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Os faxineiros da galáxia são apenas analfabetos democráticos

Uma pessoa escreveu num comentário a um post meu no Facebook:

Ah quero que todos esses políticos sem exceções fodam-se, não sou partidário e nem defendo nenhum deles.

Respondi:

E aí que você se engana. E faz o jogo dos mais perigosos deles.

O velho dito do engenheiro Leonel Brizola – “é tudo farinha do mesmo saco” – sempre esteve bastante disseminado, mas agora mais do que nunca. Porque agora foi reforçado, interesseiramente ou não, por moralistas, jacobinos e bolsonaristas ditos de direita (neste caso para alçar um homem honesto e destemido ao comando do Estado).

Brizola, patife de carteirinha, inventou isso para dizer que todos os outros eram farinha do mesmo saco, mas ele não. Hoje é a mesma coisa.

É claro que dizer isso é um sinal de profundo analfabetismo democrático. Vamos ver por que tomando apenas cinco exemplos comparativos:

1 – Você consegue ver alguma diferença, do ponto de vista da democracia, entre Pablo Escobar (chefe do Cartel de Medellin) e os militares cubanos que coordenavam a rota do tráfico de cocaína no Caribe a mando do general Arnaldo Ochoa e do oficial Tony de la Guardia (depois assassinados por Fidel, como bodes expiatórios, num julgamento forjado, para livrar a cara da ditadura castrista), sob instruções diretas de Raul Castro? Para os moralistas, jacobinos e bolsonaristas ditos de direita é tudo a mesma coisa. Para os petistas e outros esquerdistas Escobar era um bandido, mas Fidel e Raul heróis da revolução. Para os democratas, o primeiro é um bandido comum, enquanto que os segundos – além de cometerem crimes comuns, facilmente tipificáveis por qualquer Estado de direito – são criminosos políticos (que usam, em parte, o dinheiro sujo para manter uma ditadura).

2 – Você é capaz de ver alguma diferença, do ponto de vista da democracia, entre Gilberto Rodriguez Orejuela (um dos chefes do Cartel de Cali) e Diosdado Cabello (um dos chefes da ditadura bolivariana da Venezuela que comanda o narcotráfico no país)? Para os moralistas, jacobinos e bolsonaristas ditos de direita é tudo a mesma coisa. Para os petistas e outros esquerdistas Rodriguez era um bandido, mas Cabello um herói do socialismo do século 21. Para os democratas, o primeiro é um bandido comum, enquanto que o segundo – além de ser um criminoso comum – é também um criminoso político, que usa, em parte, o dinheiro do crime, para atentar contra a democracia e manter a ditadura bolivariana da Venezuela.

3 – Você consegue ver diferença, do ponto de vista da democracia, entre Joaquín Guzmán Loera (conhecido como “El Chapo”, chefe do Cartel de Sinaloa, no México) e Tareck El Aissami (vice-presidente da Venezuela e também chefe do narcotráfico na região)? Para os moralistas, jacobinos e bolsonaristas ditos de direita é tudo a mesma coisa. Para os petistas e outros esquerdistas “El Chapo” é um bandido e Tareck um herói da revolução bolivariana. Para os democratas, o primeiro é um bandido comum, enquanto que o segundo – além de ser um criminoso comum – é também um criminoso político, que usa, em parte, o dinheiro do crime, para atentar contra a democracia e manter a ditadura bolivariana da Venezuela.

4 – Você consegue ver diferença, do ponto de vista da democracia, entre Rick Ross (o famoso traficante americano que inundou as ruas de Los Angeles com pedras de crack) e Ivan Márquez (um dos chefes das FARC, a narcoguerrilha agora legalizada como uma espécie de PT colombiano)? Para os moralistas, jacobinos e bolsonaristas ditos de direita é tudo a mesma coisa. Para os petistas e outros esquerdistas Ross era um bandido e Ivan Marquez um herói da revolução. Para os democratas, o primeiro é um bandido comum, enquanto que o segundo – além de ser um criminoso comum – é também um criminoso político, que usou, em parte, o dinheiro do crime, para financiar a guerrilha marxista-leninista e narco-comunista e, agora, pela via eleitoral, para usar a democracia contra a democracia na Colômbia.

5 – Você consegue ver diferença, do ponto de vista da democracia, entre o PCC e o Hezbollah (associados pontualmente em várias ações de tráfico de armas)? Para os moralistas, jacobinos e bolsonaristas ditos de direita é tudo a mesma coisa. Para os petistas e outros esquerdistas o PCC é uma organização criminosa, mas o Hezbollah um legítimo movimento político de resistência ao imperialismo de Israel. Para os democratas, o PCC é uma organização criminosa dedicada ao narcotráfico, ao tráfico de armas e a outros delitos, enquanto que o Hezbollah é uma organização terrorista, xiita, financiada pela autocracia dos aiatolás iranianos para lutar contra a democracia.

