos em Dagobah uma seção de Textos Teóricos sobre a democracia. Clique no link para ler outros papers.

A democracia não tem fundadores. E nem nasceu de um ato heroico qualquer. Seus principais protagonistas foram um carinha chamado Péricles, acusado muitas vezes de corrupção e de violação das normas vigentes, inclusive para favorecer um filho e sua amante, considerada mulher dissoluta (e acusada de puta mesmo) chamada Aspásia (que nem ateniense era e sim de Mileto). Além desse operador e dessa, vale dizer, “animadora”, havia um filósofo sofista, acusado por Platão e pelos herdeiros da entourage original de Sócrates de vigarista (de cobrar de jovens alunos por sua mentoria filosófica que não passava de treinamento em artifícios de argumentação circular) chamado Protágoras. Todos falíveis. Todos pessoas comuns. E só puderam exercer o protagonismo que exerceram em Atenas, na invenção da primeira democracia, porque eram pessoas falíveis e comuns. Porque não eram santos nem heróis. Porque não eram muito limpos e não queriam purificar a cidade daquela sujeira pegajosa que não sai de nós quando ralamos para cima e para baixo na praça do mercado. Porque não queriam erigir uma arquitetura urbana baseada em linhas retas, para as pessoas irem direto, sem grandes riscos, de um lugar privado para outro.

Não era uma ideologia e por isso é tão descabido compará-la com qualquer coisa como anarquismo ou socialismo. Não era um igualitarismo, impossível àquela altura até mesmo como ideia, a não ser para os deslizadores epistemológicos, que querem projetar na história antiga condições contemporâneas, sem qualquer pejo hermenêutico de fazer tais transposições indevidas. E é bom notar isso porque continua na cabeça desse pessoal a ideia de que a democracia grega não era tão boa assim já que os escravos, os estrangeiros e as mulheres dela não podiam participar (sem ver que ainda hoje os estrangeiros ainda não podem e que as mulheres só muito recentemente, no século passado – ou seja, dois mil e quinhentos anos depois – conquistaram tal direito).

Não era um modelo de sociedade ideal. Nasceu quando se conformou uma rede de conversações na praça do mercado e as pessoas resolveram então resistir à continuidade no governo da dinastia dos psistrátidas (os filhos do tirano Psístrato, o autocrata que havia cometido um golpe de Estado em Atenas alguns anos antes). Nasceu como uma iniciativa local, sem pretensão utópica de buscar qualquer tipo de perfeição, sem querer consertar algum suposto defeito de fábrica do ser humano ou da sociedade. Foi desenhada casuisticamente para impedir a volta de tiranias. E saiu – só podia – um troço assim meio desarranjado mesmo: curvo, sujo e imperfeito. Ainda bem.

Ainda bem que assim nasceu a primeira democracia: como um movimento de desconstituição de autocracia. Ou seja, o que foi desencadeado no entorno daquele ano de 509 a. E. C. foi um processo de democratização. Só por isso podemos chamar com a mesma palavra (democracia) o processo que ocorreu até 322 em Atenas (e, talvez, adjacências), naquela experiência fundante que foi ensaiada pelos antigos gregos e as tentativas dos modernos de refrear o poder despótico de Carlos I, na Inglaterra (quando a democracia foi reinventada como democracia representativa, constrangendo-se a ser uma forma de administração de uma estrutura guerreira, nascida da paz de Westfalia, chamada Estado-nação), ou às tentativas de estabelecer regimes ex parte populis em outros lugares da Europa e, sobretudo nos Estados Unidos. Foi essa segunda democracia que se expandiu, notadamente no século 20, para outros países, constituindo Estados democráticos de direito minimamente capazes de observar a liberdade, a publicidade ou transparência, a eletividade, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade e, como consequência de todos esses princípios ou critérios, a legitimidade.

