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O que está acontecendo com os jornalistas?

Há algo estranho acontecendo “com essa prodigiosa e extraordinariamente turva operação de artilharia em torno do mandato do presidente da República”, como bem caracterizou o decano José Roberto Guzzo. Não é necessário rememorar os passos da verdadeira guerra aberta para que um presidente da República renunciasse ao seu mandato constitucional em até 24 horas, antes mesmo de conhecer – porque não lhe foi dado conhecimento – o que realmente havia contra ele. O que é estranho é que tal operação não poderia ter sido feita sem o apoio, consciente ou inconsciente, de jornalistas e analistas políticos. Este é o ponto que será analisado no presente artigo.

Podemos levantar algumas hipóteses para explicar por que muitos jornalistas a analistas sérios, que aprendemos a admirar e respeitar, entraram no jogo ou caíram na armadilha.

A primeira hipótese, a mais óbvia e não por isso a menos provável, é a de sempre. Alguns donos de meios de comunicação resolveram entrar de cabeça – o que foi indisfarçável, todas as justificativas em contrário soaram ridículas – na armadilha Janot-Fachin. Notadamente a Globo – o jornal O Globo, a TV Globo (Jornal Nacional e Fantástico) e, por incrível que pareça, até a Globo News (envolvendo todo o jornalismo, inclusive o Jornal das 10). Por que fizeram isso não se sabe. As especulações sobre dívidas do grupo empresarial – que seriam perdoadas ou diminuídas pelo sucessor de Temer – estão baseadas em evidências muito fracas.

A segunda hipótese é a de que os jornalistas e analistas políticos realmente ficaram convencidos, diante das “provas” apresentadas (em especial a estranha conversa entre Joesley e Temer, gravada pelo primeiro), de que o presidente era culpado de um horrível delito. Custa a crer que pessoas experimentadas tenham caído nesse conto do vigário na medida em que todos os presidentes recebem pessoas fora da agenda, a qualquer hora do dia ou da madrugada, todos os presidentes conversaram, em algum momento, com pessoas que foram acusadas e até presas e nenhum presidente, ao que se saiba, deu voz de prisão a algum desses interlocutores.

A terceira hipótese é a de que as redações de jornais e as equipes de jornalismo televisivo estão coalhadas de petistas, vomitados pelas faculdades totalmente aparelhadas pelo PT. Sim, é verdade que existem muitos petistas empregados nos meios de comunicação. Também é verdade que eles foram deformados pelos cursos universitários de jornalismo. Mas isso não explica o fato de jornalistas e analistas mais antigos, com longa trajetória, terem também aderido às narrativas da Procuradoria Geral da República. Mesmo porque parte desses jornalistas e, sobretudo, desses analistas, é conhecida e reconhecida por sua posição crítica ao PT (desde que surgiu o mensalão e até antes).

Há uma quarta hipótese, mais complexa, envolvendo uma apreciação do ponto de vista da nova ciência das redes. Jornalistas e analistas políticos aderem sem sentir à realpolitik. Isso acontece porque, como cronistas da corte, eles não pensam a política ex parte populis e sim ex parte principis. Em vez de se preocuparem com a construção de arranjos sustentáveis de governança em sistemas complexos, envolvendo o Estado e a sociedade, eles ficam focados na governabilidade como capacidade de governo de quem governa. Assim, diante de uma crise que afeta o governante da vez, não lhes ocorre mais nada além de especular com um nome capaz de substituir quem governa a partir da lógica interna do funcionamento do Estado. Como essa visão é generalizada, cada jornalista ou analista acaba clonando e repercutindo o que dizem seus pares e quase todos os meios de comunicação, incluindo blogs, sites e mídias sociais mal-usadas como ferramentas de broadcasting, repetem mais ou menos as mesmas notícias e análises, inclusive as mesmas especulações, gerando uma reverberação que retroalimenta suas hipóteses. Ficam então todos torcendo para que a profecia repetida se realize. Isso cria uma realidade virtual que acaba interferindo fortemente na política: quando um comportamento de manada (ou herding, apenas uma fenomenologia da interação – genericamente: flocking – baseada em clustering e cloning com feedback positivo) afeta os agentes políticos que leem o que escrevem esses jornalistas e analistas (e quando são entrevistados por eles, acabam emprenhados pelo ouvido, quer dizer, inoculados pelas perguntas que seguem um mesmo padrão). A realidade, então, fica rodando, quer dizer, se repetindo, em torno da sua crônica, até que a própria crônica acaba por substituir a realidade. É assim que jornalistas e analistas fazem política, muitas vezes sem saber de que modo estão interferindo, cavando sulcos para fazer escorrer por eles as coisas que ainda virão. Ou seja, para resumir, uma vez iniciado, por qualquer razão, o movimento interpretativo que gera a primeira versão, todo o restante fica dependendo dessa versão e a trajetória das versões futuras fica determinada por path-dependence. Foi um absurdo um presidente da República receber um bandido secretamente, a noite e fora da agenda, ele próprio confirmou isso, logo, seja qual for o teor da conversa que realmente travaram, ele já é culpado confesso. A sentença já está dada. Ponto final.

