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Quem quer matar a Lava Jato?

A questão pode ser resumida em uma frase. Podemos até decair para uma democracia africana corrupta como Gana, mas não queremos ser uma Venezuela. Prepare-se para se escandalizar: só a Lava Jato pode matar a Lava Jato.

Dizer que qualquer reparo ao inacreditável prêmio concedido por Janot aos Freeboys,  em associação com Fachin, põe em risco o instituto da delação premiada ou a Lava Jato, não passa de chantagem.

É o que estão fazendo, infelizmente, Janot e alguns procuradores da força-tarefa da Lava Jato, como Deltan Dallagnol e Carlos Fernando. Vejam o que eles dizem em nota, publicada pelo primeiro no seu Facebook:

Hoje o STF decidirá questões uma questão vital para a Lava Jato. Decidirá se a homologação dos acordos de delação pelo relator pode ser revista. Ache Você bom ou ruim o acordo feito pela Procuradoria-Geral da República com os irmãos Batista, a revisão da homologação do acordo, na prática, dificultará, se não impedirá, o avanço das investigações da Lava Jato. Os investigados e réus só fazem acordos porque confiam que eles serão cumpridos. A possibilidade de revisão destruiria o ambiente e a segurança favorável à realização de todos os demais acordos com investigados e réus, o que é o motor propulsor das investigações Lava Jato. Acordos não são pontos de chegada, mas são excelentes pontos de partida das investigações e foram eles que permitiram a expansão exponencial da Lava Jato. Além disso, no caso concreto, a revisão da homologação poderá deixar a descoberto as informações e provas recebidas. Você quer que finjamos não ver o ex-Deputado Rocha Loures correndo com 500 mil reais nas ruas de São Paulo?

Deltan Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos Lima

Não vale a pena comentar o conteúdo da chantagem. Vamos aqui analisar com mais profundidade esse método-Bambi de gritar “Fogo na floresta”. É preciso revelar o truque, que está sendo empregado por alguns, para aplicar medidas discricionárias, tomar qualquer decisão monocrática – e inclusive contra as leis – e ficar imune à crítica democrática. Ao menor sinal de verem contrariadas suas intenções, eles gritam que “estão querendo acabar com a Lava Jato”. E quem não concordar com suas ações é logo exposto à opinião pública para ser execrado como inimigo da Lava Jato. Convenhamos, o procedimento é solerte.

Não, os democratas, não somos inimigos da Lava Jato. Talvez quem hoje mais ameace a credibilidade da operação seja o conspirador geral da República Rodrigo Janot. Sérgio Moro está fazendo um bom trabalho. Mas corre o risco de ficar desmoralizado se for associado às manobras de Janot. E os próprios procuradores da força-tarefa de Curitiba estão namorando com o perigo ao assumirem o papel de cruzados do bem para limpar a política de toda a corrupção, tentando talvez imitar a operação Mãos Limpas.

Porém a Lava Jato não pode e não deve ser uma operação Mani Pulite. Não pode porque, na Itália dos anos 90, não havia uma força política – com enraizamento social suficiente – estruturada para alterar a natureza do regime democrático (como é a verdadeira organização política criminosa comandada por Lula, Dirceu e seus sequazes, que dirige de fato o PT – e que não foi até agora desbaratada, já que apenas um membro do seu núcleo duro está preso em regime fechado: João Vaccari). E não deve para não acabar como acabou – desacreditada e isolada – a sua congênere italiana. Quem quer limpar o mundo acaba fora do mundo.

Não, o mundo da política não será limpo por iniciativas redentoras. A democracia não é o regime limpo, reto e perfeito. Ela é suja, curva e imperfeita mesmo, como somos os humanos. Entenda-se bem: qualquer crime deve ser punido pelo Estado democrático de direito. Mas não é papel do Estado, numa democracia, educar as pessoas ou purificar a sociedade. As pessoas não podem ser limpas por qualquer operação promovida por agentes do establishment. Do contrário, depois de uma Mani Pulite teremos um Berlusconi (senão coisa muito pior para a democracia).