Se você não consegue ver essas diferenças então também não verá diferença nenhuma, do ponto de vista da democracia, entre Sergio Cabral e Lula, entre Eduardo Cunha e José Dirceu e entre Geddel Vieira Lima e João Vaccari. Para os moralistas, jacobinos e bolsonaristas ditos de direita é tudo a mesma coisa. Para os petistas e outros esquerdistas Cabral, Cunha e Geddel são bandidos, enquanto que Lula, Dirceu e Vaccari são heróis do povo brasileiro.

Os petistas e esquerdistas têm uma ideologia que justifica tudo isso (se seus heróis roubaram, foi em nome da transformação social, para beneficiar a maioria do povo explorado, oprimido e dominado pelas elites). Mas os moralistas não têm nada: a não ser uma ideia infantil de certo e errado. E, no entanto, mesmo estes últimos, poderiam prestar atenção a uma diferença facílima de perceber: eles nunca viram Cabral, Cunha ou Geddel apoiando com recursos financeiros, materiais ou organizacionais, as ditaduras cubana, angolana ou venezuelana ou repartindo seu rico dinheirinho, fruto dos crimes comuns que cometeram, com o bandido político Ortega da Nicarágua, com Lenin Moreno do Equador ou com Evo Morales da Bolívia, viram? Não, eles não viram, mas não querem nem pensar nisso.

E eles também não viram “esse pessoal corrupto do PMDB ou do PSDB” propondo o controle social da mídia, viram? Não, não viram.

E eles não viram, ainda, os políticos tradicionais ladrões querendo aprovar conselhos populares, compostos por movimentos sociais e sindicatos, que agem como correias de transmissão de um partido, para cercar a institucionalidade vigente e subordiná-la à lógica do Estado aparelhado pelo partido dirigente, viram? Igualmente, não viram. Mas não querem pensar nessas coisas, porque o importante mesmo é botar os ladrões na cadeia.

Então, se você não vê diferenças, do ponto de vista da democracia, nos exemplos citados acima, não se poderia dizer que você é burro por causa disso. Apenas que, talvez, você seja um moralista; ou, quem sabe, um jacobino, alguém que quer praticar a antipolítica robespierriana da pureza; ou, ainda, um bolsonarista querendo dizer que o único honesto é o Bolsomito.

Mas ao não ver os diferentes riscos para a democracia que representam as pessoas (e organizações) comparadas acima, você é, com toda certeza, um analfabeto democrático.

Enquanto Escobar, Rodriguez, “El Chapo”, Ross e o PCC, cometem crimes comuns, para enriquecer e se dar bem na vida, para manter e controlar os mundos que criaram à margem da legalidade vigente, Fidel e Raul, Cabello, Tareck, Marquez e o Hezbollah violam a legalidade para suprimir a democracia (ou defender a autocracia).

Mas se, diante desse argumento, você retrucar alguma coisa do tipo: “Mas onde existe verdadeira democracia?”, então é mais um sinal de que você é um analfabeto democrático mesmo, que não entendeu o be-a-bá da democracia. Imaginando que a democracia é um modelo ideal, perfeito, reto, puro, limpo, você conclui que todos os regimes são falhos e que o problema são os corruptos, as pessoas más, que vêm estragar, entortar e sujar tudo. Para você, então, a única saída será limpar o mundo, fazer uma grande cruzada para separar os bons dos maus, recompensando os primeiros e punindo os segundos.

Eis o desafio que a democracia enfrenta quando confrontada com os “faxineiros da galáxia”, que são incapazes de ver que se Lula, Dirceu e Vaccari fossem honestos, seriam mil vezes mais perigosos para o regime democrático. Porque não se trata apenas dos crimes que eles cometeram (muitas vezes formalmente iguais aos que cometeram Cabral, Cunha e Geddel) e sim para quê – com que propósito, além de enriquecer e se dar bem na vida – eles cometeram tais crimes.

É quase inútil discutir essas coisas com um moralista, com um jacobino ou com um bolsonarista. A vontade que dá é a de correr para o banheiro mais próximo e cortar os pulsos. Porque eles não são capazes de ver (ou não querem ver, por esperteza, má-fé e hipocrisia) as diferenças entre uma Venezuela (com Cabello e Tareck) e um Brasil (com Temer e Geddel).

É para dizer:

Vá lá, inteligente, passar um ano em Havana, Cartum ou Pyong Yang e depois venha nos contar se você ainda não vê diferenças, do ponto de vista da democracia (que para você não existe porque não é perfeita), com os regimes vigentes no Brasil, na Argentina ou na Costa Rica.

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