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Por que virou um imperativo da hora configurar novos ambientes de aprendizagem da democracia

Ninguém nasce democrata, se torna. Mas ninguém se torna democrata por um desenvolvimento natural da cultura em que nasceu e foi criado, porque a cultura predominante é autocrática. Assim, em geral, não aprendemos democracia em casa, nos grupos de amigos, na escola, na igreja, na organização social, na corporação, no partido ou na empresa. Porque os padrões de organização e os modos correspondentes de regulação de conflitos que vigoram nesses ambientes costumam ser hierárquicos e autocráticos. Aderir à democracia como valor – e como o principal valor da vida pública e, em alguns casos, da vida privada coletiva, quer dizer, também como modo-de-vida ou de convivência social – requer um esforço de remar contra a corrente, exige resistir à autocracia, o que envolve, antes da razão, outro tipo de emocionar, de aceitação do outro em nosso espaço de vida como um possível parceiro e não como um potencial inimigo.

Para ver como é assim considere-se apenas um dado: em mais de cinco mil anos de civilização tivemos democracia (como modo estável de administração política de grandes coletividades humanas) apenas durante uns 200 anos entre os antigos atenienses (de 509 a 322 antes da Era Comum) – e, mesmo assim, quase que somente em uma cidade – e mais uns 300 anos, se tanto, entre os modernos (começando pela resistência parlamentar ao poder despótico de Carlos I, na Inglaterra do século 17). Isso deveria ser suficiente para mostrar que a nossa cultura foi, na maior parte do tempo, autocrática: se toda a história fosse comparada a um dia de 24 horas, não tivemos democracia senão em 96 minutos (e mesmo assim, reafirme-se, em experiências fugazes e localizadas). Nem todos se dão conta de que a maior parte da população mundial nunca viveu e ainda não vive, em pleno ano de 2019, em democracias.

Ademais, ninguém se torna democrata apenas porque lutou contra um regime autocrático. Se foi preso, a prisão, por si só, não teve o poder de convertê-lo em democrata (às vezes fez o inverso: aumentou o ressentimento e a vontade de revanche). Se foi perseguido, torturado, viveu na clandestinidade, foi banido ou exilado, ainda assim essas amargas experiências não tiveram o condão de transformar alguém em democrata. Boa parte dos que lutaram – empregando ou não métodos violentos – contra a ditadura militar no Brasil, achava que a solução seria implantar outra ditadura (dos trabalhadores explorados, oprimidos e dominados) contra a ditadura (dos burgueses ou capitalistas exploradores, opressores e dominadores): a chamada ditadura do proletariado.

A conversão à democracia é um processo lento, desencadeado por insights contra-intuitivos (sim, a democracia é uma brecha na cultura dos predadores e senhores difícil de ser percebida), mas amadurecida aos poucos. Muitas pessoas com origem na esquerda que hoje estão atuando politicamente tiveram esse insight “primal” em 1989, com a queda do Muro de Berlim, reforçado depois pela bancarrota da União Soviética, em 1991. Mas isso, por si só não foi suficiente para realizar o entendimento profundo da democracia como valor universal. A maioria das pessoas que criticam os que lutaram contra a ditadura militar no Brasil, até hoje ainda não se deu conta de nada disso.

Repetindo. Ninguém nasce democrata, se torna. E se torna democrata, em primeiro lugar, não por um esforço intelectual e sim por uma inconformidade (e uma insuportabilidade) com o emocionar hierárquico e autocrático. Se torna democrata – no sentido forte do conceito de democracia, como processo de desconstituição de autocracia e no sentido amplo desse conceito, da democracia como modo-de-vida e não apenas como modo político de administração do Estado – quando passa a resistir a padrões autocráticos, compreendendo emoções e pensamentos. Mas, como a democracia é contra-intuitiva, é necessário observar, investigar e refletir muito sobre o assunto até aprender a reconhecer padrões autocráticos.

