Os populismos de todo tipo (digam-se de esquerda ou de direita) constituem hoje, nas Américas assim como na Europa e além, os maiores perigos para a democracia. Em artigo publicado hoje pelo jornal Valor Econômico, Michael Reid mostra que a ameaça dos populismos à democracia na América Latina continua presente.
Eis a íntegra do artigo.
A rebelião das massas
Por Michael Reid, Valor Econômico, 29/06/2018
Enquanto goza de sua espaçosa mansão no Morumbi, em São Paulo, Marcelo Odebrecht tem opções de lazer de sobra para contemplar os danos que fez à democracia na América Latina. É claro que a culpa não é apenas dele. Outras empreiteiras brasileiras se comportaram de forma similar, e os políticos que levaram US$ 430 milhões em subornos em nove países latino-americanos (além do Brasil) só da Odebrecht têm, no mínimo, tanta culpa quanto ele. Como Sóror Juana Inés de La Cruz, poeta mexicana do século XVII, disse da prostituição: “Quem peca mais: ela que peca por dinheiro ou ele que paga dinheiro pelo pecado?”. De qualquer forma, não há dúvidas de que o escândalo da Odebrecht infligiu danos sérios à credibilidade dos sistemas políticos democráticos na América Latina em um momento crucial.
A região está em meio a uma maratona eleitoral que vai renovar suas lideranças políticas. Entre as eleições chilenas, em novembro de 2017, e as bolivianas, em dezembro de 2019, 13 países vão ter escolhido novos presidentes, incluindo os quatro mais populosos: Colômbia, em maio; México, neste domingo; Brasil, em outubro, e Argentina, em outubro de 2019. Como o humor da população se tornou ácido diante da corrupção e de outros problemas, muitos comentaristas têm previsto uma volta ao populismo e/ou um questionamento da própria democracia representativa. É mais complicado do que isso, mas essas ameaças são reais.
Vejamos o México, onde, no domingo, os eleitores parecem se encaminhar a eleger Andrés Manuel López Obrador, político veterano de esquerda derrotado em 2006 (por pouco) e em 2012. Desta vez López Obrador é o beneficiário da aversão dos mexicanos em relação ao presidente de saída, Enrique Peña Nieto, do Partido Revolucionário Institucional (PRI). Sob seu governo, os crimes violentos aumentaram, com as gangues de traficantes cada vez mais selvagens, e a corrupção generalizada no partido governante não foi punida.
A democracia na AL precisa se defender por meio de seus esforços, e seus políticos, de convencer os cidadãos quanto aos méritos do sistema
López Obrador é um líder carismático que denuncia “a máfia no poder” – com o que quer dizer o PRI e o conservador Partido Ação Nacional (PAN), que governou sem muito sucesso entre 2000 e 2012 -, que, segundo ele, oprime a massa de mexicanos mais pobres, com os quais ele estabeleceu um vínculo emocional. Muitos podem até concordar com o diagnóstico; o problema é que sua receita pode agravar a doença. No sentido mais puro do termo, ele é um populista. Seu partido, o Movimento Regeneração Nacional (Morena), é seu veículo político pessoal.
López Obrador promete “eliminar” a corrupção por meio da vontade presidencial, em vez de por meio de instituições independentes e do Estado de direito. Iniciou sua carreira política no PRI dos anos 70 de Luis Echeverría, presidente nacionalista sem amarras nos gastos. Mostra desprezo pelos controles e equilíbrios da democracia ainda incipiente do México, como o Supremo Tribunal Federal e a mídia independente. Propõe um plebiscito sobre seu governo depois de três anos – o primeiro passo rumo a enfraquecer a democracia representativa e o tabu no México quanto às reeleições presidenciais.
Muitos fatores se combinaram para deixar os eleitores em muitos países latino-americanos, não apenas o México, furiosos e frustrados. O primeiro é a combinação incendiária de corrupção e desempenho econômico medíocre.
Em termos macroeconômicos básicos, a região passa por uma recuperação cíclica moderada neste ano. Mas ela se segue a uma retração prolongada (bem pior no Brasil e Venezuela), em que a renda se estagnou ou caiu. Os eleitores tendem a ser mais tolerantes quanto à corrupção nos bons momentos do que nos maus.
Para piorar a situação, acontecimentos na economia mundial vêm enfraquecendo a recuperação. A alta nas taxas de juros nos Estados Unidos, o consequente fortalecimento do dólar e a ameaça de uma guerra comercial desencadeada por Donald Trump levaram à saída de capitais de alguns mercados emergentes, uma vez que os investidores pensam que podem conseguir melhores retornos, com menos risco, em outros lugares. Isso atingiu duramente a Argentina, o que obrigou Mauricio Macri a tomar a medida economicamente sólida, ainda que politicamente arriscada, de buscar a ajuda do Fundo Monetário Internacional (FMI) em um país em que a instituição é acusada (embora, em grande parte, equivocadamente) pelo colapso de 2001/2002. A reeleição de Macri no próximo ano e a continuidade de seus esforços para tornar a Argentina um país normal, agora se tornaram mais difíceis.
