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Primeira reflexão terrestre sobre a democracia

“Livre, livre é quem não tem rumo”

Manoel de Barros (2010) em Menino do Mato.

Há muita incompreensão sobre a democracia. Ora ela é confundida com um modo de administração política do Estado (ou com o chamado Estado de direito; ou pior, com eleições); ora com uma ideologia (e não raro alguém pergunta se ela não seria a mesma coisa que aquele tipo de sociedade imaginária pregada pelos anarquistas); ora, ainda, indaga-se se ela não seria uma utopia (tipo a sociedade sem classes do paraíso construído idealmente pelos comunistas).

Para tentar desfazer a confusão, comecemos pelo final, quer dizer, pela ideia – bastante generalizada – de que a democracia seria uma utopia.

Não! A democracia não é uma utopia. Quem precisa de utopia é a autocracia. Para a democracia não há um lugar (ou um não-lugar: u-topos) onde chegar. O amanhã da democracia chama-se hoje. Isso não significa que a democracia não seja tensionada pelo futuro desejado. Mas o tempo da democracia é o futuro antecipado, presentificado, ou seja a topia, o aqui e agora. Só assim ela se realiza: sendo o meio que realiza o seu fim (no sentido de finalidade – ou sentido – da política, quer dizer, a liberdade).

Nesse sentido, pode-se dizer que a democracia se realiza toda vez que adotamos modos não-guerreiros de regulação de conflitos. Sim, ela é composta por atos singulares e precários, não por altas estratégias de condução das massas para um porvir radiante. Realizar a democracia é mais ou menos como seguir aquela homilia do Paulo Brabo: um instante de cada vez.

Mas – atenção! – adotar modos não-guerreiros de regulação de conflitos só realiza a democracia em sociedades autocráticas (quer dizer, guerreiras). Pois a democracia é, no sentido forte do conceito, um processo de desconstituição de autocracia (assim ela foi inventada pelos antigos atenienses, contra a tirania dos psistrátidas e assim ela foi reinventada pelos modernos, contra o poder despótico de Carlos I).

Em sociedades não patriarcais (i. e., não hierárquicas e não guerreiras) – por exemplo, entre os Pirahãs ou os Yanomamis, num agrupamento paleolítico de caçadores-coletores ou numa aldeia agrícola neolítica – a democracia não faz o menor sentido. Porque não há o que democratizar (ou seja, desautocratizar) nessas sociosferas que não são dominia de Estados. Impor a essas sociedades um modelo político qualquer, inclusive democrático, seria uma perversão. Nenhum bem adviria da adoção da democracia por povos cujo modo de vida (ou de convivência social) não está baseado na conservação do emocionar guerreiro.

A democracia não é um modelo de sociedade a que se deva perseguir, nem uma ideologia para conduzir alguém em direção a um futuro almejado, antevisto ou pré-configurado (como a sociedade comunista, por exemplo). Sua “utopia”, se é que podemos neste caso empregar figurativamente tal palavra, é a política (e não o contrário, como se acredita); ou seja, é o que se faz agora, não o que se fará depois. A democracia é uma espécie de vacina contra o depois, isto é, contra a alienação do presente que está na base de todos os sonhos (ou delírios) que compõem os imaginários autocráticos; tipo assim: vamos sacrificar (um pouco da) sua liberdade agora para que você alcance o reino da (plena) liberdade depois.

A democracia não quer que sacrifiquemos nada, em prol de coisa alguma imaginária. O que a democracia quer é apenas que vivamos como seres políticos, regulando nossos conflitos de modo não-guerreiro (do contrário não seremos seres políticos e sim seres apolíticos). Mas como não somos “animais políticos” (o zoon politikón, ao contrário do que pensava Aristóteles, simplesmente não existe), posto que não há nenhuma substância política original e a política só existe na entreidade, no “entre-os-homens” (como escreveu Johannah Arendt), o que a democracia quer é que sejamos interagentes na pólis, quer dizer, na koinonia (comunidade) política: mas… hoje, não amanhã!

Tal, entretanto, não deriva de nenhuma necessidade. A democracia é a esfera da liberdade porque é o campo das ações desnecessárias, que fazemos porque desejamos, inclusive quando desejamos ser infiéis às nossas origens (contra qualquer epigênese: sim a democracia é coisa de infiéis, não de fiéis). E é esse fazer o que desejamos que nos torna vulneráveis ao acaso e ao imprevisível; ou seja, livres.

“Livre – disse o poeta (Manoel de Barros) – livre é quem não tem rumo”, aquele que se jogou no fluxo interativo da convivência social, abandonado, ao sabor do vento, que ninguém sabe de onde vem e nem para onde vai.

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