Para os que querem teorizar e escrever sobre o tema é necessário, é claro, começar sempre estudando os pensadores democráticos, em especial o papel dos sofistas e de Clístenes, Efialtes e depois Péricles, no surgimento da democracia na passagem do século 6 para o século 5 a. C., em Atenas e também a coleção dos pensadores que lograram, quase dois milênios depois, captar diferentes aspectos do genos da democracia, dentre os quais não podem faltar: Althusius, Spinoza, Rousseau, Madison, Paine, Tocqueville, Mill, Dewey e Arendt. E depois, pelo menos, Berlin, Popper, Dahl, Lefort, Bobbio, Havel, Castoriadis, Maturana, Rawls, Sen e Rancière.

Todavia, ainda que estudemos textos teóricos sobre a democracia e experimentemos a democracia como modo de administração política do Estado (que foi ao que se reduziu, nos últimos três séculos, a democracia reinventada pelos modernos), não conseguimos ter um entendimento profundo da democracia na medida em que nossas redes de conversações repetem circularidades inerentes que são próprias da cultura autocrática.

Em contrapartida, como já foi dito, não é preciso qualquer esforço para aprender autocracia: começamos aprendendo na família monogâmica e depois vamos aprendendo na escola, na igreja, nas organizações juvenis, no quartel, na universidade, no trabalho em empresas hierárquicas, nas corporações, nos partidos e nos órgãos do Estado.

Por tudo isso pode-se constatar hoje, no mundo e no Brasil, um deficit de democratas (ou de liberais no sentido político do termo).

Mas há outra razão. Os democratas sempre foram minoria.

Seria impossível encontrar trinta democratas convictos entre os interlocutores de Clístenes, Efialtes e Péricles. Alguns poucos sofistas do século 5 – logo perseguidos pelos oligarcas e malditos pelos filósofos totalitários como Platão – como Protágoras, Górgias, Pródicos, Hípias (não confundir com o filho do tirano Psístrato que foi pacificamente deposto pela democracia nascente), Antífon, Trasímaco, Cálicles, Eutidemo e Dionisodoro, o anônimo Dissoi Logoi, o anônimo Jâmblico e… Sócrates (que adotou o estilo sofista, mas era, na verdade, seu principal e figadal inimigo). Pesquisadores sérios, como G. B. Kerferd (1980) – em concordância com outros (como W. K. C. Guthrie) – afirmam que só “conhecemos os nomes de… vinte e seis sofistas do período entre mais ou menos 460 a 380 a. C., quando sua importância e sua atividade estavam no auge”. Mas nem todos esses eram, a rigor, democratas.

Igualmente, seria impossível encontrar trinta democratas convictos entre os redatores dos Bill of Rights, no parlamento inglês do século 17, que reinventou a democracia na sua resistência ao poder despótico de Carlos I (1625-1649).

Mesmo no berço da chamada Revolução Americana (1776-1787) e nos seus desdobramentos, não havia trinta democratas (entre os Founding Fathers, companheiros e sucessores de Thomas Jefferson, signatários da Declaração de Independência e da Convenção Constitucional, a maioria tinha alguma noção de República, porém mais de 90% não tinham qualquer noção de democracia).

Para não falar da Revolução Francesa (1789-1799) que, ao contrário do que muitos pensam, não reinventou a democracia e sim a esquerda e a direita (quer dizer, a política como continuação da guerra por outros meios): ninguém vai achar o nome de um democrata convicto entre os jacobinos e os girondinos.

Quando Spinoza afirmou (em 1670) – contrariando Hobbes – que o fim da política não era a ordem e sim a liberdade, não se fez a luz. Assim como os antecessores de Spinoza (nos dois milênios anteriores) foram contrários à democracia de alguma forma, seus sucessores (nos dois séculos seguintes), quando não se posicionaram abertamente contra a democracia, puseram-se a relê-la de uma forma que acabou esvaziando o seu conteúdo. Até a segunda metade do século 18 não houve nenhuma leitura decente da democracia grega que tivesse resgatado ou preservado seus pressupostos fundamentais (o seu “gene” ou meme). Na verdade, de Althusius (1603) a Stuart Mill (1861) não conhecemos muito mais que meia dúzia de pensadores políticos que tivessem, desse ponto de vista, contribuído decisivamente para recuperar e reinterpretar, à luz das condições da modernidade, os elementos fundamentais da democracia dos antigos (a liberdade, a igualdade de proferimento e a valorização da opinião e o exercício da conversação no espaço público).