A segunda grande questão é o crime. De forma preocupante, índices de criminalidade mostraram tendência de crescimento em muitos países durante a “década de ouro” da América Latina de expansão econômica alimentada pelas commodities entre 2003 e 2012. A segurança dos cidadãos deteriorou-se seriamente em muitos países, especialmente no México, na Venezuela e em partes do Brasil (Rio e Nordeste). Com 8% da população mundial, a América Latina tem cerca de 30% dos assassinatos do mundo.
O crime organizado e o tráfico de drogas têm grande papel nesse quadro, mas ele também é reflexo do fracasso das instituições públicas em muitos países latino-americanos de cumprir suas mais básicas obrigações de proteção dos cidadãos. Isso normalmente se aplica também aos serviços públicos em termos mais gerais. A decomposição da segurança em boa parte do Brasil é um grande fator por trás da força relativa de Jair Bolsonaro nas pesquisas de opinião pública.
Esses contratempos jogaram água fria em cima do aumento das expectativas de progresso socioeconômico gerado pelos anos de alta das commodities, em que a classe média se expandiu, e a pobreza e a desigualdade de renda caíram em muitos países. No entanto, a tradução política da raiva resultante da classe média toma formas diferentes em cada país. Em vez de uma tendência regional, rumo ao populismo, por exemplo, há muitas tendências políticas, às vezes contraditórias.
A primeira é uma volta à centro-direita na América do Sul depois da hegemonia de esquerda na primeira década do século. Isso ocorreu no Chile, onde os eleitores mais uma vez escolheram Sebastián Piñera, ex-empresário liberal depois de quatro anos de crescimento econômico medíocre no governo da socialista Michelle Bachelet.
Ocorreu também na Argentina, com a vitória de Macri nas eleições legislativas de outubro de 2017, e no Peru, com a vitória por pouco de Pedro Pablo Kuczynski, ex-executivo de banco liberal, em 2016, em uma eleição altamente polarizada contra Keiko Fujimori, uma conservadora. A renúncia de Kuczynski em março, antes da aprovação praticamente certa de uma moção de censura no Congresso dominado pelos fujimoristas, foi outra vitória para a Odebrecht, que havia pago a ele por trabalhos de consultoria provavelmente legais, mas certamente antiéticos, quando ele esteve no governo há mais de dez anos.
A polarização é a segunda grande tendência. O descrédito da classe política após a combinação fatal de corrupção e austeridade esvaziou o centro. Essas duas tendências estiveram em pleno funcionamento na Colômbia, onde no segundo turno eleitoral, no dia 17, o conservador Ivan Duque derrotou Gustavo Petro, ex-guerrilheiro do M-19, ex- prefeito de Bogotá e antigo amigo de Hugo Chávez. De formas diferentes, ambos representavam a rejeição a Juan Manuel Santos, presidente centrista de saída. Santos recebeu elogios pelo mundo e ganhou o Nobel da Paz, por seu acordo de paz com o grupo guerrilheiro Farc em 2016. Mas muitos colombianos são mais críticos em relação a Santos.
Muitos acham que o acordo de paz foi muito benevolente com as Farc. Duque é protegido de Álvaro Uribe, antecessor de Santos e seu feroz inimigo político. Duque é uma figura mais moderada que Uribe. Ele promete modificar, mas não acabar com o acordo de paz; na prática, vai ser difícil para ele promover grandes mudanças. Um tributo ao sucesso do acordo foi o fato de que a paz não foi uma das principais questões eleitorais: em vez disso, foram assuntos o baixo crescimento econômico, a desigualdade e, sim, o escândalo da Odebrecht.
As grandes dúvidas agora na Colômbia giram em torno sobre até que ponto Duque vai ter vontade própria ou vai ser uma marionete nas mãos de Uribe e se ele pode trazer harmonia a um país que está “dividido, polarizado, enfrentado de forma [aparentemente] irreconciliável”, como notou o escritor Juan Gabriel Vázquez.
Uma terceira tendência é a crescente fragmentação política. Isso, em parte, é provocado pela tendência mundial de enfraquecimento dos partidos tradicionais. Mas também é resultado de novas divisões políticas na América Latina. Uma das mais óbvias é a chegada à arena pública das políticas de gênero, de sexualidade e de comportamento pessoal. Isso está ligado ao aumento da competição pelas almas latino-americanas por parte dos evangélicos protestantes e de uma Igreja Católica em declínio.