Mas as democracias realmente existentes (coexistindo num mundo onde remanescem 60 ditaduras e pouco mais de um centena de regimes híbridos: autocracias em processo de democratizaçação, democracias em processo de autocratização, protoditaduras, democracias flaweds e democracias parasitadas por governos neopopulistas manipuladores) não são regimes perfeitos. Nelas o processo de democratização (que é, de fato, o que devemos entender quando falamos de democracia) é fortemente constrangido pelas remanescências hierárquicas e autocráticas que estão presentes no Estado-nação. Assim, remanescem também, em maior ou menor grau, quistos autocráticos, dinâmicas autocráticas e, consequentemente, comportamentos autocráticos nas democracias realmente existentes (em especial aqueles voltados para a guerra, quer dizer, para a construção e manutenção de inimigos como pretexto para organizar cosmos sociais segundo padrões hierárquicos regidos por modos autocráticos de regulação: seja a guerra quente, seja a guerra fria, seja a política praticada como arte da guerra, quer dizer, como continuação da guerra por outros meios). Acrescente-se que mesmo essas tentativas fugazes de adotar a democracia (ou experimentar processos de democratização) nunca conseguiram se exercer no plano internacional, onde vige a política do equilíbrio competitivo ou realpolitik (que é autocrática).

Portanto não há um modelo de democracia que possa servir de referência para se dizer o que é e o que não é democracia. Toda vez que o processo de democratização consegue, mesmo intermitentemente, prosseguir, dizemos que estamos numa democracia, devendo-se entender por isso o seguinte: estamos conseguindo tornar modos de regulação de conflitos menos autocráticos e padrões de organização menos hierárquicos, nada garantindo, porém, que vamos definitivamente para o céu: sempre pode haver retrocesso quando – no caso da democracia dos modernos (a democracia representativa realmente existente nos países que a adotam) – restringe-se a liberdade, viola-se a publicidade, frauda-se a eletividade, falsifica-se a rotatividade, descumpre-se a legalidade e degenera-se a institucionalidade. Quando algumas dessas coisas são feitas a partir de certo grau que começa a inviabilizar a continuidade do processo de democratização, dizemos que não estamos mais numa democracia (ou seja, que a democracia que temos não está mais conformando-se como um ambiente favorável a caminharmos em direção à democracia que queremos). Mas os limites não são fixos.

Cabe frisar que se a democracia, no sentido forte do conceito, é um movimento de desconstituição de autocracia, tal processo se fragiliza toda vez que as eleições são usadas contra esse sentido. Como isso está ocorrendo com frequência, o sistema representativo está batendo nos seus limites. Sistemas eleitorais em países que não são democráticos estão sendo usados contra o processo de democratização que emerge das manifestações das sociedades por mais liberdade. Vejamos alguns exemplos recentes:

[] Uma forte fermentação social eclodiu na Síria em janeiro de 2011, até que a guerra veio e matou a rede (sim, a guerra é feita para isso) e o pior momento para o possível florescimento de um processo de democratização naquele país foi o 4 de junho de 2014 (dia da reeleição fajuta do ditador-genocida Assad).

[] Um processo de democratização construído pela sociedade egípcia teve seus pontos fortes em 11 de fevereiro de 2011 na Praça Tahrir (que levou à queda do ditador Mubarak) e de novo em 30 de junho de 2013 em todas as cidades do Egito (que levou à queda de Morsi, o jihadista da Irmandade Muçulmana, mas não em 17 de junho de 2012, dia da sua eleição).

[] O mesmo ocorreu em maio de 2013 na Turquia (mas não em 10 de agosto de 2014, dia da reeleição do protoditador Recep Erdogan).

O que significa tudo isso? Significa processos (formais) eleitorais conspirando contra o processo (substantivo) de democratização.