A rigor, só a sociedade pode reformar o Estado e coibir a corrupção endêmica, porque isso depende do estoque do seu capital social. Esta é a razão pela qual a Noruega é menos corrupta do que a Somália, não porque os agentes do Estado norueguês tenham sido possuídos por uma sanha purificadora ou tenham se engajado em uma cruzada para limpar a sua política de todos os corruptos.

Assim, diminuir sensivelmente a corrupção endêmica (que não incide apenas no Estado, mas também na sociedade e é função do padrão de relação Estado-sociedade) é uma tarefa de longo prazo, que depende de fatores que têm a ver com fluxo interativo da convivência social (e com os graus de distribuição, conectividade e interatividade da rede).

Ademais, o sistema político não tem vocação para o suicídio, é muito resiliente e se defenderá com unhas e dentes contra qualquer tentativa de extermínio. Quando os agentes do velho sistema político querem fugir da Lava Jato, isso não significa, necessariamente, uma conspiração para matar a operação. Na maior parte dos casos significa, simplesmente, que os políticos realmente existentes não querem ser processados e presos (como ocorre com qualquer acusado que procura um advogado). É natural que queiram escapar da justiça, conspirando ou não. Cabe ao Estado de direito impedir que eles escapem.

Se houvesse uma operação Lava Jato na Atenas do século 5 AEC, provavelmente Péricles – o principal expoente da democracia nascente – seria removido de suas funções e condenado à morte. Sim, porque ele atentou contra os costumes e as leis da cidade, amasiando-se com uma mulher tida por puta (Aspásia, que nem ateniense era, mas de Mileto – e, nesta condição, não podia fazer política ou influenciar os destinos da Polis), desviando dinheiro da construção do Partenon e nomeando um filho para um cargo público, dentre várias outras acusações. Talvez alguns lavajatistas da época, para retirá-lo do poder ou para limpar a política dos democratas atenienses de toda corrupção, tivessem apoiado os dois golpes que foram desferidos contra o regime democrático e instalaram a Ditadura dos Quatrocentos e a Ditadura dos Trinta – que foram, aliás, apoiados pelos honestíssimos autocratas espartanos. Mas se isso tivesse acontecido, não teríamos mais ouvido falar de democracia. Pelo contrário, felizmente, os democratas atenienses reprimiram duramente os autocratas (inclusive gente da entourage de Sócrates, como Cármides e Alcebíades – e só por isso Sócrates foi condenado), que estavam organizados para alterar a natureza do regime político ateniense.

Estamos, mutatis mutandis, diante de situação parecida. Aqui também temos gente gritando Fora Péricles e clamando por um salvador da pátria (que deveria ser um varão de Plutarco, como Leônidas de Esparta: é o que parecem fazer os que pregam intervenção militar ou o advento do Bolsomito).

Há uma confusão generalizada entre política e moral e os cruzados do bem, os jacobinos que pedem cabeças e mais cabeças, insaciavelmente, investem nessa confusão. Muitos dizem que Temer tem que sair porque não tem condições morais de continuar no governo. Morais? E Rodrigo tem condições morais de continuar na presidência da Câmara? E Eunício tem condições morais de continuar na presidência do Senado? E seu antecessor, Renan, tinha? E Lewandowski tinha condições morais de presidir o STF (em pleno processo de impeachment de Dilma, que ele também presidiu no Senado)? E Lula, tinha condições morais de ficar no governo por oito anos? E Dilma? Voltemos à Atenas do século 5 antes de Cristo: Péricles (acusado de quebra de decoro, corrupção e nepotismo, como foi já dito acima) tinha condições morais de exercer seu protagonismo na Ágora por décadas? Se confundirmos política com moral, não há política possível. E não há chance para a democracia, que – vale repetir – nunca é limpa, reta e perfeita: é sempre suja, curva e imperfeita. Quem está procurando pureza não deve se preocupar nem se envolver com política: deve aderir a uma religião (que também não é nada disso, mas assim se proclama para arrebanhar fiéis).