Ambas juntaram forças para se opor à “ideologia de gênero” – um conceito não existente – e ao casamento homossexual. É o caso da eleição na Costa Rica, a democracia mais antiga da América Latina. O segundo turno da eleição em 1º de abril foi notável pela ausência, sem precedentes, dos dois partidos mais tradicionais, que dominavam a política local desde 1948, e pela presença de um pastor evangélico, que perdeu para Carlos Alvarado, ex-membro do governo de centro-esquerda de saída do poder. Em razão da fragmentação política, Alvarado faz parte do crescente grupo de presidentes que não vai ter maioria no Congresso.
Para quase toda tendência na América Latina, é possível apontar uma contratendência. Por exemplo, o feminismo está avançando no Cone Sul, o que ficou simbolizado pela votação acirrada na Câmara dos Deputados da Argentina para legalizar o aborto (que ainda precisa ser aprovado pelo Senado), que se seguiu a uma definição similar no Chile.
Embora o México pareça estar mais encaminhado a endossar versão populista de esquerda, o “socialismo do século XXI”, pregado por Chávez e seus aliados, está em queda. Sob o governo de Lenín Moreno, eleito em 2017, o Equador afastou-se do desenvolvimentismo populista intolerante de Rafael Correa. Nicarágua e Venezuela vivem longas manifestações populares pela democracia e contra ditaduras repressivas, cujos mandatos vieram de eleições fraudulentas.
Mais de 200 pessoas foram mortas desde que os nicaraguenses se rebelaram em abril contra a tentativa de Daniel Ortega de elevar as contribuições ao sistema de seguridade social que seu governo pilhou. As vítimas, em sua maior parte, são estudantes e outros assassinados pelos marginais paramilitares do regime. A recusa de Ortega e de Nicolás Maduro, da Venezuela, de permitir eleições livres e justas cobra um pesado preço em seus países.
A eleição de López Obrador traria novo fôlego diplomático a Maduro, a Ortega e ao novo presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel. Seus assessores deixaram claro que eles não vão apoiar os esforços do Grupo de Lima para pressionar por eleições genuínas na Venezuela. Ainda assim, os dramas de contornos mortais na Venezuela e Nicarágua significam a falência ideológica do chavismo e podem servir para impor limites ao populismo de López Obrador.
Tudo isso chega enquanto a América Latina se depara com um mundo em rápida transformação. Os sinais indicam que Donald Trump não se importa muito se o resto da América é democrática ou não (embora alguns em seu governo ainda se importem). Por enquanto, os EUA não oferecem nada de positivo à região, a não ser a redução da concessão de empréstimos de auxílio à Colômbia, América Central e Caribe.
A União Europeia está enrolada em suas próprias dificuldades quanto à recuperação da economia, a imigração e a saída britânica do bloco econômico. É a China, com seu comércio exterior, investimentos e concessão de empréstimos, que cada vez mais dita os rumos na região. E a China é indiferente aos regimes políticos de seus parceiros.
Portanto, a democracia da América Latina precisa se defender puramente por meio de seus esforços, e seus políticos precisam convencer os cidadãos quanto aos méritos do sistema. Apesar de todos os problemas, em termos comparativos, a democracia da América Latina vem mostrando uma resiliência saudável. Em um mundo no qual o autoritarismo, de vários tipos, está em alta, a Venezuela e a Nicarágua são os únicos casos de regresso democrático na região, juntando-se a Cuba como ditaduras.
A Bolívia é um ponto de interrogação, mas é provável que, se os eleitores bolivianos quiserem tirar Evo Morales do poder, depois de 13 anos, nas eleições de outubro de 2019, eles vão conseguir. Outro caso preocupante é Honduras, onde, em novembro, Juan Orlando Hernández ganhou o segundo turno de eleições marcadas por suspeitas de fraude com uma candidatura de constitucionalidade duvidosa (lembrem-se de Manuel Zelaya, o presidente esquerdista que foi derrubado em 2009 pelo pecado de ter organizado um referendo informal para permitir a reeleição presidencial).
O rumo que a região vai seguir pode ser definido pelas eleições no Brasil. Estão presentes todos os fatores: o populismo tanto de esquerda quanto de direita (representados por Bolsonaro e Ciro Gomes, respectivamente), o descrédito da classe política e a fúria da classe média, a fragmentação e o número atipicamente alto de candidatos, a grande massa de eleitores de centro em busca de um salvador e o questionamento da própria democracia (por Bolsonaro). Apesar de tudo, as evidências mostram que a maioria dos latino-americanos ainda quer a democracia. Eles querem, entretanto, que ela traga benefícios tangíveis. (Tradução de Sabino Ahumada)
Michael Reid é editor sênior da “The Economist” e escreve a coluna Bello, sobre América Latina. Seu livro “O Continente Esquecido – A Batalha pela Alma Latino-Americana” foi publicado em 2017.
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