É claro que – nos países formalmente democráticos – devemos defender a democracia que temos contra qualquer tentativa de autocratização. Mas sem deixar de reconhecer que a democracia que temos não está mais conformando um ambiente muito favorável à caminhada em direção à democracia que queremos. O que significa que o sistema não pode ser consertado por dentro, elegendo-se pessoas boas, como recomendam os que querem congelar uma forma de democracia (a democracia representativa) surgida no século 17. A questão é a continuidade do processo de democratização e não a manutenção de um modelo.

A continuidade do processo de democratização (ou de democratização da democracia) precisa das formas atuais da democracia realmente existente, mas não terá solução nos ambientes configurados por essas formas. Ou seja, se os problemas da democracia representativa não podem ser resolvidos com a abolição da democracia representativa, eles também não podem ser resolvidos nos marcos da própria democracia representativa. Os ápices da democracia estão hoje, portanto, nas novas experimentações de democracia que sejam: mais distribuídas, mais interativas, mais diretas, regidas mais pela lógica da abundância do que da escassez, mais vulneráveis ao metabolismo das multidões e mais responsivas aos projetos comunitários, mais cooperativas, mais diversas e plurais (não admitindo apenas uma única fórmula internacional mas múltiplas experimentações glocais). Ora, tudo isso aponta para uma nova reinvenção da democracia.

Mas mesmo nos países democráticos atuais, o processo eleitoral tem sido usado, em muitos casos, para enfrear a democracia, não para consolidá-la, expandi-la ou democratizá-la (quer dizer, para dar continuidade ao processo de democratização). Em muitos casos, sobretudo na América Latina, as eleições têm sido instrumentalizadas como artifício de um grupo privado autocrático contra a democracia. Como se sabe, além de não ter proteção eficaz contra o discurso inverídico, a democracia também não tem proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia.

Uma abordagem social da democracia

Por que e como foi inventada a democracia? Até hoje os estudiosos têm imensa dificuldade de decifrar o que ocorreu. Não estabelecem as conexões necessárias e não reconhecem os padrões sem os quais não se pode desvendar o sentido das configurações coletivas que se constelaram. Não há, portanto, uma compreensão propriamente social do surgimento da democracia. Ou, quando há, é uma lástima: tomam por social aquilo que diz respeito às condições de vida (em geral de sobrevivência) das populações e não à fenomenologia da interação, quer dizer, o fluxo da convivência social.

Alguns pensadores do século passado conseguiram captar o “gene” (ou o meme) original democrático – como John Dewey, Hannah Arendt e Humberto Maturana (entre outros; poder-se-ia citar também Claude Lefort, Cornelius Castoriadis e Amartya Sen) – mas a maioria dos teóricos da política ficaram presos aos esquemas explicativos da modernidade que replicavam visões em que o social era uma espécie de epifenômeno (na verdade, para a maioria deles só existiam os indivíduos, o mercado e o Estado) e, assim, não conseguiram perceber os condicionamentos recíprocos entre o padrão (social) de organização e modo (político) de regulação.

Ora, do ponto de vista social, a democracia é um erro no script da Matrix. Não se explica de outra maneira. Não era necessária. Nem foi o resultado de qualquer “evolução” social. Não surgiu dos interesses privatizantes de alguma corporação. Surgiu em uma cidade no mesmo momento em que nela se conformou um espaço público.

Os teóricos políticos do século passado, porém, não podiam se conformar com isso. Viciados na ideia (ou no esquema explicativo) de determinação de uma superestrutura por uma estrutura (um velho vício de raiz iluminista difundido pelo marxismo), queriam sempre surpreender o que está debaixo do pano, queriam desvendar a máquina que estaria por trás do que acontece na vida fenomênica. Destarte, por não encontrar o mecanismo oculto (em geral econômico, como acreditam) que estaria determinando uma nova criação política, suas análises não foram (e ainda não são, posto que esses teóricos remanescem no século atual) capazes de revelar que estamos diante de um esgotamento da democracia dos modernos e da possibilidade de emergência de uma nova democracia. Há, ademais, um problema de pressupostos.

