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Oito ideias conservadoras

Examinemos algumas ideias que fazem parte de conversações conservadoras ou liberal-conservadoras (e que, a rigor, dificultam a apreensão da democracia). Algumas dessas ideias são compartilhadas também em conversações entre pessoas que abraçam diferentes narrativas marxistas e que se dizem “de esquerda” ou revolucionárias – o que é um sinal de que o pensamento conservador está presente em todo espectro ideológico ou filosófico-político e que não devemos nos impressionar com o que os conservadores de qualquer matiz – sejam inspirados em Edmund Burke, Michael Oakeshott, Roger Scruton, Russell Kirk ou quaisquer outros – falam sobre si mesmos. Na verdade, aos democratas interessa pouco a discussão sobre a caracterização de correntes de pensamento que almejam definir uma identidade e conquistar seguidores. No plano teórico o que interessa aos democratas é saber quais são, substantivamente, as ideias que favorecem ou dificultam o processo de democratização. As oito ideias listadas abaixo estão sintonizadas com visões da sociedade e do ser humano que inspiram práticas anti-democráticas ou, pelo menos, não democratizantes.

1 – A ideia de que o ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo e de que as pessoas (tomadas como indivíduos) se movem buscando sempre maximizar a satisfação de seus interesses (que são, ao fim e ao cabo, egotistas).

2 – A ideia de que não é possível mobilizar a ação coletiva a não ser a partir de lideranças destacadas.

3 – A ideia de que não é possível organizar nada sem (uma boa dose de) hierarquia (e a ideia de que a hierarquia é natural).

4 – A ideia e a prática de que governar é comandar (uma força, um contingente, um exército, um povo).

5 – A ideia (meritocrática) – platônica e antidemocrática – de que quem deve governar (dirigir o Estado, o país, a cidade e, por decorrência, a sociedade) é quem sabe mais.

6 – A ideia de que só pode haver aprendizagem se houver ensino e de que cabe às escolas – por meio do ensino – preparar as crianças e os jovens para o mundo, incutindo-lhes as noções de ordem, hierarquia, disciplina e obediência.

7 – A ideia de que as religiões têm um papel civilizatório, de domar uma suposta besta-fera humana (já que sem um deus – onisciente – tudo seria permitido).

8 – A ideia de que a democracia é apenas um modo de administração política do Estado e que é um disparate tentar democratizar a família, a escola e a universidade, a igreja, as corporações e os partidos, as organizações sociais, empresariais e estatais.

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UMA INTRODUÇÃO GERAL

Em um texto publicado originalmente no Facebook, em 26 de janeiro de 2015, sob o título Não são legítimos comportamentos que nos separam, estão os elementos de uma visão crítica à boa parte das ideias acima. Tomemo-lo como introdução ao geral ao exame mais detalhado das ideias elencadas.

A ciência contemporânea (especificamente, a genética) já descobriu que todos nós, os seres humanos, somos – do ponto de vista biológico – uma grande família (quase toda a humanidade é composta de primos até o grau 50). Do ponto de vista cultural, ademais, o Homo Sapiens parece ter se humanizado por meio da cooperação e de atitudes amistosas: o sexo frontal, a carícia, o conversar, o compartilhamento dos alimentos. Portanto, ao que tudo indica (e não há, rigorosamente, nenhuma evidência científica apontando o contrário), fomos humanizados (do ponto de vista cultural) pela interação com outros humanos. E, simetricamente, somos desumanizados pela separação, quer dizer, pela obstrução dos fluxos interativos da convivência social.

Todas as construções culturais (inclusive as ditas espirituais) que estabelecem separações, bloqueando a livre-interação, gerando artificialmente escassez de caminhos por meio da ereção de muros (stricto e lato sensu) – mesmo quando tentam se justificar em nome da segurança ou da defesa contra o ataque de inimigos – diminuem a nossa humanidade.