Entre os clássicos da política, do século 6 antes da Era Comum até a metade do século 20, quer dizer, dos precursores dos democratas atenienses até Hannah Arendt, não temos, por incrível que pareça, muitas reflexões sobre a democracia (no sentido “forte” do conceito, ou seja, como processo de desconstituição de autocracia).

Mesmo sendo minoria, entretanto, os democratas conseguiram desempenhar – quando coexistiram em número suficiente – o seu papel ao atuarem como agentes fermentadores da formação da opinião pública. Mas isso tem um limite: fermento, por certo, não é massa, mas se o fermento for muito pouco, não dá conta de fermentar massas cada vez maiores.

Vejamos o caso brasileiro atual. Quantos são os democratas, que atuam com alguma visibilidade e regularidade na esfera pública na última década (nos parlamentos, nos governos, nas organizações da sociedade civil, nos órgãos de imprensa e nas mídias sociais)? Não estamos falando das pessoas que aceitam a democracia (na falta de um regime melhor, como disse Churchill) ou que a toleram e sim dos democratas convictos mesmo – não-populistas – que tomam o sentido da política como a liberdade e a democracia como um valor universal e o principal valor da vida pública? A resposta pode ser surpreendente. Não é que não cheguem a trinta: talvez não cheguem nem a vinte (o que é uma quantidade insuficiente até mesmo como fermento). Claro que o número de democratas formais e de liberais-conservadores e liberais-econômicos que aceitam a democracia é muito maior. Mas não o número de democratas, digamos, radicais – liberais-políticos inovadores como foram os que inventaram e reinventaram a democracia.

Desgraçadamente, os adversários da democracia cresceram e superaram em número (ou, pelo menos, em ativismo) os democratas. A rigor também não ultrapassam muito uma centena de pessoas, mas sua influência deletéria sobre a democracia já se faz sentir, nos resultados autocratizantes das suas cruzadas contra o comunismo (um inimigo imaginário, que serve a um propósito funcional) e contra a corrupção (dos outros) – tudo isso, na verdade, como pretexto ou alavanca para exterminar seus verdadeiros inimigos: os liberais (no sentido político do termo, não no econômico, posto que haverá sempre um Chicago Boy disposto a prestar serviços a um Pinochet, a um Médici, a um hierarca chinês, a um Orbán).

Quem são os adversários da democracia (que nem conservadores são em sua maioria, mas reacionários) que comparecem regularmente na mídia tradicional e nas mídias sociais com alguma expressão e que agora viraram jornalistas e analistas chapa-branca? Por incrível que pareça também são muito poucos. Tentemos, porém, listar trinta democratas convictos que estão cumprindo um papel político equivalente. São menos ainda. Nossos esforços não conseguiriam reunir numa lista muito mais do que uma a duas dúzias de pessoas com as características democráticas expostas aqui e com atuação política cotidiana.

Está certo que os democratas foram, são e sempre serão minoria. Mas uma minoria tão ínfima (como a que temos) não é capaz de cumprir o papel de defender a democracia (que temos), impedindo que ela se torne menos liberal e mais majoritarista e, simultaneamente, avançar na direção das democracias mais interativas (nunca confundir com participativas) que queremos (mais conformes à morfologia e a dinâmica da sociedade contemporânea).

Esta é uma das razões pelas quais virou um imperativo da hora configurar novos ambientes de aprendizagem da democracia. Isso já foi exposto em dois artigos recentes:

Uma iniciativa de aprendizagem da democracia voltada para a inovação, e

O que fazer diante do deficit de liberais-políticos: uma proposta

Se você se interessou pela proposta e quer se associar à iniciativa, apoiando-a, escreva para [email protected] para receber um ebook com o projeto piloto completo e as diferentes modalidades de adesão.

Sobre o reflorescimento de narrativas nacionalistas

Os novos ambientes de aprendizagem da democracia e a “academia” de Steve Bannon