Sim, as situações são parecidas, porque são parecidas todas as situações em que a democracia está ameaçada pela presença de uma força autocrática. Pois além da corrupção tradicional, endêmica nos meios políticos, temos entre nós a corrupção com motivos estratégicos de poder: esta sim um enclave – que não depende do metabolismo normal do velho sistema político e pode e deve ser duramente combatida pelo Estado de direito no curto prazo, não principalmente por razões de pureza moral e sim porque ameaça de morte a democracia. Não se trata aqui de honestidade. Se o PT fosse 100% honesto (ou se os Lulas e Dirceus fossem como Leônidas), ele seria 1.000 vezes pior (para a nossa Atenas democrática da atualidade). Mas parece que os procuradores da Lava Jato teimam em não ver a distinção entre as duas coisas e ficam repetindo os lemas, urdidos pelo PT para uso dos trouxas, de que “todos são farinha do mesmo saco” (este roubado do velho engenheiro Leonel Brizola) ou de que “não temos corruptos de estimação”.

Não, não são todos farinha do mesmo saco: Lula não é Sérgio Cabral e Dirceu não é Eduardo Cunha, Vaccari não é Temer e Palocci não é Henrique Eduardo Alves. Não temos corruptos de estimação, mas nosso problema maior é com aqueles que nem são tão corruptos, como os cerca de 30 membros do núcleo duro da verdadeira organização política criminosa que foi estruturada para bolivarianizar (ou lulopetizar) o nosso regime – e estão praticamente todos soltos, a maioria não tendo sido sequer acusada. Esta organização estava dando um golpe em doses homeopáticas na nossa democracia. Se Dilma tivesse chegado ao fim de seu segundo mandato, a situação seria irreversível ou descambaria para um cenário de guerra civil, como vemos hoje na Venezuela.

A questão pode ser resumida em uma frase. Podemos até decair para uma democracia africana corrupta como Gana, mas não queremos ser uma Venezuela.

PREPARE-SE PARA SE ESCANDALIZAR

O que vai se dizer agora pode ser chocante, escandaloso mesmo, mas deve ser dito. Uma parte considerável do apoio popular à Lava Jato é dado por maus motivos. Há uma pulsão quase-irresistível nas pessoas, que não têm experiência política e são analfabetas democráticas, de querer acreditar num herói, num salvador. Aí a pessoa acha que um líder político ou religioso ou até um juiz ou um conjunto de procuradores e policiais corretos, amantes da justiça, vão salvar o mundo por nós, não vão errar nunca, vão sempre saber tudo e reage com indignação quando se lhe diz que o mundo só pode ser salvo um instante de cada vez (obrigado, Paulo Brabo) – e por nossas ações singulares e precárias cotidianas (acrescento) – não por grandes vassouradas ou mega-operações de limpeza, que todos podem errar (e erram frequentemente) e que ninguém sabe tudo. Para que a democracia consiga penetrar na mentalidade dessa pessoa, é necessário um grande esforço de reflexão ou uma tragédia (como a de viver sem liberdade e, às vezes, nem assim).

Sim, já passou da hora de dizer claramente. Em termos das correntes do emocionar coletivo que suscitam, há a Lava Jato democrática (que devemos apoiar decididamente) e a Lava Jato moralista, que se alimenta da ideia de limpeza e reforça os instintos mais primitivos e imorais de vingança “contra tudo que está aí” confundindo Berlusconi com Mussolini (que nós, os democratas, não podemos engolir e não devemos deixar de criticar). Já que o velho sistema político não vai ser exterminado de chofre (e seria uma tragédia para a democracia se o fosse), a segunda Lava Jato pode, sim, matar a primeira. Ou seja, só a Lava Jato pode matar a Lava Jato.

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