Portanto, a ideia de que existe uma crença verdadeira e correta, invalidando todas as demais como falsas e incorretas e tendo como consequência a separação entre fieis (nós, o cluster dos que comungam a mesma fé ou as mesmas crenças) e infiéis (os outros), são desumanizantes. Não importa se isso foi feito há muito tempo e nem se foi urdido pelo que chamam de religião. O ser humano, conquanto deva ser livre para esposar qualquer crença, não deve reverência à nenhuma religião e nem a qualquer cultura particular que tenha se conformado e reproduzido no passado, por mais antiga que seja ou se diga ou por maior que seja o número de seus seguidores.

Os conservadores dizem que a religião teve uma função civilizatória, cumprindo o nobre papel de domesticar a besta-fera humana. Afinal, dizem eles, se não há um deus, tudo é possível! Há um problema grave com essa perversão. Primeiro é preciso saber se o que eles chamam de civilização não se confunde com militarização (as primeiras cidades do período histórico, dito civilizado, foram cidades-Estado muradas e fortificadas em função da guerra). E por que então uma monarquia antiga, sob o jugo de um senhor da guerra com poder de espoliar e matar seus semelhantes, seria mais civilizada do que, por exemplo, uma pacífica aldeia agrícola neolítica? Ou do que uma tribo de coletores do alto paleolítico, que interagia sinergicamente com o meio?

Em segundo lugar é preciso saber se há de fato uma besta-fera humana que precise ser domada. Não se encontra qualquer evidência disso (a não ser na cabeça doentia dos seus pregadores). Não é ciência e sim uma crença ideológica achar que existe um Homo Hostilis primordial (um homem que, por natureza, seja lobo do homem, um homem inerentemente competitivo). Pelo contrário, todas as evidências apontam para o fato de que não teríamos sobrevivido como espécie e nem como cultura tipicamente humana, se – quando abandonados à nossa própria sorte – nos comportássemos de modo belicoso ou guerreiro (ou se, como dizia Hobbes, na ausência de um poder capaz de nos reprimir, nos estraçalharíamos numa guerra de todos contra todos).

Ora, esse poder acima de nós, que supostamente interviria para nos apascentar, só apareceu muito recentemente nos cerca de 250 mil anos de caminhada humana sobre a Terra (nos últimos 36 minutos, se compararmos toda nossa história à um dia ou 24 horas). Como foi que conseguimos sobreviver, viver e conviver (sem sermos controlados a partir do alto) nos outros 1.404 minutos? Não faz sentido. Ademais, não precisamos para nada de um poder top down para amar nossos semelhantes, para acariciá-los, para nos associar a eles ao contender com um problema comum ou para realizar nossos desejos mútuos, quando congruentes. Não foi um poder acima de nós que nos ensinou a conversar (e nos transfundiu aquela emoção amistosa envolvida no conversação que nos tornou humanos). Pelo contrário, quando irrompeu um poder acima de nós, foi para impedir o conversar, para dizer com quem podemos conversar (e interagir, de modo mais geral) e com quem não podemos. Foi para separar os do alto dos de baixo. Foi para criar castas (inicialmente sacerdotais, que logo inventaram deuses à imagem e semelhança dos sistemas de dominação que erigiram), e todos os tipos de estamentos classificados por supostas virtudes ou vícios intrínsecos conferidos a tais grupos pela sua origem (o sangue ou o berço).

Tudo isso, claro, é uma abominação. Nobres não têm “sangue azul” e não têm vocação para mandar (o mando, em si, já é uma abominação). Pobres não têm vocação para escravidão ou para servidão. Trabalhadores, como classe social, não trazem em si nenhum germe de uma sociedade melhor (como aventou essa maluquice marxista de que haveria uma classe social – o proletariado – cujos particularismos, uma vez realizados, se universalizariam). Sacerdotes não são superiores a leigos. Governantes não estão acima dos governados. Pessoas ricas, poderosas, muito tituladas e famosas, não são mais importantes do que nenhuma das mais de 7 bilhões de almas que habitam este planeta.