Não há outra hipótese para explicar o que vem acontecendo desde 17 de maio de 2017, quando a notícia foi vazada para o colunista de O Globo, Lauro Jardim. Na falta de uma explicação melhor, pode-se supor que as quatro hipóteses, aventadas acima, são válidas, em alguma medida (mas não se sabe em qual medida cada uma delas se aplica).

Claro que nem todos os jornalistas e analistas políticos caíram na farsa. J. R. Guzzo, por exemplo, não caiu. Na edição de Veja que está nas bancas, na última página, ele questionou a operação “derruba Temer, premia os Friboys” com uma análise crítica razoável. O que não se consegue explicar direito é por que outros jornalistas e analistas políticos não tenham levantado também tais questionamentos. Sim, porque – com raras exceções, algumas até exageradas, como a do blogueiro Reinaldo Azevedo, ex-Veja, hoje Rede TV – não ocorreu a esses valorosos agentes da comunicação nem mesmo levantar uma dúvida razoável sobre todo o imbroglio.

Não importa se ainda vão aparecer provas mais fortes contra Temer. Os jornalistas e analistas que participaram, consciente ou inconscientemente, de modo planejado ou objetivo, da operação de incineração política do presidente, não podiam – e ainda não podem – saber se essas provas existem de fato. Ou seja, não é que eles saibam de alguma coisa que nós não sabemos. Eles não sabem. Podem, apenas, ter acreditado no que lhe sopraram suas fontes. Mas isso não vale, na medida em que essas fontes estavam querendo validar uma armação.

Jornalistas e analistas experimentados estão acostumados a avaliar com cuidado as revelações que recebem. Mesmo a ânsia pelo furo não justifica embarcar numa canoa furada. A impressão que se tem, infelizmente, é que esses profissionais da comunicação resolveram conscientemente tomar uma posição. Se isso for verdade, os efeitos dessa atitude sobre suas reputações serão desastrosos.

Talvez seja bom que jornalistas e analistas que se mostraram tão afoitos, tão acríticos e tão pouco cuidadosos, reflitam um pouco sobre tudo isso lendo ou relendo as ponderações do velho Guzzo, que não é besta para se deixar hipnotizar pelos aprendizes de feiticeiros do ministério público e do judiciário. Segue abaixo o artigo que ele publicou na Veja desta semana

TODOS LEIGOS

J. R. Guzzo, Veja, 07/06/2017

O BRASIL DE HOJE está dividido em dois tipos de gente. De um lado, há os que mandam na aprovação de leis e, principalmente, na sua aplicação. São os políticos, que executam a primeira tarefa do jeito que se sabe, e depois deles camadas sucessivas de advogados caros ou influentes, desembargadores, procuradores gerais ou parciais, ministros de tribunais superiores e, acima de todos, os onze cidadãos que estão no momento no Supremo Tribunal Federal; frequentemente, chamam a si mesmos de “juristas”. Do outro lado estão os “leigos” — todos os demais cidadãos brasileiros, cujo papel é obedecer a tudo o que o primeiro grupo decide. Não apenas obedecer: têm de estar de acordo, sob pena de serem acusados, justamente, de “leigos”. É mau negócio ser leigo neste país. Na melhor das hipóteses, para os que controlam o aparelho legal, esse indivíduo é um ignorante que jamais sabe o que está falando, não tem capacidade mental para entender as decisões dos juristas e acha que o triângulo tem três lados, quando pode ter cinco, sete ou qualquer número que os magistrados resolvam, pois “decisão judicial não se discute, cumpre-se”. Na hipótese pior, os leigos que discordam de algum desses decretos imperiais — diversos deles, comicamente, são chamados de “monocráticos”, ou tomados por uma pessoa só, no palavreado da moda — são denunciados como “inimigos do Estado de Direito”.

Justamente agora, com essa prodigiosa e extraordinariamente turva operação de artilharia em torno do mandato do presidente da República, o Brasil está vivendo um dos grandes momentos da charada judicial aqui descrita. A questão realmente central, ai, é a seguinte: continua incompreensível, há mais de vinte dias, por que um empresário que confessou oficialmente crimes capazes de lhe render dezenas de anos de cadeia foi perdoado pelo procurador-geral da República, e por um ministro do STF, de todos os delitos que tinha confessado, junto com o irmão, e para o resto da vida; não enfrentará um único processo penal na Justiça brasileira nem ficará um minuto na cadeia. No momento, relaxa no exterior na companhia de seu iate, ou de seus bilhões, ou de outros confortos. Um cidadão em atraso com o pagamento de pensão alimentícia, por exemplo, está em situação muito mais perigosa que ele e o irmão perante a Justiça nacional. É impossível entender: está escrito na lei que é proibido subornar, mas os juristas — no caso, o PGR e o ministro “monocrático” do STF — podem perfeitamente decidir que é permitido, sim senhor, cometer o crime de suborno quando ambos decidirem que é.