Os analistas políticos, em sua maioria, pensam a partir de um conjunto de pressupostos, raramente discutidos porquanto tomados como verdades evidentes por si mesmas: o primeiro deles é que o ser humano é inerentemente competitivo (postulado largamente falsificado pelas evidências e, portanto, impossível de ser sustentado pela ciência, tendo status semelhante ao de uma crença de natureza religiosa) e faz escolhas racionais tentando maximizar a satisfação de seus interesses egotistas (quando todas as evidências apontam que na raiz da ação dos humanos – e até dos mamíferos em geral – está mais uma emotional motivation do que uma rational choice); o segundo é que sem líderes destacados não se pode mobilizar e organizar a ação coletiva (o que vem sendo refutado fartamente pelos fatos: sobretudo pelos aglomeramentos, enxameamentos e amassamentos que vêm ocorrendo com cada vez mais frequência em sociedades altamente conectadas); e o terceiro é que nada pode funcionar sem um mínimo de hierarquia (idem, do contrário não estaríamos assistindo a profusão de redes mais distribuídas do que centralizadas).

Além disso, os analistas políticos, de maneira geral, baseiam suas análises no suposto de que o conteúdo (do que flui) é relevante para explicar a “realidade” (o que acontece), confundindo informação (mensagem transmitida-recebida) com comunicação (acoplamento estrutural), longe de perceber que o comportamento coletivo é função da fenomenologia da interação (estando os fenômenos interativos, por sua vez, na dependência não de conteúdos e sim do padrão de organização: basicamente, dos graus de distribuição e conectividade da rede social).

Quando é que tudo muda nas análises da democracia? Quando descobrimos que movimentos de desconstituição de autocracia são acompanhados por movimentos de desconstituição de hierarquia.

A democracia pode se democratizar (ou se radicalizar, a ponto de ser considerada uma pluriarquia) em redes com alto grau de distribuição (e, consequentemente, com altos graus de conectividade e interatividade). Dizendo de modo mais preciso: os processos de democratização tenderão a ter continuidade na medida em que as sociosferas onde ocorrem forem adquirindo uma topologia mais distribuída do que centralizada.

Porque a democracia é uma espécie de “metabolismo” da rede social, cujo “corpo”, a estrutura, o hardware, é dado pelo padrão de organização. Mas esse “metabolismo”, essa dinâmica do modo de regulação, não é uma imanência, não emerge automaticamente da estrutura, em função do seu padrão de organização. Democratização (do modo de regulação) e distribuição (da rede) acontecem ao mesmo tempo, ou melhor, são fenômenos acompanhantes, sinergicamente acompanhados um do outro, mas não causados um pelo outro.

O padrão de organização condiciona possibilidades. Quanto mais centralizada for a topologia da rede, menos chance terá o processo de democratização de prosseguir. Mas mesmo em padrões mais distribuídos do que centralizados, ainda assim é necessário que haja ação política para instaurar modos de regulação crescentemente democráticos. Ações políticas democratizantes, entretanto – eis o ponto – ou serão acompanhadas por mudanças estruturais que tornem a rede mais distribuída ou terão menos chances de prosseguir (e de perdurar). Ora, tornar a rede mais distribuída significa, exatamente, desconstituir hierarquia. Assim como a democracia pode ser tomada, no sentido “forte” do conceito, como movimento de desconstituição de autocracia, as redes distribuídas podem ser tomadas como movimentos de desconstituição de hierarquia, sendo que esses processos estão ligados, não por causalidade direta nem automática e sim por condicionamentos recíprocos.

Pode-se dizer que tanto a expansão da liberdade quanto a incidência da cooperação (que ocorre na medida em que a rede se torna mais distribuída) são atributos do modo como os seres humanos se organizam (e nada mais). Mas não há uma fórmula organizativa capaz de produzir automaticamente liberdade sem política. É o processo político de desconstituir autocracia que amplia os graus de liberdade. E é o processo de netweaving, de desconstituir hierarquia, que amplia a cooperação.

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