Mas foram as castas sacerdotais que erigiram hierarquias (como revela a origem da palavra: hieros + arché). E, portanto, as construções culturais baseadas nas hierarquias – especialmente as religiões – são sistemas de crenças aderentes a essa formidável perturbação que introduziu anisotropias no campo social. Anisotropias são deformações, são direcionamento de fluxos, são eliminações de caminhos que não podem ter como resultado a humanização (que ocorre toda a vez que vivemos nossa convivência, quer dizer, toda vez que deixamos o fluxo interativo da convivência social escorrer livremente). Sim, o ser humano (esse complexo biológico-cultural) é um ser social, não porque tenha propensão à sociabilidade, como se diz, e sim porque foi gerado socialmente. O portador de um genoma humano isolado, separado dos demais portadores, não forma um ser humano (e sim um ser humanizável, como promessa, mas não consumado como propriamente humano – o que só é possível a partir da interação com outros humanos).

Portanto, só um pensamento doentio pode achar que vale a pena os seres humanos se separarem uns do outros e brigarem entre si para legitimar suas próprias crenças e deslegitimar as crenças dos seus primos. Não se pode respeitar essas crenças (no sentido de aceitá-las acriticamente) em nome do multiculturalismo ou de qualquer outra crença que legitime a separação. Uma coisa é a liberdade de cada qual pensar no que quiser, proferir a opinião que bem entender ou aderir à qualquer crença estruturada ou não. Outra coisa é sermos obrigados a aceitar pensamentos, opiniões e crenças desumanizantes em nome de algum princípio que algum hierarca inventou hoje, ontem ou no passado mais distante. E o mais importante é não tomarmos como legítimos comportamentos que se justificam em nome desses pensamentos, opiniões e crenças. Não, não são legítimos comportamentos que nos separam.

Passemos agora às ideias, uma por uma.

A NATUREZA DA NATUREZA HUMANA

1 – A ideia de que o ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo e de que as pessoas (tomadas como indivíduos) se movem buscando sempre maximizar a satisfação de seus interesses (que são, ao fim e ao cabo, egotistas).

Em parte esta ideia – compartilhada por conservadores, assim como por muitos que querem se opor aos conservadores – já foi criticada na introdução acima. Cabe acrescentar que a natureza humana é uma natureza atribuída. É um pressuposto antropológico – às vezes tomado como evidente por si mesmo – postiço.

O primeiro problema aqui é saber o que é ser humano. Se se atribui ao ser humano uma natureza, algo inerente que ele possuiria por ser humano propriamente dito, o que seria? Do ponto de vista biológico (a primeira evocação do termo ‘natureza’) só poderia ser que ele é um ser vivo do domínio eukaryota, do reino animalia, do phylum chordata e vertebrata, da classe mammalia e eutheria, da ordem dos primatas e haplorrhini, da família hominidae e homininae, do gênero homo e da espécie homo sapiens.

O problema é que o que vale para cada indivíduo da espécie homo sapiens não vale necessariamente para o que ocorre entre os homo sapiens (quando eles se tornam pessoas). Os homo sapiens só se tornam pessoas quando acontece algo entre eles, não por qualquer desdobramento (ou desenvolvimento) epigenético. Exemplares (indivíduos) de homo sapiens isolados não se tornam pessoas (humanas). A pessoa não é um íon social vagando num meio gelatinoso, mas uma molécula social (a rigor não pode haver átomos sociais, posto que isso é incongruente com o próprio conceito de social: algo que está – ou ocorre – entre humanos e não a mera coleção de humanos).

Para o ser propriamente humano (a pessoa), portanto, o conceito de indivíduo (algo que subsistiria por si, permanecendo autonomamente humano) é uma abstração estatística. Desgraçadamente a economia ortodoxa tomou o indivíduo como uma unidade conceitual atribuível ao humano para construir seu edifício ideológico. E chegamos então ao segundo problema.