O PGR e o seu entorno nos garantem que, sem o perdão dado aos delatores, crimes muitíssimo mais graves ficariam “sem punição”. Como ele pode ter certeza disso? Quer dizer que crimes, no Brasil, só podem ser apurados se houver delação? E que crimes monumentais seriam esses? Como garantir, também, que serão punidos? Nada disso é explicado com um mínimo de lógica. A aberração toda fica especialmente agressiva quando se pensa, por dois minutos, que o procurador, sobretudo um que procura “geral” e procura para ninguém menos que a “República”, é pago pelo contribuinte para colocar criminosos na cadeia — e não para fazer o contrário, permitindo que escapem para Nova York no seu jato particular Gulfstream Aerospace G550, com capacidade de levar até vinte passageiros. Mas tudo isso só é incompreensível para o leigo, esse amador ingênuo, chato e incapaz de raciocinar como um jurista; é um bobo que utiliza a palavra “justiça” e acredita que a autoridade pública deva tomar decisões “justas”. Para os que influem ou mandam no sistema judiciário brasileiro, o leigo, tristemente, é incapaz de pensar como um profissional sério da ciência jurídica. Ali, como sabem as pessoas realmente qualificadas para tomar decisões legais, o que importa não é a aplicação do conceito romântico, tolo e pedestre de “justiça”, e sim a aplicação da “lei”; não interessa que as decisões sejam “justas”, e sim que sejam “legais” — isto é, que estejam de acordo com o que os altos tribunais decidirem.

Você acha uma alucinação que criminosos confessos como os irmãos Joesley e Wesley Batista recebam permissão legal para praticar crimes, como, por exemplo, subornar com 50 000 reais por mês um procurador federal de Justiça? Ou não acha certo que dois bilionários possam comprar a sua impunidade com dinheiro — no caso, menos de 11 bilhões de reais, a ser pagos em prestações ao longo de 25 anos? Problema seu. Você é um leigo. Cale a boca. Caia fora.

Na revista Exame que está nas bancas, Guzzo também demonstrou estupefação com a armadilha Janot-Fachin. Segue abaixo um trecho:

“… incomoda a maneira abusiva, oculta e cada vez mais suspeita, do ponto de vista legal, com que está sendo conduzida a guerra contra o presidente.

Foi estranhíssima, desde o início, a conduta do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e de sua equipe no Ministério Público nas acusações feitas contra Temer. Depois, foi ficando mais estranha ainda. No aspecto mais alarmante de seu conjunto de ações, continua incompreensível o fato de os donos da maior empresa privada do Brasil, a JBS, que confessaram uma massa de crimes capaz de lhes render dezenas de anos de prisão, caso condenados, ter sido presenteados pelo procurador-geral com um extraordinário perdão em relação a tudo que fizeram. Se as coisas continuarem assim, jamais serão julgados perante a Justiça brasileira pelos crimes que confessaram ─ jamais usarão, nem sequer por um dia, a tornozeleira da da prisão domiciliar. Em troca, ofereceram ao MP denúncias até agora contaminadas por todo tipo de dúvida ─ a começar por uma fita gravada de uma conversa entre Temer e um dos donos da JBS tecnicamente arruinada como prova e considerada imprestável. O ex-braço direito de Janot na PGR, até março último, trabalha hoje no escritório de advocacia que defende os empresários. Filmagens constantes da denúncia não foram feitas pela Polícia Federal, e sim por “uma equipe” da PGR. Não se sabe, também, por que os procuradores não fizeram nenhuma perícia das fitas gravadas, por que deixaram sob controle do delator uma parte crucial da operação e por que fecharam em menos de um mês, com a aprovação do ministro Edson Fachin, do STF, um acordo explosivo como esse. Não se sabe, na verdade, mais uma montanha de coisas. Resultado: a história toda encontra-se no momento debaixo de uma nuvem tóxica com a pior das aparências. Qui custodiet custodes? Quem vigia quem nos vigia?”

Seja Temer culpado de tudo de que é acusado e mais um pouco, seja ele o maior bandido da galáxia (e não sabíamos), não é justificável, numa democracia, o ataque especulativo (em termos políticos e, talvez, até econômicos) que seu governo sofreu nos últimos dias. Objetivamente, a operação teve sucesso. Numa tacada só desestabilizou o governo, inculpou os tucanos e tirou Lula (o chefe) do foco. Com a ajuda de jornalistas e analistas políticos que aprendemos a admirar.

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