O segundo problema é que não se pode dizer que as pessoas se movem sempre buscando maximizar a satisfação de seus interesses que são ao fim e ao cabo egotistas (e justamente não fazem isso porque são pessoas, não indivíduos). Quer dizer, não há um comportamento básico, que possa ser qualificado como ‘natural’ ou inerente à natureza humana de indivíduos da espécie homo sapiens, porque os comportamentos humanos (propriamente ditos) não derivam naturalmente da biologia, mas são sempre gerados por outros comportamentos humanos (e a isso se chama cultura). Só comportamentos modificam comportamentos e a identidade dos humanos não é homeostática e sim alostática, quer dizer, é a identidade de uma trajetória de modificações de comportamentos. Um impossível indivíduo – um ser humano isolado, sem cultura portanto – tenderia a manter os mesmos comportamentos porque repetiria as mesmas reações básicas (ou as mesmas disposições biológicas para reagir) às modificações do meio natural (não-humano) em que vivesse. A hipótese do gene egoísta pode continuar sendo adotada para o animal humanizável (o portador do genoma humano), mas não para o humano consumado como ser social (a pessoa, o humano propriamente dito). Do contrário o ser humano não teria realizado e não continuaria realizando, do ponto de vista evolutivo e do ponto de vista de seu comportamento cotidiano, tantas ações gratuitas ou desnecessárias (do ponto de vista da obtenção de seus interesses): não compartilharia alimentos (sabendo que os alimentos doados podem lhe fazer falta no futuro), não ajudaria desinteressadamente ninguém, não colaboraria sem expectativa de reciprocidade, não se entregaria ao erotismo homossensual (sem possibilidade de reprodução) para dar prazer ao outro, não se sacrificaria por amor e não exercitaria a compaixão.

E então chegamos ao terceiro problema. Mesmo que interpretemos interesses como preferências (ajudando os economistas a sofisticar um pouco sua visão), não há como afirmar que tais interesses são sempre egotistas. Simplesmente porque todas as evidências mostram que não são sempre assim, como sabem os antropólogos e não sabem os sociólogos que querem ser levados a sério pelos economistas. E os antropólogos o sabem porque estudam povos ditos primitivos (ou seja, que não pertencem ao ambiente cultural da civilização patriarcal), enquanto que sociológicos e economistas imaginam que o ser humano patriarcal é o exemplar universal do ser humano arquetípico (uma espécie de Adam Kadmon, de homem primordial que não existe, ou melhor, que existe: mas como homem primordial da civilização patriarcal). Qualquer pessoa que passar um tempo entre os Yanomamis ou os Pirahãs, terá imensa dificuldade de qualificar todos os seus comportamentos como movidos para extrair ao máximo um proveito egotista.

Nos ambientes sociais (que Maturana chamaria de antissociais) da civilização patriarcal o homem é (em grande parte) competitivo mesmo, mas isso é inerente não à natureza humana e sim à natureza do padrão societário instalado. Porque o homem – o ser humano – não se conforma independentemente do ambiente social configurado por um determinado padrão societário. Ele é humano porque é social, não porque tenha propensão à sociabilidade, mas porque constrói a sua pessoa (o que nele há de propriamente humano) em interação com as outras pessoas e isso implica introjetar – e incorporar animicamente – o emaranhado de relacionamentos em que está imerso (e é, como pessoa). Por isso as pessoas são feitas das outras pessoas, como perceberam as culturas tradicionais de vários povos ditos primitivos.

Em ambientes configurados segundo padrões de rede mais distribuídos do que centralizados, as pessoas não são predominantemente competitivas e quanto mais distribuída for a topologia da rede – e, coerentemente com essa organização, quanto mais democráticos forem os modos de regulação de conflitos –  menos competitivas (e mais colaborativas) elas tenderão a ser, mas não porque tenham uma natureza colaborativa (a colaboração é um atributo do modo como os humanos interagem e, por decorrência, se organizam, não o resultado da influência de uma centelha divina que abrigam ou de uma disposição genética que trazem). Portanto, dada uma mesma base biológica, não há nada de inerente aos humanos que esteja antes da sua interação como humanos, nenhuma substância humana primordial, nenhuma natureza assim ou assada, a não ser que aquela que lhe atribuímos. A rigor, se se puder falar de uma natureza humana, nada mais se pode dizer além de que ela é social (ou seja, que não é uma natureza: é uma construção cultural).

É possível mostrar que essa ideia conspira contra a apreensão da ‘democracia como ideia’ (no sentido com que essa expressão foi empregada por John Dewey), como veremos mais adiante.

A IDEOLOGIA DO LIDERANCISMO

2 – A ideia de que não é possível mobilizar a ação coletiva a não ser a partir de lideranças destacadas.

(Continua)

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